Fraude à execução e relativização da presunção de boa-fé do terceiro adquirente

08/12/2019

A questão posta no presente artigo visa enfrentar duas situações muito debatidas na prática judicial. A primeira delas é se, a mera existência de “ação capaz de reduzir o devedor a insolvência” já é o bastante para configurar à fraude à execução, e a segunda, é se a boa-fé do terceiro adquirente, de que fala a súmula 375 do STJ, deve ser dotada sempre de presunção absoluta (jure et de jure) de boa-fé.

As indagações agitadas no presente texto são relevantes, e gozam de certa complexidade, tendo em vista que, se por um lado temos um cenário muito lamentável de fraudes patrimoniais ocorridas contra os mais diversos credores (intuições financeiras, credores trabalhistas, pequenos fornecedores, etc), se tem, por outro lado, a ausência de um sistema único de consulta de bens e processos, o que torna dificultosa as diligências e cautelas dos terceiros adquirentes na compra de bens sujeitos a registro, principalmente no que tange aos imóveis.

 

I – Panorama geral da fraude à execução: breve análise dos diplomas legislativos e dos julgados do STJ sobre a matéria

O inciso II do artigo 593 do Código de Processo Civil de 1973 dispunha que se considerava em fraude à execução, a alienação ou oneração de bens: “quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência”.

Posteriormente, em 18 de março de 2009, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça editou o enunciado de súmula nº 375, que assim dispõe: “O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”.

Após isto, em 20 de agosto de 2014, a Corte Especial julgou, sob a ótica dos Recursos Repetitivos, o Recurso Especial nº 956.943/PR, incluindo-se novos requisitos para configuração da fraude à execução, tais como: (i) Indispensabilidade de citação válida para configuração da fraude de execução; (ii) registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente (Súmula n. 375/STJ); (iii) Inexistindo registro da penhora na matrícula do imóvel, é do credor o ônus da prova de que o terceiro adquirente tinha conhecimento de demanda capaz de levar o alienante à insolvência e (iv) presume-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens realizada após a averbação premonitória[1].

Na sequência cronológica das alterações, se tem em 13 de janeiro de 2015, a promulgação da Lei nº 13.097 de 2015, que em seu artigo 54 consagrou o princípio da concentração dos atos na matrícula do imóveis, informando que somente seria possível o reconhecimento de fraude à execução, se houver: a) registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; b) averbação, por solicitação do interessado, de constrição judicial, do ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença, procedendo-se nos termos previstos do art. 615-A da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil ; c) averbação de restrição administrativa ou convencional ao gozo de direitos registrados, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previstos em lei; e d) - averbação, mediante decisão judicial, da existência de outro tipo de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência, nos termos do inciso II do art. 593 da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil[2].

Em momento posterior a promulgação da Lei nº 13.097/2015, entrou em vigência em 18 de março de 2016, o Código de Processo Civil de 2015 – Lei nº 13.015/2015, que em seu inciso IV do artigo 792 estatuiu, dispositivo bem semelhante ao previsto no inciso II do CPC/73, estabelecendo que se considera em fraude à execução quando: “ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”.

Assim, analisando as alterações legislativas e o entendimento do STJ consubstanciado na Súmula 375 do STJ e no Recurso Especial nº 956.943/PR, tem-se o seguinte: (i) a citação validade do réu é necessária para configuração da fraude à execução; (ii) para reconhecimento da fraude à execução, é necessário o registro da penhora. Em não havendo o registro, cabe ao credor provar a má-fé do terceiro que adquiriu o bem sujeito a registro; (iii) para configurar a fraude à execução, é necessária averbação/registro, pelo credor, no Cartório de Registro de Imóveis de: a) registro de citação de ações reais ou pessoais reipersecutórias; b) averbação de ajuizamento de ação de execução ou de fase de cumprimento de sentença; c) averbação de restrição administrativa, de indisponibilidade ou de outros ônus quando previsto na lei; d) averbação, mediante decisão judicial, da existência de ação cujos resultados ou responsabilidade patrimonial possam reduzir seu proprietário à insolvência.

Diante deste breve panorama geral pelo que passou o instituto da fraude à execução, cumpre agora verificar a existência de harmonia entre os julgados do Superior Tribunal de Justiça, bem como entre as leis supramencionadas.

 

II – O registro da penhora e citação válida como requisitos para a configuração da fraude à execução: inexistência de harmonia entre os REsp Nº 956.943 – PR e o REsp Nº 1.353.295 – PE do STJ.

Conforme podemos notar ao longo da leitura deste artigo, o Superior Tribunal de Justiça, após o julgamento do Recurso Especial nº 956.943/PR consolidou o entendimento que é necessária a citação válida do réu para que se configure a fraude à execução.

Contudo, o inciso IV do artigo 792 do Código de Processo Civil, em nada dispõe sobre a exigência de citação do réu, deixando claro que a mera existência de ação capaz de levar o devedor a insolvência já é o bastante para configurar a fraude.

Ademais, o parágrafo quarto do mesmo dispositivo legal, estabelece que antes de se declarar a fraude à execução, o juiz determinará a intimação do terceiro adquirente para, em querendo, apresente Embargos de Terceiro no prazo de 15 (quinze) dias.

Louvável tal disposição, pois sem embargo de posição contrária, a doutrina sempre apontou pela desnecessidade de citação do réu como requisito da fraude à execução, sendo necessária apenas a ciência por parte do terceiro adquirente[3].

Não obstante, pela própria leitura da súmula 375 do STJ, o registro da penhora também não é requisito necessário e indispensável para configuração da fraude à execução. O que muda é, que em não havendo o registro, caberá a credor (segundo o entendimento do STJ) a prova da má-fé pelo terceiro adquirente.

Em consonância com este entendimento, é o escólio do professor Paulo Henrique dos Santos Lucon, que assim ponderou:

A falta de registro não impede a alegação da fraude de execução, mas tem consequência direta sobre o ônus da prova. Isso significa, em síntese, que o exequente, sem o registro da penhora, tem o encargo de provar a má-fé do adquirente como imperativo de seu interesse. Ou seja, competirá ao exequente provar que o adquirente tinha conhecimento de que estava sendo movida em face do alienante demanda capaz de provocar um substancial desequilíbrio patrimonial de tal modo que ficaria insolvente[4].

Ocorre que, no julgamento do REsp: 1.353.295/PE, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, em dissonância com o entendimento sufragado pelo REsp Nº 956.943 – PR, julgado pela Corte Especial, estabeleceu que a Súmula 375 do STJ não se aplica as execuções fiscais[5].

Ora, questiona-se: qual o motivo da súmula 375 do STJ não se aplicável às execuções fiscais, mas aplicável a todas as outras execuções? Em nossa visão, há uma completa ausência de isonomia entre o REsp: 1.353.295/PE e REsp Nº 956.943 – PR, o que leva a entender que o registro da penhora e a prova da má-fé pelo somente pelo credor, ainda encontra entendimento divergente naquela Corte.

Já no que diz respeito ao controvertido artigo 54 da Lei nº 13.07/2015, não se pode afirmar que somente a averbação da existência de averbação sobre o ajuizamento da execução ou o registro da penhora na matrícula, como requisito indispensável à fraude à execução. Isto porque, como já ressaltado, o registro da penhora é desconsiderado pelo STJ em se tratando de execuções fiscais[6].

No mais, é de se pensar que o credor pode requerer a configuração de fraude em outros bens sujeitos a registro, que não necessariamente um imóvel.

Portanto, em resposta ao primeiro questionamento do texto, temos que o mero ajuizamento de ação capaz de reduzir o devedor a insolvência, seja em processo de conhecimento ou em execução é capaz para a alegação de fraude à execução.

 

III – Presunção absoluta de boa-fé pelo terceiro adquirente e ônus da prova

Pela leitura do REsp Nº 956.943 – PR, em que já tivemos a oportunidade de criticar neste texto, temos que há uma espécie de presunção absoluta de boa-fé por parte do terceiro adquirente do imóvel, devendo a má-fé ser exclusivamente comprovada pelo credor.

Malgrado posição em sentido contrário, o parágrafo quarto do artigo 792 do Código de Processo Civil de 2015, é expresso em dizer que antes da decretação da fraude à execução, o juiz intimará o terceiro adquirente para, em querendo, apresente Embargos de Terceiro no prazo de 15 (quinze) dias.

Agindo de tal maneira, o legislador quis estabelecer, em nossa visão, que o ônus de comprovar a boa-fé deve ser do terceiro adquirente, nos termos do inciso I do artigo 373 do Código de Processo Civil.

Outrossim, a presunção absoluta de boa-fé por parte do terceiro adquirente vem sendo relativizada pelos Tribunais Estaduais, principalmente quando o adquirente não tomou as cautelas necessárias na compra de um imóvel[7].

Não se ignora que o Brasil, necessita, de maneira premente, de um sistema único de pesquisa de bens e processos, tarefa que, em nossa visão, incumbe a todos os Tribunais da Federação em conjunto com Conselho Nacional de Justiça.

Noutro giro, entendemos que a boa-fé do terceiro adquirente deve ser relativizada, em havendo evidências de fortes indícios de conluio fraudulento entre as partes, como por exemplo, a venda de imóvel para parentes, mesmo estes sabendo da existência da dívida, e a falta de cautela de terceiros adquirentes que dispensam as certidões do distribuidor cível e trabalhista da região onde se localiza o imóvel.

 

IV – Conclusões

Diante de tudo que foi exposto, podemos notar que o instituto da fraude à execução sofreu grandes alterações, principalmente na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça entre os anos de 2009 a 2017.

Neste contexto, pode-se afirmar que há uma certa desarmonia na aplicabilidade da súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, eis que a referida Corte Superior possui entendimento no sentido de não aplica-la para as execuções fiscais, e aplica-la para a demais execuções em curso no país, gerando uma certa instabilidade para os credores e para os terceiros adquirentes.

É possível arguir pela configuração de fraude à execução, por meio da existência de “ação capaz de reduzir o devedor à insolvência”, não havendo incompatibilidade entre o CPC/15 e o artigo 54 da Lei nº 13.095/2015, eis que sempre será possível haver a “prova da má-fé por parte do terceiro adquirente”, conforme dispõe a súmula 375 do STJ.

Embora não haja um sistema único de pesquisa de processos e bens no Brasil, a prova da boa-fé do adquirente do imóvel deve ser relativizada no caso concreto (presunção relativa, “juris tantum”), em havendo indícios de conluio fraudulento entre comprador e vendedor, e em havendo ausência de adoção das cautelas necessárias e razoáveis na aquisição de um bem imóvel.

 

Notas e Referências

[1] STJ - REsp: 956943 PR 2007/0124251-8, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 20/08/2014, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 01/12/2014.

[2] Autores como Gilberto Bruschi e Rita Dias Nolasco sustentam certa inconstitucionalidade/inaplicabilidade do artigo 54 da Lei nº 13.097/2015. Para ver mais sobre o tema, recomenda-se a leitura de: Bruschi, Gilberto Gomes/Nolasco, Rita Dias/Amadeo, Rodolfo Da Costa Manso Real, Revista dos Tribunais. Fraudes Patrimoniais e A Desconsideração da Personalidade Jurídica No Código de Processo Civil de 2015

[3] Neste sentido, é a posição de Frederico Fontoura da Silva Cais: “não se mostra lícito deferir tal marco inicial para o momento em que for efetivada a citação do réu. (...) o que mais importa para fim de verificação da fraude é a ciência pelo terceiro adquirente – não pelo réu – da existência do processo em curso” (CAIS, Frederico Fontoura da Silva, Fraude de execução. São Paulo. Saraiva, 2005, p. 132 e 135.)

[4] LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Fraude à execução, responsabilidade processual civil e registro da penhora. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, Porto Alegre, v. 1, n. 5, p. 132 e 139, maio/jun. 2000).

[5] STJ - REsp: 1353295 PE 2012/0218227-9, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 03/10/2017, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 11/10/2017.

[6] Ressalta-se que no julgamento do agravo de instrumento 2227855-14.2015.8.26.0000 o E. Tribunal de Justiça de São Paulo afastou a alegação perpetrada pelo agravante no sentido de que o inciso IV do artigo 54 da lei 13.097/15 seria inconstitucional por violar o inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal de 1.988. Vide TJ/SP - AI: 22278551420158260000 SP 2227855-14.2015.8.26.0000, relator: João Carlos Saletti, data de julgamento: 29/03/16, 10ª Câmara de Direito Privado, data de publicação: 01/04/16

[7]Sobre o tema, consultar:  TJ/SP, Agravo de instrumento nº 2102787-20.2016.8.26.0000, Rel. Vito Gugliemi, j. 27 de outubro de 2016; TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2161835-07.2016.8.26.0000, Rel. Ruy Coppola, j. 17 de novembro de 2016; TJ/SP, Agravo de Instrumento nº 2020018-52.2016.8.26.0000, Rel. Sergio Shimura, j. 11 de maio de 2016.

 

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