Por Amanda Muniz Oliveira – 23/09/2016
A desigualdade no tratamento jurídico referente a homens e mulheres é uma questão antiga. Uma simples folheada nas amareladas páginas das Ordenações Filipinas, legislação vigente no Brasil durante o período colonial revelará, não por acaso, indícios relativos a uma suposta inferioridade feminina – elementos que irão perdurar, legalmente, até o final do século XX.
Se o papel exala um cheiro amargo, a prática jurídica também não se mostra doce. Em pesquisa intitulada Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto Juruá. Acre 1870-1945, a historiadora Cristina Wolff fez emergir do emaranhado de petições, contestações, denúncias, depoimentos e sentenças, histórias esquecidas, relegadas à deriva nos mares da memória jurídica: a história das mulheres em Alto Juruá, no Acre, entre os anos 1870 e 1945. Dentre os diversos fios que tecem as histórias dessas mulheres, podemos encontrar traços de uma justiça cega, fruto de uma sociedade surda, que colabora para o silenciamento de um sem fim de vozes violentadas. A dupla vitimização das mulheres por Themis, deusa que as devia proteger, está ali, retratada e capturada pela supracitada pesquisa.
Sobre a linguagem da violência, assim diz a historiadora:
A sociedade dos seringais do Alto Juruá (AC) era atravessada pela violência em praticamente todos os níveis de relações sociais. A violência marcava a autoridade, o controle, mas também a resistência e a revolta, e assumia o papel de uma linguagem, com a qual muitas coisas eram ditas, e que não se diziam de outra maneira. Ela era a linguagem utilizada entre patrão e seringueiro, entre patrão “regatão” (comerciante ambulante), entre homens e mulheres, adultos e crianças e acontecia também horizontalmente. Por outro lado, o monopólio da violência era reivindicado pelo Estado que se instalou na região a partir de 1904, especialmente através da ação judicial e policial. (Grifo nosso)[1].
Essa linguagem quando falada às mulheres por meio do judiciário, encontrava-se latente em ações criminais, nas quais incesto, estupro e defloramento eram práticas recorrentes. Nos casos analisados por Wolff, todas as vítimas eram menores de 20 anos, sendo que em relação ao defloramento, 54 de 122 vítimas eram menores de 16 anos, e nos casos de estupro, 37 em 38 eram menores de 15. A maioria dos crimes sexuais era cometido por familiares das vítimas, irmãos, tios, padrastos e pais, sendo que em muitos deles seria possível inferir que “o objetivo do denunciante do crime [responsáveis pelas mulheres, menores] é fazer com que o “deflorador cumpra com sua obrigação de casar com a vítima”[2].
Não bastasse as violências físicas, morais e psicológicas sofridas por estas mulheres, a violência institucional é uma marca presente. Em determinado trecho transcrito por Wolff, podemos vislumbrar o constrangimento perpassado pela vítima ao confrontar seu agressor em um ambiente institucional e intimidador, como o judiciário:
O juiz mandou proceder imediatamente a acareação do queixoso José Vidal de Oliveira, da menor Francisca Florinda de Oliveira e do acusado José Teixeira da SiIva[...]. Pela menor Francisca Florinda foi dito que o autor de seu defloramento não foi o seu noivo José Teixeira da Silva, e sim o seu padrasto José Vidal de Oliveira; que isto foi há cerca de 2 anos; que no auto de perguntas acusou seu noivo José Teixeira da Silva de ter sido o autor de seu defloramento porque o seu padrasto José Vidal de Oliveira pediu-lhe que não o acusasse; que é verdade que ela respondente disse ao acusado José Teixeira da Silva que tinha sido o seu padrasto o autor de seu defloramento; que disse a sua mãe, dela respondente, que tinha sido deflorada por seu padrasto e que ela ameaçou-a de botar para fora de casa. Pelo queixoso José Vidal de Oliveira foi dito que há mais de 2 anos, a mesma Francisca Florinda o perseguia, e que ele apenas experimentou-a com a mão, introduzindo o dedo nas partes genitais da mesma menor e que ela gozava com isto; que a menor já não se satisfazia com um dedo só e já aceitava 2 dedos. Pela mesma Francisca Florinda foi dito que não ê verdade o que o seu padrasto José Vidal tenha praticado tais indecências, e sim que, abusando de sua idade e do seu lar, deflorou-a[3].
Francisca não só teve de confrontar seu agressor, mas ouvir perante homens estranhos acusações imorais e, no mínimo, constrangedoras sobre seu comportamento e reputação. Como salienta Wolff, era comum neste tipo de processo proceder a questionamentos sobre a conduta e a vida pregressa das vítimas, seja para averiguar uma possível conduta questionável, por parte das moças, seja para verificar a possibilidade de efetivação de casamento – o que faria com que o agressor se livrasse das acusações.
Além de especulações sobre a moralidade das vítimas, para auferir se teriam ou não provocado seus agressores, ou se mereciam ou não serem agraciadas (sic) com o casamento, era preciso “realizar um exame de corpo delito, no qual se devia verificar a ocorrência de defloramento e se possível precisar a época deste, bem como também se verificavam outras características físicas da paciente que se acreditava auxiliarem a esclarecer os fatos”. Wolff transcreve um destes exames:
Auto de corpo delicto procedido em Maria Ferreira Lima. [...] presentes o respectivo Delegado Major Manoel do Valle e Silva, commigo escrivão do seu cargo abaixo nomeado, os peritos notificados pharmaceutico Jessé de Souza Carvalho e professor Bellarmino Maia de Mendonça [...]; e encarregou-lhes que procedesse o exame na pessoa da menor Maria Ferreira Lima e respondessem aos quesitos seguintes: 1., se ouve (sic) defloramento; 2. qual o meio empregado; 3. se ouve copula carnal; 4. se ouve violência para fim libidinoso; 5. qual o meio empregado, se força physica qual a sua idade presumível. Em consequencia do que, passando os peritos a fazer o exame e
investigações ordenadas e os que julgaram necessários, concluídas as quaes declararam que em uma das salas da Delegacia auxiliar foi-lhes apresentada a exame de defloramento a menor Maria Ferreira Lima, brazileira, solteira, de cór branca, com 15 annos de idade, natural deste município e residente nesta cidade. Refere que, cerca mais ou menos de cinco mezes, foi seduzida pelo amante de sua mãe e offendida em sua virgindade, tendo tido contato sexual com o seu seductor, dando-se dahi em diante a supressão do seu fluxo menstrual, que começou a ter, algum tempo depois, frequentes
nauseas, vomitos e desejo irresistível de frutas acidas; que os seus seios se lhe foram augmentando de volume e o ventre crescendo. Passando a examinal-a, collocando-a, convenientemente deitada em decúbito dorsal, sobre uma meza notaram os peritos que o monte de venus é revestido de pellos curtos, pretos, escassos e que os seus órgãos genitais são bem desenvolvidos e normalmente conformados; a mucosa vulvo-vaginal é de coloração rósea; a membrana hymen que é de forma anular acha-se despedaçada em três pontos, sendo um em baixo sobre a linha mediana e os outros, um em cada lado; os seus três retalhos estão já cicatrizados, formando rugas salientes e de bordos irregulares. Não há escoamento de liquidos pela vulva. O ventre da paciente está
augmentado de volume podendo sentir-se por meio de apalpação o augmento do utero, e os seios tambem augmentados de volume, apresentam um circulo pardo em tomo do mamelão e deixam surdir colostro pela expressão. Os peritos concluem em vista da observação exposta, que a paciente Maria Ferreira Lima, está gravida de cerca de cinco mezes aproximadamente, o que equivale a dizer que houve cópula carnal e que portanto houve defloramento. Respostas aos quesitos: ao primeiro sim; do segundo , o penis em ereção; ao terceiro, sim; ao quarto não; ao quinto, prejudicado; ao sexto, pela constitiução physica da paciente e suas declarações demonstra ter quinze para dezesseis annos[4].
Não é necessário muito esforço para compreender a situação na qual Maria se encontrava: dois peritos, homens, eram legitimados a investigar cada parte íntima de seu corpo, sob a égide de Themis. E tudo o que sobre ele descobrissem seria exposto ao juiz, pelas mãos de um escrivão e disponibilizado nos autos para eventual consulta de quaisquer interessados. A violência precisava ser detida com mais violência e exposição.
Estes processos possuem um tempo e um local específico, mas não deixam de nos trazer a memórias inúmeros casos de violência institucional por parte do judiciário brasileiro. Um dos mais recentes foi transcrito em decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS, em sede de apelação. Em síntese, uma jovem de 13 anos foi violentada pelo pai, tendo por consequência engravidado. Após obter autorização judicial para realizar aborto, e depois da prisão de seu agressor, a vítima procurou a justiça mais uma vez, para retirar suas queixas, alegando que havia mentido, e que seu pai não a estuprara – ainda que um exame de DNA presente nos autos confirmasse a paternidade do agressor.
Para o Promotor de Justiça atuante no caso, porém, a garota ainda precisava sofrer mais um abuso – desta vez, institucional. Conforme transcrito na decisão do TJRS, ao alegar que teria mentido sobre o autor do estupro, a vítima ouviu do Promotor as seguintes palavras:
tu fez eu e a juíza autorizar um aborto e agora tu te arrependeu assim? tu pode pra abrir as pernas e dá o rabo pra um cara tu tem maturidade, tu é auto suficiente, e pra assumir uma criança tu não tem? Sabe que tu é uma pessoa de muita sorte Amanda, porque tu é menor de 18, se tu fosse maior de 18 eu ia pedir a tua preventiva agora, pra tu ir lá na FASE, pra te estuprarem lá e fazer tudo o que fazem com um menor de idade lá. Porque tu é criminosa... tu é. (silêncio).... [...] Agora assim ó, vou me esforçar pra te “ferrá”, pode ter certeza disso, eu não sou teu amigo[5].
Interessante destacar que a juíza que realizava a audiência manteve-se inerte, não manifestando qualquer interesse em proteger a vítima dos excessos desde segundo agressor.
Não é novidade que em casos de violência sexual a mulher vítima seja desprovida de honra, de credibilidade, de dignidade e de amigos. Nem todos os profissionais da área jurídica estão aptos a lidar com situações complexas, que exigem delicadeza e, sobretudo, empatia. Em um mundo no qual indivíduos e suas vidas são reduzidos a números e peças processuais, não é novidade a indiferença e a banalização da dor do outro.
Se tais situações não são inéditas, ao menos nem sempre são aceitas com passividade. O caso da jovem gaúcha não encerra em si apenas permanências, mas também rupturas. Merece destaque as represálias presentes no voto da juíza relatora da apelação:
a menina necessitava de apoio de quem conhece estes tristes fatos da vida e não de um acusador, pois a função do Promotor de Justiça é de proteção da vítima e, no caso, ao que tudo indica, ele se sentiu ludibriado pela menina, por ter opinado favoravelmente ao aborto e, posteriormente, ela não confirmar a denúncia. O pior de tudo isso é que contou com a anuência da Magistrada, a qual permitiu que ele fosse arrogante, grosseiro e ofensivo com uma adolescente. Um verdadeiro absurdo que necessita providências![6]
O juiz vogal também manifestou seu repúdio:
No processo em exame, entendo deva fazer algumas ponderações, em relação à atuação do Promotor de Justiça, bem como da magistrada que presidiu a audiência realizada dia 20 de fevereiro de 2.014 (CD de fl. 70), na qual foi ouvida a vítima, uma adolescente que então tinha apenas 14 anos de idade. Para dizer o menos, foi lamentável. O que se percebe, em relação ao Dr. Promotor de Justiça, que além de não ter lido atentamente o processo, embora se disponha a participar de feito em que se investiga a prática de violência sexual contra crianças e adolescentes, não tem conhecimento algum da dinâmica do abuso sexual, bem como confunde os institutos de direito penal, além de desconsiderar toda normativa internacional e nacional, que disciplina a proteção de crianças e adolescentes. Fosse o pai da vítima quem nela provocou a gravidez, o que efetivamente se confirmou, fosse outro homem, qualquer fosse ele, teria a vítima direito a postular o aborto legal, pois tendo ela engravidado aos treze anos de idade, foi vítima de estupro, na forma estabelecida no artigo 217-A do Código Penal. Portanto, a irresignação apresentada pelo Dr. Promotor de Justiça na solenidade, dizendo que iria “ferrá-la” e não descansaria enquanto ela não dissesse quem a engravidou, e que faria o possível para colocá-la na cadeia, apresentou-se ilegal e inadmissível. Lembremos, ela, uma menina com quatorze anos quando do depoimento, era vítima de um estupro, concorde o não o Dr. Promotor de Justiça com a figura do aborto legal[7].
Não se pode deixar de observar que os magistrados não se calaram e nem aceitaram uma situação historicamente naturalizada, como a violência institucional, com passividade. Dentro dos limites de possibilidades, o Promotor encontra-se afastado (pediu férias) e conforme o subprocurador geral de Justiça, será devidamente investigado.
É algo ínfimo perante a violência sofrida pela vítima. Mas não podemos nos esquecer que não houveram vozes institucionais levantadas quando Francisca teve sua moral questionada, ou quando Maria submeteu-se ao exame de corpo de delito realizado por mãos masculinas. Tempos diferentes, mas também espaços diferentes. Não podemos afirmar com certeza que a história das mulheres do Acre está sendo escrita de forma diferente; mas tendo como parâmetro reações questionadoras como no caso do TJRS, podemos acreditar que existem precedentes e embasamentos suficientes para não mais aceitar que Franciscas, Marias e Amandas sofram violência institucional nas garras de Themis.
Notas e Referências:
[1] Wolff, Cristina. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto Juruá. Acre 1870-1945. 1998. 284 f. Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1998. p. 196.
[2] Wolff, Cristina. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto Juruá. Acre 1870-1945. 1998. 284 f. Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1998. p. 237.
[3] Wolff, Cristina. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto Juruá. Acre 1870-1945. 1998. 284 f. Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1998. p. 234.
[4] Wolff, Cristina. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto Juruá. Acre 1870-1945. 1998. 284 f. Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1998. p. 239.
[5] Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento.php?numero_processo=70070140264&ano=2016&codigo=1605183>. Acesso em 22 nov. 2016.
[6] Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento.php?numero_processo=70070140264&ano=2016&codigo=1605183>. Acesso em 22 nov. 2016.
[7] Disponível em: <http://www.tjrs.jus.br/site_php/consulta/download/exibe_documento.php?numero_processo=70070140264&ano=2016&codigo=1605183>. Acesso em 22 nov. 2016.
Wolff, Cristina. Marias, Franciscas e Raimundas: uma história das mulheres da floresta Alto Juruá. Acre 1870-1945. 1998. 284 f. Tese (Doutorado em História Social), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, 1998.
Amanda Muniz Oliveira é Doutoranda em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – PPGD/UFSC. Mestra em Direito pelo PPGD/UFSC. Bacharela em Direito pelas Faculdades Santo Agostinho de Montes Claros – MG – FADISA. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito – NECODI (Cnpq/UFSC). Pesquisadora no Direito das Mulheres (CCJ/UFSC). Bolsista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3656942869359698. E-mail: amandai040@gmail.com.
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