Formas básicas de sociabilidade: marco para uma teoria unificada das relações sociais humanas (Parte 1)

02/10/2015

Por Atahualpa Fernandez - 02/10/2015

“La evolución ha generado unos seres curiosísimos, inéditos en cualquier otra parte conocida. Esos organismos extravagantes que se mueven por sí solos, duplican e intercambian sustancias con el medio, están dotados de una propiedad especial que llamamos comportamiento que emana de un sistema nervioso pilotado por un cerebro.”

J. González Álvarez

Estruturas da vida social

Em 1991, Alan P. Fiske (Structures of Social Life: The Four Elementary Forms of Human Relations), apoiado em suas próprias observações antropológicas e na leitura dentro de sua teoria dos descobrimentos de um grande número de autores em múltiplos campos - o que ele chama una aproximação  “indutiva” -, desenvolveu um modelo de relações sociais humanas que constituem uma sorte de arquétipos fundamentais inatos (que todas as culturas humanas utilizam, normalmente combinando vários deles) para definir relações e roles típicos, com os que logo organizar os diversos âmbitos sociais. Sobre a base deste trabalho acerca da natureza das relações humanas e sua respectiva variação transcultural, Fiske propõe que existem quatro formas elementares de sociabilidade, quatro modelos básicos para compreender as relações sociais, cada qual com uma psicologia distinta.

Descritos brevemente, os modelos elementares propostos por Fiske são:

Comunal Sharing (comunidade): relação de equivalência em que as pessoas têm um forte sentido de identidade de grupo, isto é,  se fundem para o propósito da relação, de maneira que os limites individuais se tornam irrelevantes. As pessoas se fixam na pertença grupal e na identidade comum, não na individualidade ou nas diferenças. As decisões se tomam por consenso unânime e predomina a atitude de cooperação e a solidariedade. Importa-lhes o grupo, superior a cada um dos indivíduos, no fato de pertencer a ele e o contraste com aqueles que não pertencem.

Authority Ranking (autoridade): relação em que cada um é considerado como possuidor de uma importância, um status ou rango social determinado por certa característica. São relações assimétricas que se materializam em uma inclusão hierárquica de sujeitos de rangos mais baixos como subordinados na esfera de outros de rango mais alto. As pessoas se vinculam entre si a partir do reconhecimento e o respeito por um grupo ou um indivíduo que é quem toma as decisões. A assimetria das relações se aceita como justa e as atitudes que predominam são o respeito, a lealdade e a obediência. Este respeito pode estar baseado na idoneidade, a origem ou o temor. Segundo Fiske, a subordinação que surge da aplicação deste modelo é legítima; os inferiores respeitam a relação de subordinação, mostram deferência, lealdade e obediência, a câmbio do qual recebem proteção, ajuda e apoio de seus líderes.

Market Pricing (proporcionalidade ou mercado): relação mediada por valores determinados por um sistema de mercado. Neste modelo, as pessoas se concebem essencialmente como desiguais e com posições diferentes dentro de seu grupo social. Consideram que cada um deve tomar e avaliar o que se lhe oferece segundo seus desejos e possibilidades de acesso. As relações sociais que se estabelecem não são recíprocas, senão de interesse mútuo como as que ocorrem entre cliente e comprador. Valora-se a liberdade entendida como não interferência, o mérito e a competência. Os indivíduos decidem interagir socialmente se resulta racional fazê-lo de acordo a esses valores, que definem uma métrica universal (em preço, utilidade ou tempo) com a qual é possível comparar quantitativamente pessoas e recursos, sejam ou não qualitativamente semelhantes. A avaliação e a estrutura da interação se expressa de maneira proporcional em termos de razões de intercâmbio.

Equality Matching (igualdade): relação em que existe um vínculo relacional igualitário entre pares, que são indivíduos distintos e separados, mas iguais aos efeitos da relação. Os indivíduos aceitam que não são iguais em sentido estrito, senão em algumas propriedades ou bens aos que têm um direito a aceder todos por igual. As relações são simétricas. As decisões se tomam por voto ou consenso majoritário. A presença social (contribuição, benefícios, influência, etc.) de cada agente corresponde “um a um” com a do outro. As equivalências categóricas permitem que as relações se equilibrem e se expressem em tomar turnos, reciprocidade em espécie, vingança “olho por olho”, distribuição em partes iguais, etc. Para conservar a igualdade, os bens e interesses em jogo devem ser qualitativamente iguais, ou fazer-se equivalentes por um acordo social. Predomina a reciprocidade e a justiça no sentido de dar a cada um o que lhe pertence.

Ao sustentar que estas quatro estruturas vinculantes elementares e suas variações justificam todas as relações sociais entre todos os seres humanos de todas as culturas, Fiske sugere, como única explicação possível deste fato, que estão arraigadas na complexa estrutura da mente humana, isto é, que vão estreitamente ligadas em nosso programa ontogenético ao desenvolvimento da faculdade (e ainda da necessidade emocional) de travar relações sociais. São estruturas formais; em conjunto formam uma espécie de "gramática generativa" (teoria a partir da qual se pode fundar um número infinito de novos, mas compreensíveis enunciados) das relações sociais, que é enriquecida de conteúdo concreto pela tradição de cada cultura. Como explica Steven Pinker, cada um dos quatro modelos emerge nas diversas culturas em uma grande diversidade de ações sociais, crenças ou juízos, pelo que não podem ser o produto de condições particulares da experiência subjetiva de cada indivíduo, senão que devem ser produtos endógenos da mente humana gerados por modelos universalmente compartidos de e para as relações sociais.

Os quatro modelos são utilizados pelos participantes em uma sociedade para coordenar suas ações em relações sociais significativas: estruturam os roles focais da sociedade, permitem explicar, compreender e predizer a ação dos demais e, portanto, ajustar-se a ela de uma maneira que os outros podem por sua vez identificar e compreender. Por outra parte, possuem uma função normativa, enquanto estruturam as expectativas mútuas entre os participantes em uma relação, e também o que se espera de terceiros (por exemplo, de quem mantém outras relações com esses participantes e devem eventualmente sancionar as transgressões) e de quartos (por exemplo, quem observa se os terceiros cumprem ou não em sancionar aos transgressores com os quais se relacionam).[1]

Esta ideia proposta por Fiske – com exploração do significado empírico de que a arquitetura cognitiva de nossas mentes seja constitutivamente social – parece dar  resposta  a muitos dos interrogantes sobre a forma como a organização de domínio específico da mente humana afeta as relações sociais  e condiciona nossas intuições morais: o decidir entre o que é bom e o que não o é em relação aos próprios interesses e dos demais supõe o sentido do que é socialmente apropriado no entorno em que estabelecemos nossos vínculos sociais relacionais.

Modelos elementares de sociabilidade

Pois bem, para desenhar uma ideia mais precisa da interessante teoria fiskeana, mostrarei à continuação em que consiste cada um dos quatro modelos propostos, analisando e destacando suas respectivas singularidades.

Mediante o módulo de comunidade as relações estão baseadas em um modelo no qual os membros do grupo são equivalentes e indiferenciados em sentido moral, ou seja, no que concerne ao domínio social em que se desenvolve. Ao proporcionar um critério de pertença grupal, as possessões do grupo estão dadas de forma igual para todos os membros da comunidade, seja qual for sua contribuição específica. Por exemplo, em muitas sociedades de caçadores-coletores, seus membros compartem a carne dos animais capturados com particularidades tais como a de que ao caçador da peça cabe uma proporção de comida inferior ao necessitar este menos que seus congêneres, ou a de que se reparte entre os membros a comida, os utensílios e os instrumentos de caça àqueles que lhes necessitam, independentemente de sua contribuição.

Em muitas sociedades, esta forma de compartir coisas não só se dá no núcleo familiar reduzido, senão também com outros de fora dele: em um almoço entre amigos, por exemplo, ninguém fiscaliza quem come mais que quem. A estrutura de comunidade também se manifesta na manutenção de terras comuns ou em uma determinada organização produtiva na qual as pessoas trabalham coletivamente, sem que isso implique a designação de um número de tarefas específicas, nem a fixação de responsabilidades diferenciadas.

Ademais, como animais sociais que formam e vivem em grupos, os seres humanos têm antiquíssimos instintos de comportamento de manada e as relações comunitárias nos ajudam na orientação inconsciente da vida diária, condicionam e manipulam nossa conduta social e, inclusive, nossas convicções, considerações e decisões morais. Por dizê-lo que alguma maneira, dado que nosso desenho epigenético e nossa identidade é tribal, em grande medida nos guiamos (intuitivamente) por pautas e comportamentos que experienciamos em nossa comunidade – para o bem ou para o mal.


Notas e Referências:

[1] Nota bene: Para Fiske, uma relação social, cujas características penetram cada aspecto da vida humana e se caracterizam por ser um modelo de coordenação (de cognição social, de interação, de avaliação moral e emocional) entre indivíduos, existe quando qualquer pessoa atua sob a assunção implícita de que as pessoas que com ela interagem o fazem reciprocamente com referência a significados imputadamente compartidos e de maneira culturalmente apropriada, ou seja, mais bem baixo a assunção implícita de significados compartidos em um conjunto de ações coordenadas de condutas recíprocas.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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