Função expressivista e responsabilidade coletiva: fundamentos dos limites persecutórios no processo penal, no pensamento de Joel Feinberg

28/07/2018

A passagem da função expressiva para a responsabilização penal coletiva, no rastro da dilapidação do processo penal do país, é uma das maiores ameaças ao estado de direito de nossa história republicana, exatamente porque está em curso no interior de uma estrutura estável, fechada e sem representação, de poder institucional. Talvez esteja no momento de voltar a pensar no que é mesmo que está (e deve estar) em jogo quando se pune alguém por um crime.

            Por que punimos as pessoas e com que poder fazemos isso? Por que o problema da autoridade e da legitimidade de quem pune nos interpela e perturba? Todas as prisões são políticas ou apenas algumas delas? Como devemos e por que razão devemos punir alguém? O Brasil está mergulhado em uma guerra política há anos, já, sem sinais de apaziguamento. A Operação LavaJato, que não deflagrou essa guerra mas se tornou o seu maior instrumento com o uso peculiar do processo penal, parece cativa de uma excessiva dependência do que o filósofo penal Joel Feinberg (1926-2004) chamou de “função expressivista da punição”. Essa função é o elemento disciplinado pelo processo penal moderno, derivado do reconhecimento dos direitos fundamentais na base dos sistemas constitucionais. E encontra na figura da “responsabilidade coletiva”, também levada a sério por Feinberg, um limite cuja ultrapassagem é interdita. Afinal, e em que pese o vínculo lógico entre crime e punição, o que o disciplinamento da função expressivista busca, nos processos penais, é determinar os limites entre o que é direito e o que é violência, diante de pessoas de carne e osso, não apenas de crenças ideologicamente contaminadas, nem somente de conceitos.

            Essa diferença, que é real, parece negligenciada em processos desestabilizadores e persecutórios que prescindem abertamente da obediência a regras processuais. E a legitimação de atitudes expressivistas, em decisões judiciais e na sua defesa por parte de setores da sociedade completamente engajados na guerra em curso, está nos levando a episódios de bestialidade sem precedentes. Figuras como punições coletivas de crimes sem tipificação, criação, em sentença de primeiro grau reconhecida em segundo grau, de um novíssimo conceito de propriedade privada (um dos pilares do direito e da extensão da liberdade individual), vêm servindo de lastro para o aprisionamento, o bloqueio de bens, o escárnio público e a destruição de reputações. Há, está claro, muitos problemas morais em violar os elementos disciplinadores da repressão e da coerção judicial; contudo, o problema mais grave das violações em curso é de natureza jurídica e judicial. Se o processo penal seguir reduzido a crenças embasadas em leituras pessoais do direito material penal, o que vai se tornar jurisprudência? Pode o arbítrio ser jurisprudenciável, fazendo do judiciário um poder excepcional? É para esse estado que o Brasil caminha, para um estado judicial?

            Neste texto eu pretendo enfatizar como duas figuras centrais da teoria da pena, no modo como Joel Feinberg as analisa, permitem-nos entender o direito como limite legítimo à bestialidade. E em como, ao fazê-lo, assegura sua independência dos expressivismos morais, ao tempo em que pode lançar luz sobre a importância do equilíbrio dos poderes e dos riscos que corremos todos, sem exceção alguma, diante da assimetria em curso. Começarei com a noção elementar, kantiana, de retribuição à pena e, em seguida, analisarei o que a punição engendra e deve engendrar, no nível jurídico. O meu esforço de esclarecimento aqui é histórico e conceitual, não é estritamente jurídico, embora nasça dos assombros com as distorções em curso, contra o sistema de garantias fundamentais consagrados na Constituição de 1988 e contra a legislação infraconstitucional, sobretudo a processual penal. Depois, buscarei, no tratamento de Feinberg da noção de responsabilidade coletiva no domínio penal, esclarecer o que deve estar em jogo em acusações e condenações que ultrapassam indivíduos. Não é trivial punir e menos ainda pensar sobre os fundamentos da punição e é preciso levar a sério as implicações de uma Operação Judicial que, com a propaganda de uma das maiores cadeias de radiodifusão do planeta, está minando, nas esferas processuais, os fundamentos e o arcabouço constitucional e para a jovem e duramente conquistada democracia brasileira, em nome de uma guerra que foi indevidamente deslocada do domínio representativo para o judicial. A passagem da função expressiva para a responsabilização penal coletiva, no rastro da dilapidação do processo penal do país, é uma das maiores ameaças ao estado de direito de nossa história republicana, exatamente porque está em curso no interior de uma estrutura estável, fechada e sem representação, de poder institucional. Talvez esteja no momento de voltar a pensar no que é mesmo que está (e deve estar) em jogo quando se pune alguém por um crime. Voltar a falar de coisas elementares pode nos ajudar a repensar para onde essa aparente complexidade das operações midiático-jurídicas pode levar aquilo que nos diferencia de seres rastejantes (e seus interlocutores).

1 – Por que punimos: sobre uma conexão insuficiente, mas necessária

            O criminoso deve ser punido pela única razão de que cometeu um crime. Isso é o que diz Kant, na Doutrina do Direito[1]. O entendimento segundo o qual a tipificação é instituída pela lei está presente nas teorias da pena desde antes de Kant, é certo, mas a filosofia crítica forneceu um tratamento paradigmático de seu tratamento, entre os modernos. Esse entendimento reconhece a uma conexão lógica e também intuitiva que pode conter, no entanto, uma série de problemas práticos. Os aspectos lógico e intuitivo não são suficientes, embora sejam necessários, em questões de justiça. Voltar a atenção para essas questões pode desvelar um quadro surpreendente, em que essa conexão é mais ou menos enfraquecida e em que seus pressupostos deslocam-se, de acordo com o contexto do direito.

            Dois desses pressupostos são: é um indivíduo que comete um crime e tem de haver uma autoridade que julga (e também a que aplica a pena, que nem sempre é a mesma que julga). Esses aspectos são elementares e condicionam a vigência dessa conexão e também a sua percepção pela comunidade de regras em que esse tipo de preceito é positivado na lei penal. A personalidade de direito supõe um sujeito de direitos e as autoridades judicial e autoridade administrativa ou política supõem um processo de legitimação sem o qual a punição é pura atrocidade. Por que punimos determinadas práticas, afinal? O que a punição disciplina e por que é preciso disciplinar a punição? Como tentarei deixar claro a seguir, não há resposta simples que esclareça a conexão, interna e necessária, entre crime e castigo.

            Dois exemplos permitem lançar luz sobre dificuldades que essa relação lógica e interna pode acarretar. Há poucos dias moradores de uma região da Indonésia massacraram 292 crocodilos[2], que estavam em uma área para eles reservada. O massacre foi precedido por um ataque: um crocodilo matou um morador do vilarejo que invadiu a área dos reservada aos répteis para pegar capim a fim de alimentar suas vacas. Os moradores, abalados pela morte de seu vizinho, dirigiram-se à delegacia de polícia para solicitar proteção contra aqueles animais. Diante da falta de ações por parte da polícia local, os moradores, enfurecidos, pegaram facões e pedras e pás e mataram 292 animais. Quase todos os que estavam nessa área foram mortos. Não parece razoável afirmar que esses moradores acreditassem que os crocodilos eram assassinos que mereciam ser julgados e mortos. Eles mataram os animais para se sentirem seguros, na sua região. A raiva que parece requerida para perpetrar um massacre, no entanto, expressa um sentimento coletivo de autopreservação que reconhece, nos crocodilos, uma ameaça e, nas autoridades locais, a ausência de representação de seus interesses. A imagem bestial dos animais massacrados não deve nos confundir quanto ao fato de que nem os moradores dessa região culparam os crocodilos, nem os animais foram assim tomados, como muitos, em tribunais medievais, réus.

            Os crocodilos são um bem jurídico cujo massacre deva ser punido? É possível que sim, e que a existência dos crocodilos preencha requisitos para a exigibilidade de sua tutela jurídica pelo sistema constitucional e civil da Indonésia. O que salta aos olhos nesse peculiar ato de justiçamento é que 1) não há como negar o aspecto de justiçamento (quer dizer, não há como negar a presença da conexão entre crime e castigo) e 2) não há um requisito fundamental da justiça penal, que é a transitoriedade entre agente e paciente do crime. Não há como negar, na fúria e no seu resultado (o massacre de 292 crocodilos), que há uma expressão, uma espécie de comunicação simbólica, gestual, de uma ferida que se distribuiu pela comunidade, e que deve ser devolvida para quem a causou. No entanto, como não há um homem assassino e como não há um réu ou mais de um réu possível, dado que estamos diante de répteis, essa retribuição soa absurda. Ela prescinde dos marcos jurídicos e denega a existência e a legitimidade de quem autoriza as regras de direito. Os moradores mataram os animais que, nas suas cabeças e por conta de um acidente, ameaçavam-lhes. Diante da brutalidade e da extensão das mortes, no entanto, é difícil não levar a sério o elemento expressivo do gesto, a ira e a raiva, em relação à experiência da perda de seu vizinho, por um lado, e à inação das autoridades, em responderem à altura das demandas da comunidade. O massacre dos animais foi um gesto para a comunidade, frente a si mesma e frente às autoridades que deveriam representá-la.

            Um dos elementos mais desconcertantes e enigmáticos desse caso é o lugar que a culpa e a culpabilidade desempenham aí. Em primeiro lugar, podemos afirmar que houve um crime (deixando em suspenso o aspecto ambiental, para fins de argumentação) de homicídio? Não. Homicídio é o assassinato de um homem por outro. Em segundo lugar, há culpa nas autoridades ou nos moradores, pela morte do morador? É possível que haja, e um devido processo legal deve apurá-lo, mas a culpa, em qualquer caso, não é dos crocodilos, nem mesmo daquele que de fato matou o morador do vilarejo. A conexão entre crime e castigo parece simplesmente ausente desse episódio, que contém um cadáver humano e quase 300 de animais, em um encadeamento intencional e vingativo, ao mesmo tempo. Este é o aspecto relevante do exemplo.

            O segundo caso que gostaria de registrar é uma hipótese kantiana, da Doutrina do Direito, que comporta a possibilidade de um massacre, desta feita, não de crocodilos, mas de seres humanos. Segundo Kant,

…mesmo que a sociedade civil se dissolvesse com o consentimento de todos os seus membros (se, por exemplo, um povo que habitasse uma ilha decidisse se separar e dispersar no mundo inteiro), o último assassino que estivesse na prisão deveria antes ser executado, a fim de que cada um experimente o valor de seus atos, e que o sangue vertido não recaia sobre o povo que não teria querido o castigo, pois assim teria sido considerado cúmplice dessa violação da justiça pública”[3]

            Todos os assassinos condenados devem ser mortos antes que se possa tomar conhecimento de que, na sociedade que os condenou, havia cúmplices do crime de assassinato. Embora a relação entre pacientes e agentes esteja bem estabelecida na hipótese kantiana, de maneira que os assassinos já foram condenados e não são animais inocentes em seu local natural, reservado, o elemento expressivo lastreia a justificação do gesto punitivo como devolução comunicada de um dano sofrido. Há muito o que se dizer e pesquisar sobre motivações e estatuto biológico, evolutivo e antropológico desse expressivismo, em ambos os exemplos. Do ponto de vista da filosofia penal, sobressai, reclamando atenção a constatação da sua presença, aquilo que Joel Feinberg chamou de “A Função expressivista da punição”, no artigo seminal de 1965[4]. A punição envolve mais do que uma mera retribuição de um dano, de maneira que não pode ser confundida com uma multa de estacionamento, nem com uma cobrança de tributos devidos porque sonegados. O que torna a punição “teoricamente enigmática e moralmente inquietante”, nas palavras de Feinberg, é que se trata de um

dispositivo convencional para a expressão de atitudes de ressentimento e indignação, e de juízos de desaprovação e reprovação, seja da parte da própria autoridade punitiva, ou daqueles ’em cujo nome’ a punição é aplicada. Em uma frase, a punição tem um significado simbólico majoritariamente ausente nos outros tipos de penalidades. (…) Trata-se também de uma maneira simbólica de devolver ao criminoso, de expressar um tipo de ressentimento vindicado[5].

2 – A função expressivista e a autoridade de punir

            Esse dispositivo envolve elementos enigmáticos e moralmente inquietantes porque punir não é apenas, em que pese sempre seja, uma expressão simbólica de devolução de um dano tipificado. A punição requer um grau de equiparação entre crime e castigo que os conecta não apenas causal, mas normativamente. E essa conexão, associada ao caráter expressivo descrito nos dois exemplos acima, precisa ser levada a sério, porque a tese de que as comunidades de alguma maneira detêm algum direito à vingança é não apenas bestial, como temerária; e é contra essa tese, que vigora em tribos pré-estatais, que nasce a noção de direito e justiça. Apesar dos horrores do sistema carcerário brasileiro e das atuais atrocidades paralegais em curso, a função expressivista não é o que define o direito e nem a autoridade de punir. Reconhecer o expressivismo não é, em primeiro lugar, defendê-lo e menos ainda reconhecer o direito à vingança. Desde a segunda metade do Século XVIII, com Cesare Beccaria, o processo penal e a imposição de sofrimentos físicos e psicológicos a seres humanos passaram a ser reconhecidos em seu caráter dramático e eventualmente trágico, como algo desumano e, por isso, injusto.

            No rastro do iluminismo e das demandas por Esclarecimento, o jurista Beccaria buscou enfrentar o problema do exercício de atrocidades pelas autoridades. Em Dos delitos e das penas(1764), o que entra em cena como problema jurídico é o que autoriza e justifica causar dor, privação e eventualmente morte de um outro membro da comunidade e de um outro ser humano (considerando que não estamos em tempos de guerra real). É preciso, como observa Feinberg, que seja possível pôr em questão a legitimidade do poder e da autoridade, para que se pense a natureza do direito; é esse tipo de discussão conceitual que a punição e a teoria da pena acarretam. E é também por isso que a natureza categórica da punição criminal, como Kant reconhece, torna-se parasitária ou passa a ser reconhecida como parasitária de uma concepção de poder político devido e legítimo. O que se passa é um deslizamento reconhecido e levado a cabo por Kant, na Doutrina do Direito, contra Beccaria, embora concedendo continuidade a problemas por ele levantados. A diferença de Kant em relação a Beccaria é sobretudo de método. É o que se torna claro com o exemplo extremo do tratamento da pena de morte, em que o limite do que está em jogo na autoridade para infligir sofrimento a alguém da sua comunidade jurídica é apresentado como parasitário de um pacto pressuposto. Diz Kant a propósito de Beccaria:

…aqui, contra o marquês de Beccaria, a partir de um sentimento de humanidade afetada (compassibilitas), estabeleceu sua tese segundo a qual a pena de morte é ilegal, porque ela não poderia estar compreendida no contrato civil originário; com efeito, cada um no povo poderia ter consentido em perder a sua vida, caso viesse a matar alguém (deste povo); ora, um tal consentimento seria impossível, porque ninguém pode dispor da sua vida. Tudo isso não passa de um sofisma e de argúcia jurídica”[6].

            Ninguém é punido porque quis a pena, mas porque quis cometer uma ação punível. Para entender isso é preciso, considerar a perspectiva kantiana. Nela, o colegislador hipotético e o delinquente atual não são a mesma pessoa ou as mesmas pessoas empiricamente dadas em um determinado contexto histórico. O que Kant requer é apenas que seja possível que possamos atribuir responsabilidade como se essa atualidade entre crime e legislador possa ser justificável — inclusive, atualmente.

Quando, portanto, eu uso uma lei penal contra mim enquanto criminoso, trata-se então em mim da pura razão jurídica legislativa (homo noumenon) que me submete a essa lei penal, como ser capaz de um crime, por consequência, como uma outra pessoa (homo phaenomenon) assim como todos os outros na união civil[7].

            Porque nessa possibilidade também reside a justificação da autoridade, a qual então, legitimamente, aplicará penas contra os pactuantes deliquentes. Se deixarmos de lado a possível inconsistência em tomar o homem como fim em si mesmo e considerar legítima a pena de morte, na filosofia prática de Kant, podemos analisar o seu embate com Beccaria como derivado, sobretudo, de um problema, não da igualdade entre as partes, entre homens que cometem crimes e que podem pactuar entre si, inclusive quanto ao próprio destino em caso de crimes cometidos, mas do poder de punir. Segundo Kant, a razão por que punimos é o que nos permite identificar o crime cometido como algo que acarreta punição, em primeiro lugar. A aplicação da pena se justifica na razão jurídica prática e isso é o bastante. Com mais força, aplicar a pena é tratar o criminoso segundo a dignidade que, na medida em que é racional, ele tem de ter, afinal, para delinquir, é preciso poder ter contratado. Em que pese a possível inconsistência da defesa da pena de morte, frente ao programa filosófico crítico, a igualdade entre os homens é assegurada como uma questão de consistência do fundamento da punição.

            O argumento de Kant contra Beccaria parece derivar unicamente de uma diferença de método tal que ambos se referem em concepções incomensuráveis de contrato social. Dado o projeto crítico kantiano, é possível afirmar que há uma questão de método que Kant reivindica, em defesa do seu retributivismo duro, contra o que seria uma posição consequencialista de Beccaria. Ao dizer que a razão da pena é o crime, Kant está dizendo algo como: ninguém é punido porque precisa se emendar e ser educado ou curado ou trazido à luz da vida em sociedade, com regras bem estabelecidas. O problema da humanidade da violência infligida contra o criminoso, em qualquer caso, é externo à fundamentação do direito e da autoridade de punir. Assim, a compaixão que move a perspectiva de Beccaria, quanto à função da pena, é para Kant uma questão heterogênea e que cai fora da conexão entre crime e castigo, no que concerne à razão prática.

            Para o filósofo alemão, assim como para o humanista Beccaria, entretanto, o que funciona como base para a argumentação das suas concepções de punição é a relação contratual. Crime e castigo são conectados normativamente porque as partes envolvidas são ou devem ser membros contratantes de um contrato social que deliberaram ou podem deliberar sobre a legitimidade da vigência dessa conexão para si. E o modo como cada um compreende a contratação determina o modo como fundamentam a punição e até mesmo o direito ou a sua ausência, no que concerne à morte de criminosos. Em ambos os casos, entra em cena uma reflexão sobre a relação interna, não apenas entre crime e castigo, mas entre crime, castigo e autoridade para punir. É isso o que faz com que teorias sobre o fundamento do direito e do estado sejam visitadas (e tenham sido reimaginadas, a partir do século XVII) a fim de justificar como se inflige sofrimento a alguém que é, como criminoso, necessariamente parte da comunidade jurídica. E pouco adianta que Kant diga que o criminoso rompeu com o contrato social e por isso cai fora dessa comunidade. Esse é um outro problema.

            Em qualquer regime jurídico moderno o criminoso tem de pertencer em alguma medida à comunidade contra a qual comete o crime, afinal, ele é, em si mesmo, capaz de legitimar o poder. E esse pertencimento é, em termos kantianos, dado pela razão. Ser criminoso é, assim, uma prerrogativa e, como Hegel dirá depois, um status social digno de uma punição. Torna-se assim intuitiva a afirmação hegeliana segundo a qual a pena é um direito do criminoso, na sua Filosofia do Direito (§ 100)[8]. O que esses arranjos dão a ver é que não é mais trivial o poder de fato de cometer atrocidades e exercer a violência sem fundamento legitimado pela comunidade racional submetida à autoridade. É, em uma frase, a exigência da legitimidade para o exercício da prática punitiva. Cometer a violência passa a ser pensado como um problema não apenas enquanto questão prática imediata, de segurança pública, mas como uma questão de natureza política, vinculada ao poder e à legitimidade do poder. Entre os modernos, pode-se dizer que o problema da culpa e da moralidade nos delitos é transportado dos confins do sujeito obediente e crente em uma ordem sobrenatural de autoridade para o poder instituído, possivelmente, pelos mesmos sujeitos que cometem crimes.

            Essa transitividade desloca o problema moral de punir, do indivíduo, para o poder político em exercício. Não se enfrenta o crime apenas olhando para o criminoso, mas também para quem pune o criminoso, para quem o julga. A mudança dos critérios de imputação está em que eles passam a depender de um crivo externo ao indivíduo e interno à vida normativa de toda uma comunidade. É por isso que ainda hoje se pensa o problema penal, para além da obscenidade do sistema prisional e das bestialidades nos discursos midiáticos e populistas, como um problema diretamente vinculado ao poder político. E é por isso que a filosofia penal é, em acepção rigorosa, filosofia política. O legado de Beccaria não está tanto no seu tratamento da conexão entre pena e punição, mas em pôr em questão a punição como um problema real, vinculado à legitimidade do poder político. O caráter moralmente inquietante da punição, como observa Feinberg, aparece pela primeira vez como um problema ou como uma inquietação também política, em Beccaria. E quanto a isso, a essa transitividade do problema moral da culpa para o problema político da fundamentação da autoridade de punir, Kant apenas leva adiante uma reflexão iniciada pelo humanista.

            A conexão entre crime e castigo passa a depender, assim, de um terceiro elemento, que é a autoridade de punir. Como dito no começo deste texto, entretanto, há um outro elemento que é requerido e que está suposto no modo como fazemos esta conexão, hoje: trata-se dos direitos da personalidade de direito, do sujeito de direitos que é capaz de contratar e que é digno ao ponto de ser punido, como um — mesmo que peculiar — reconhecimento jurídico de seu pertencimento a uma comunidade de regras. Afinal, dizer que a reflexão sobre a punição penal é um problema político não é dizer, como uma leitura apressada e ideológica costuma fazer, no rastro de orelhas de livros de Foucaul, que os crimes ou que (de maneira entusiasmada e falsificadora), pior, todos os crimes são políticos. A razão por que o poder político passa a sofrer a limitação de seu poder de reprimir e exercer violência sobre seus cidadãos, inclusive criminosos, é também o que fundamenta a teoria da responsabilidade penal, a saber: a racionalidade dos agentes morais e sociais em uma comunidade jurídica, na qual desfrutem e arquem com as implicações da igualdade e da transitividade do direito e do poder.

3 – Quem deve ser punido como se deve punir, quando for o caso fazê-lo

            À limitação do poder de punir corresponde a determinação da extensão da punibilidade ao indivíduo criminoso. Quem pode exigir legitimidade do poder tem de poder responder por suas ações no âmbito da legitimidade, o que inclui o domínio das ações jurídicas. O deslocamento do problema da culpa sobretudo moral para a responsabilidade jurídica tem contrapartida no modo como se passa a distinguir a imputabilidade: são as ações, antes que as intenções, que determinam a responsabilidade. Claro que o domínio intencional importa, a moralidade não morreu; mas a sua medida para fins de punição passa a ser jurídica. Essa medida não é sempre clara e nem fácil de ser estabelecida e experimentos ficcionais como o contrato social, em que pese sua força analítica, não permitem esclarecer os pressupostos de método e de fato, ou mesmo históricos, que condicionam o modo como a conexão lógica entre crime e castigo se dá, entre sistemas acusatórios recepcionados pelo direito positivo e pessoas de carne e osso. A prioridade da ação determinada por uma tipificação penal sobre o agente que a comete não elimina, vale dizer, o incontornável primado de que a ação criminosa sempre é praticada por um indivíduo e, mesmo quando há crimes praticados por vários cidadãos e cidadãs, a responsabilização, por uma questão lógica e conceitual, deve ser medida individualmente.

            Não há, portanto, e rigorosamente falando, crime coletivo, na medida exata em que não há sujeito coletivo. Fora da retórica e dos delírios ideológicos, esse tipo de categorização não existe e não pode ter cabimento quando se consagra o direito individual e os direitos fundamentais. Exigir a individuação da imputação penal, no entanto, é mais do que uma mera contrapartida lógica da conexão entre crime e castigo em comunidades jurídicas modernas, pós-kantianas. É uma limitação imposta ao poder acusatório e julgador pelo sistema de liberdades individuais reconhecidas como tal, e positivadas na lei. É uma contrapartida claramente presente no artigo 5 da Constituição Federal do Brasil, portanto, também jurídica. Além disso, é uma consequência ética, que interpela a natureza legalista ou arbitrária de um sistema legal em seu aspecto institucional. Quem comete crime comete uma ação punível penalmente e tem, além do direito à pena, o direito a um devido processo legal, à defesa, e tem as suas prerrogativas elementares de cidadania preservadas, em quase todos os quesitos. Ao se reconhecer a esfera dos direitos individuais e seu escopo tanto na ordem de fundamentação, como de justificação da coerção, do poder estatal, visa-se a limitar a possibilidade do cometimento de atrocidades e a limitar a injustiça.

            É por isso que a responsabilização coletiva em matéria penal é tão problemática e difícil de ser estabelecida. E é por isso, também, que o arbítrio acusatório tende a coletivizar a imputação de crimes, a fim de apostar no estigma e de disseminar o privilégio da função expressivista da pena. Aqui, uma vez mais, Feinberg ilumina a análise do problema penal, quando examina a responsabilidade coletiva de maneira nuançada. Porque, mesmo que o tema seja de natureza material, a sua clareza depende do que se passa em um processo e de como, no estado das coisas reais de um processo, a determinação das condutas delituosas se dá. Essa perspectiva só pode garantir esclarecimento ao lançar luz sobre a nuance. É isso o que podemos ler no seu ensaio sobre Responsabilidade Coletiva, publicado originalmente em 1968[9]. Em um caso típico que envolve a imputação de vários agentes no cometimento de um ou mais delitos, sob um mesmo processo, os seguintes requisitos devem ser observados:

1) deve ser verdade que o indivíduo responsável fez a coisa prejudicial em questão, ou ao menos que sua ação ou omissão deu causa a uma substancial contribuição para tanto; 2) a conduta que contribuiu causalmente deve ter sido de alguma maneira culpada [faulty] e, finalmente, 3) se o resultado danoso foi verdadeiramente sua falta, o requisito da conexão causal deve estar situado entre o aspecto culposo de sua conduta e o resultado. Não é suficiente ter causado dano e ter sido culpado, se a culpa for irrelevante para o dano causado[10].

            A essa série de requisitos para a responsabilidade individual se chama “falta (ou culpa) contributiva” e no caso da responsabilidade coletiva a distinção entre esses aspectos é central. Porque o caráter coletivo da imputação requer o reconhecimento de que a responsabilidade, tanto civil como penal, não deriva exclusivamente da culpa e, ainda assim, há fundamento, há racionalidade, na atribuição desse tipo de responsabilidade. A responsabilização coletiva sem culpa requer relações contratuais de direito civil disciplinando a medida da responsabilidade por dano eventual (que Feinberg chama de “responsabilidade estrita”), ou relações de autorização (caso da responsabilidade indireta, “vicarious responsibility”), que vão da delegação para representação de advocacia à noção forte de autorização, hobbesiana, do poder soberano e, finalmente, a noção de responsabilidade coletiva senso estricto, que é a mais problemática e difícil de mensurar.

            E é notável que, para Feinberg, a perspectiva que tenha de ser priorizada seja a da busca da determinação da medida de atribuição de culpa a cada um, dentre uma coletividade. O ponto de vista não é descarnado, se assim posso dizer, mas realista; por isso, a responsabilidade coletiva parece, no mais das vezes, um caso particular da responsabilidade indireta. No terreno das aplicações das regras as dificuldades aparecem e podem tornar clara a complexidade acarretada pela imputação de penas a uma coletividade. Por exemplo, se e em que medida devemos responder por erros morais de nossos antepassados (caso do racismo), é uma questão clássica de responsabilidade indireta que requer um arranjo normativo tal que seja adequado para reparar os danos passados sem acarretar culpa aos envolvidos no presente. Políticas de cotas constituem um exemplo de arranjo normativo que acolhe essa concepção de responsabilidade indireta, envolvendo um entrelaçamento de esferas jurídicas e sociais das sociedades contemporâneas, que contemplam nos seus direitos positivos o reconhecimento da complexidade das figuras da responsabilidade coletiva.

            No caso penal, porém, as coisas se tornam mais obscuras, quando se considera tal coisa como responsabilidade coletiva em matéria penal. Nas palavras de Feinberg, “a responsabilidade coletiva é mais provável de incomodar nossa sensibilidade moderna quando está em jogo a punição penal”[11]. Por que? Porque a responsabilidade criminal sempre é direta e isso é elementar na conexão entre crime e castigo; por isso que há requisitos procedimentais que devem ser observados a fim de obedecer ao estabelecimento desse nexo. O não-cumprimento desses requisitos acarreta ou deve acarretar a impossibilidade da imputação. É assim que Feinberg considera esse tipo de responsabilização um atestado de fracasso nos expedientes investigativos persecutórios, inclusive, processuais. É preciso ou o fracasso ou a ausência, simplesmente, de mecanismos responsáveis de investigação e determinação do crime. Como observa Feinberg,

“…responsabilidade penal coletiva sobre grupos como um dispositivo político coercitivo só é razoável quando há um alto grau de solidariedade antecedente no grupo e onde o policiamento efetivo e profissional é improvável. Mais ainda, a justiça requer a expectativa de um certo nível de controle sobre quem se imputa responsabilidade. É porque dificilmente essas condições são satisfeitas na vida moderna, (…) que a responsabilidade criminal coletiva não é mais uma forma aceitável de organização criminosa[12].

            Isso quer dizer que não há formação de quadrilha e não há conspirações penalmente imputáveis? Não. Isso quer dizer que a imputação penal coletiva requer um reconhecido fracasso nas funções investigativas e nas atividades policiais. E que, portanto, “formação de quadrilha”, “organização criminosa”, “bando para delinquir” e outras expressões que passaram a frequentar os noticiários e decisões judiciais não devem, em bom direito, serem usadas com ligeireza, sob pena de se violar o estatuto do que é jurídico e se ingressar em puro expressivismo. Trata-se de um fracasso em responder a exigências elementares de uma teoria da pena moderna, sob uma ordem constitucional que garante direitos fundamentais, nada menos. O que está em jogo na imputação deve ter estado provado ao longo da investigação e se trata, tanto no Common Law como no direito brasileiro, de acessar a extensão de cada ação individual que tenha contribuído para o efeito coletivo de um delito. A improbabilidade e o estranhamento com essa figuração é tal que, como Feinberg observa: “...envolve o enfrentamento de várias dimensões incomensuráveis de contribuição — graus de iniciativa, dificuldade ou caráter determinante de sub-tarefas atribuídas, graus de autoridade, percentual de ganho derivado, e por aí vai.[13].

4 – Há limite para os marcos persecutórios em que estamos? Por que isso importa?

            Por que é assim? A resposta rápida é: por que os direitos fundamentais exigem, logicamente, rigor acusatório e legalidade. Uma resposta mais cuidadosa pode ser esta: a culpa não é transmissível, somente a responsabilidade o é e, em que pese essa seja uma regra civil, ela se aplica ao problema da responsabilidade coletiva, tout court. Ninguém pode responder por crime indeterminado, nem pode responder pelo que não existe, a saber, um sujeito coletivo. Agora, qual o sentido dessas considerações, neste momento em que vivemos, no Brasil? Alguém ainda está preocupado com o grau de arbítrio e de temeridade das violações em curso? Estão todos dispostos a despontarem em grupos inventados em sentenças imaginativas e paralegais? Dos excessos expressivistas para a responsabilização penal coletiva o caminho é sombrio e não tem como ser recepcionado por um sistema constitucional cuja base são os direitos fundamentais (liberdade de expressão, ir e vir, associação, crença religiosa, devido processo legal, presunção de inocência, entre outros).

            Qual o limite dos agentes públicos que estão deliberadamente legislando para si mesmos, como se fossem os contratantes sociais da própria ordem jurídica? Podemos imaginar que não são suicidas, caso se alinhassem com o método humanista de Beccaria, que jamais conceberia a bestialidade processual como admissível, nem o cometimento de atrocidades contra cidadãos supostamente contratantes da mesma ordem social. Se não se alinham com Beccaria, estariam alinhados com Kant e com a agenda do Esclarecimento? Estas não são questões retóricas, apenas. É preciso levar a sério que direitos e direitos fundamentais não são elementos celestiais, nem eternos, nem alheios ao direito positivo. A natureza dessas questões elementares que me moveram neste texto está apresentada nos nossos cotidianos, na exata medida do colapso da nossa ordem constitucional. Há milhares de pessoas presas sem o devido processo penal, mundo afora e o Brasil tem uma população carcerária tão gigantesca e crescente que somente um bloqueio epistêmico pode permitir a afirmação, séria, de que aqui ninguém “paga pelos crimes”. Em uma frase, é preciso mais expressivismo que direito.

            Que a punição tenha uma função expressivista não é uma afirmação normativa e não quer dizer que penas possam cair fora do direito. Assim como não há crime onde não há determinação legal, tampouco há pena onde não há direito. Esses truísmos caem por terra quando temos não somente milhares de condenados sem direito a advogados para redigirem seus Habeas Corpus, como o maior líder popular e democrata da história do Brasil é arbitrariamente posto atrás das grades, em um processo que culminou em uma sentença e em uma confirmação de sentença sem uma só tipificação. Não há tal coisa como propriedade atribuída de imóvel, e qualquer estudante de direito civil pode saber disso, assim como não há crime futuro e formação de quadrilha por tipificação psiquiátrica judicial (figura que, aliás, não existe, e juízes, em tese, ainda não podem criar tal coisa no exercício de suas funções).

            A sociedade brasileira não é uma comunidade de aldeões desamparados em pânico com uma população de crocodilos no seu entorno (pelo menos, não ainda). Nem é uma hipótese transcendental de uma ilha em que um massacre de condenados e aprisionados seja defensável, para que ninguém se iluda quanto ao caráter expressivista desses exemplares da razão pura prática. O que Joel Feinberg nos ensina é que nada há de trivial na prática de violência, sobretudo quando ela é legitimada na figura do monopólio estatal do seu exercício. E que é preciso pensar sempre a respeito de seu uso pelo poder. Afinal, a transitoriedade acarretada pelos direitos fundamentais não é uma licença para juízes nem quaisquer autoridades praticarem atrocidades nem para fazerem as vezes de psiquiatras ad hoc em peças imaginativas, contaminadas de paranoia e antijuridicidade. A perspectiva adotada pelo filósofo americano ilumina a extensão possível do processo penal sobre a nossa vida cotidiana, sob uma democracia, isto é, em um mundo que não aceita a coerção injustificada porque isso acarretaria dano contra si mesmo: todos e cada um que vivem sob regras universais. E esclarece como nada é simples nessa conexão lógica e conceitual, entre crime e castigo, em primeiro lugar, porque o poder sobre as nossas próprias vidas é o que está em jogo, aí. Quando direitos fundamentais são violados, e isso devemos a Beccaria, cada um é violado, na exata medida da violação fundamental.

 

Notas e Referências

[1]             Kant, E. Métaphysique des moeurs — Première Partie: Doctrine du droit. Paris, Vrin, 1993, p.216

[2]      Aqui a notícia: https://extra.globo.com/noticias/mundo/apos-ataque-fatal-centenas-de-pessoas-matam-292-crocodilos-na-indonesia-22890161.html

[3]          Kant, E. Op cit, p. 216

[4]             Este artigo e os demais citados a seguir, de Joel Feinberg, estão na coletânea Doing and Deserving: essays in the theory of responsibility, Princeton University Press, 1970. O texto A Função Expressivista da Punição [The Expressive Function of Punishment] está entre as páginas 95 e 118 desta coletânea.

[5]      Feinberg, J. The Expressive Function...Op cit, pp. 98 e 100

[6]      Kant, E. Op cit, p. 218

[7]      Idem.

[8]      Hegel, G.W.F. Principes de la philosophie du droit ou Droit Naturel et Science de L’État em Abrégé — Texte présenté, traduit et annoté par Robert Derathé. Paris, Vrin, 1975, p.143. Diz Hegel neste parágrafo mencionado acima: “A repressão que se destina à figura do criminoso não é apenas justa em si — na medida em que é usta, ela é ao mesmo tempo sua vontade em si, a existência empírica de sua liberdade, seu direito -, mas ela é também um direito próprio do criminoso ele mesmo, quer dizer, um direito posto em sua vontade sob a forma de sua existência empírica ou de sua ação. Pois, na sua ação, na medida em que é a ação de um ser racional, está implicada que ela é algo de universal, que, para ela, uma lei está estabelecida, e deve subsumir-se, como sob um direito próprio”

[9]             Feinberg, J. Doing and Deserving…Op cit, pp. 222–251

[10]           Ibid, p. 222

[11]           Ibid, p. 238

[12]           Ibid, p. 241

[13]           Ibid, p. 246

 

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