Por Jorge Coutinho Paschoal – 14/07/2016
O formalismo, como todos sabem, desempenha um importante papel no que tange à delimitação dos direitos e deveres existentes no processo[1], sobretudo o penal.
Como bem coloca Vicente Greco Filho, “se a forma limita a atividade de um, tem razão de ser, porque preserva o espaço do outro”[2].
João Mendes de Almeida Júnior, a seu tempo, já bem ensinava que se as formas fossem deixadas ao critério das partes, ou mesmo à discrição do magistrado, a justiça marcharia sem rumo, sendo que, “mesmo sob o mais prudente dos arbítrios, seria uma ocasião constante de desconfianças e surprêsas. É essa a razão pela qual, se os legisladores puderam, em algumas épocas, deixar as penas ao arbítrio dos juízes, nunca deixaram ao mesmo arbítrio as formalidades de suas decisões”[3].
A forma exerce, portanto, uma função de destaque no que concerne à demarcação da conduta dos sujeitos processuais[4]. Tamanha é a sua importância ao processo que - conforme Cândido Rangel Dinamarco adverte, justamente um dos pais da moderna teoria da instrumentalidade - “jamais poderá postular o exagerado desapego às formas porque isso importaria criar situações perigosas para os litigantes, com risco de injustiça”[5]. Somente o formalismo imprime ao processo a noção de organização, evitando a desordem que adviria se não houvesse regras, conferindo-se assim uma maior previsibilidade quanto às consequências decorrentes da prática de cada ato[6].
O processo formalizado cumpre melhor o seu papel de proteção de todos os que nele atuam, sendo que essa proteção não se circunscreve tão-somente contra o arbítrio proveniente do juiz, mas também em relação ao abuso das próprias partes. Como adverte Antonio do Passo Cabral, a “arbitrariedade nem sempre advém dos órgãos do Estado! Ao mesmo tempo em que previne o tratamento desigual do julgador, a formalidade evita os excessos de uma parte em relação à outra, atuando como fator de isonomia e paridade também entre os contendores”[7].
Sem essa (de) limitação da conduta dos sujeitos processuais, seja do magistrado, bem como dos demais participantes, as partes sempre poderiam ser surpreendidas com a atuação que cada um quisesse imprimir ao processo, o que daria margem a todo tipo de abuso[8].
Com o formalismo, não se procura exclusivamente organizar (burocraticamente), mas, mais que isso, disciplinar[9] o que pode e o que não pode ser feito ao longo do seu curso, isto é, até onde podem ir seus participantes. Como bem ensina Ada “a regulamentação legal das formas representa uma garantia das partes em suas relações recíprocas e em suas relações com o juiz. É por isso que as formas do procedimento devem ser certas e determinadas”[10].
Há muitas funções desempenhadas pelo formalismo.
Muito ao contrário do que se poderia pensar (de que o procedimento formalizado só acarretaria maiores delongas à justiça), a experiência mostra que as formas são importantes para a celeridade e o bom curso do processo. É justamente a ausência de balizas que produz confusão e dúvidas, o que acarretaria atrasos, como ensinam José Frederico Marques[11], entre nós, e Giuseppe Chiovenda[12], na doutrina estrangeira.
Sem regras, isto é, sem a existência de um caminho previamente traçado, ou melhor, de um percurso a ser seguido, correr-se-ia o risco de a atividade processual “perder-se em providências inúteis ou desviadas do objetivo maior, que é a preparação de um provimento final justo”[13]. As formas instituídas para o processo representam, por isso mesmo, o método escolhido pelo legislador em prol de uma melhor investigação dos fatos, o qual, segundo se presume, constitui o melhor caminho para se alcançar(em) o(s) fim(ns) almejado(s) no processo.
Segundo José Roberto dos Santos Bedaque, “pressupõe-se tenha o legislador adotado a técnica mais adequada a proporcionar o resultado desejado”[14].
É equivocado imaginar que, sem uma maior normatização, sem maior regramento, se conseguiria chegar mais rápido a uma decisão justa e correta. A rigor, o que poderia ocorrer é justamente o contrário. Sem método é que não se chega a lugar algum.
Se o formalismo pode tornar o procedimento um pouco mais lento e, em alguns casos, um tanto quanto burocrático, não se pode olvidar que as formalidades evitam o atraso maior que poderia decorrer da desordem, da dúvida e confusão provenientes da falta de um melhor regramento e disciplina no processo[15].
Outrossim, o formalismo, ao disciplinar a atividade das partes, bem como a conduta do juiz (em especial: quando este deve decidir), contribui para garantir a dialeticidade do processo. Essa dialética, que também pode ser lida sob a locução do contraditório, contribui para o escopo final da justiça, pois, ao se conferir uma adequada participação das partes, o procedimento ganha em informação, tendo o magistrado melhores condições de analisar o caso e conferir razão àquele que tem direito. Chega-se mais facilmente à verdade.
Com efeito, se não houvesse o respeito às formas legalmente instituídas, as partes nunca saberiam bem ao certo qual seria, por exemplo, o momento exato de agir e reagir, ou mesmo de argumentar e de replicar, de provar e oferecer contraprova.
Por isso, ensina a doutrina que a forma constitui uma “faceta assaz importante da própria garantia fundamental do contraditório”[16], o qual tem sua realização “garantida apenas pela forma em sentido amplo”[17] (formalismo). A observância às formas assegura o contraditório e esse respeito também serve para garantir a imparcialidade do julgador[18], pois o respeito às balizas legais é um indicativo de sua equidistância em relação à causa e à parte.
Como regra geral, o cumprimento e a observância das formas pelo magistrado não deixa de constituir uma garantia para a própria dignidade da Justiça (instituição), sendo essa obediência, a princípio, um penhor da imparcialidade de seus juízes[19]. É sintomático que o juiz, ao passar a não seguir os protocolos (que têm razão de existir) - sem qualquer justificatica maior para tanto -, já formou o seu convencimento, tendo, provavelmente, perdido a imparcialidade necessária para bem julgar o caso. Ora, um juiz que - de modo consciente e deliberado - não segue as regras do devido processo, acaba perdendo a legitimidade para julgar.
Ao estruturar e impor ordem ao procedimento, garantindo uma maior isenção de espírito por parte do magistrado, com vistas a garantir segurança e liberdade para as partes, as formas também potencializam uma isonômica aplicação do direito, especialmente no que respeita às questões de fundo do conflito. A rigor, se cada juiz pudesse conduzir o processo como bem quisesse, conforme o seu “bom senso”[20], é inquestionável que - em um e/ou outro caso – uma parte teria tratamento privilegiado que a outra conforme o humor ou a tendência do juiz instituído para conduzir a causa.
Isso, além de atentar contra a uniformidade de tratamento que deve ser dispensada a todas as partes no curso de cada processo, poderia propiciar, em maior ou menor amplitude, o risco de se proferirem decisões diferentes para casos iguais. Imagine-se a situação em que um magistrado entenda que a parte perdeu uma chance processual (preclusão) e um segundo, em outro caso (em tudo similar), entenda que não. Sem um regramento do processo (padronização de todos os procedimentos), haveria, de fato, um risco maior de serem proferidas decisões díspares.
A esse respeito, Carlos Alberto Álvaro de Oliveira bem enfatiza que se os rumos do procedimento fossem deixados ao capricho de cada magistrado, isso colocaria em risco a igualitária realização do direito: a discricionariedade de cada julgador quanto ao modelo de processo a ser seguido afetaria a atuação das partes em cada processo (oportunidades de manifestação, de defesa, etc.), o que comprometeria, inevitavelmente, o conteúdo das decisões de mérito[21].
É importante destacar que o formalismo, longe de se restringir apenas ao interesse particular deste ou daquele sujeito envolvido no processo, constitui interesse maior, isto é, de todos, pois o cumprimento da forma leva à expectativa de que a solução alcançada é correta e justa. Apesar de o respeito à forma não garantir, por si, o alcance da justiça das decisões (isto é, sua correspondência com a verdade), cabe ressaltar que, ainda assim, a observância da forma constitui uma condição, em regra, importante para a confiança dos cidadãos na justiça, o que torna as decisões legítimas.
Essa maior confiança no direito e na justiça decorre da importante função política desempenhada pelas formalidades processuais[22]. O cumprimento das formas constitui um fator de legitimação das decisões judiciais, o que é muito importante, haja vista um dado prático da experiência: ainda que a solução conferida seja correta e absolutamente justa, sempre haverá descontentamento por parte de alguém. Muito dificilmente a parte vencida será convencida. E esse natural inconformismo seria muito maior se a solução conferida ao caso não tivesse se pautado em regras prévias e claras.
O procedimento (ou melhor, o respeito ao procedimento legalmente instituído), nesse sentido, é um fator de legitimação de qualquer decisão tomada pelo poder estatal, seja em âmbito legislativo, administrativo ou judiciário[23]. As formalidades desempenham um importante papel de legitimação do processo, incutindo respeito às decisões proferidas.
Contudo, ao lado dessas importantes funções exercidas pelas formas processuais, o formalismo, se mal compreendido e aplicado, pode gerar algumas deformações graves.
Apesar das vantagens de um procedimento inteiramente formalizado, é importante alertar que o formalismo também suscita alguns inconvenientes: se mal dosado, pode implicar um apego excessivo da forma pela forma, o que não é desejável. Esse tipo de formalismo poderá se consubstanciar em uma garantia às avessas, já que a forma pode ser usada em detrimento dos valores que, em tese, visaria tutelar.
Para visualizar melhor o exposto, nada melhor que analisar a história, sobretudo no que tange aos mais variados tipos de processos penais em seu curso, sendo que, nos procedimentos conhecidos por inquisitórios, houve, certamente, previsão de formalidades; contudo, apesar da instituição de um formalismos, verificava-se que as formas eram absolutamente inúteis, já que instituídas com o fim único de tornar o processo confuso, dada a finalidade de dificultar a defesa.
Luigi Ferrajoli observa que “normas deste tipo chegaram ao seu máximo desenvolvimento nos velhos regimes inquisitivos, que inventaram ‘uma multiplicidade de formalidades’, ‘dilações’, ‘intrigas e labirintos’, cujo único efeito foi o de tornar ‘complicada a simples máquina dos juízos públicos’, até o ponto de a história do procedimento penal parecer a Bentham ‘o contrário do das demais ciências: nas ciências se vão simplificando cada vez mais os procedimentos acerca do passado; na jurisprudência, ao contrário, se vão complicando cada vez mais. Enquanto todas as artes progridem multiplicando os resultados com o emprego de meios mais reduzidos, a jurisprudência retrocede, multiplicando os meios e reduzindo os resultados’”[24]. Tão deletério quanto à ausência da forma é o apego radical a ela, o que pode fazer do procedimento um labirinto[25].
Assim, nesse modelo de justiça, as formas, em vez de oferecerem garantia, acabam funcionando como armadilhas, levando à violação dos valores que, a princípio, visariam resguardar; em outras palavras, não se pode fechar os olhos para o fato de que, muitas vezes, “a forma, em si mesma, pode se transformar em instrumento de injustiça substancial”[26].
A defesa da forma pela forma pode esconder um modo arbitrário de exercício do poder. Como bem expõe Alberto M. Binder, “nada menos inocente que a ideologia do ritualismo que ocultou e assegurou décadas de processos penais violadores das constituições e cruéis para aqueles que caíam em suas redes ou pretendiam uma verdadeira justiça através deles”[27].
O Autor argentino descreve esse tipo de formalismo como um monstro de muitas cabeças, sendo que nem sempre as mais espantosas estão à mostra[28].
Há uma série de funções que, de fato, podem estar por trás do apego ao formalismo excessivo: (1) seleção de casos que chegam, efetivamente, a uma decisão de mérito, já que a defesa do “ritual” (sem função) pode servir de filtro para escolher o que se quer, ou não, apurar e punir; (2) restrição de direitos, pois a forma pode dificultar ou mesmo anular o seu exercício; (3) forma subrreptícia para prejudicar o acusado, anulando-se o ato ou o procedimento para dar nova oportunidade à acusação[29] (inversão ideológica do discurso garantista[30]); (4) um tipo de controle burocrático dos atos dos funcionários, juízes e promotores e (5) objetivo de tentar conferir legitimidade a um procedimento muito distante de um devido processo legal[31].
Como alertam Antonio Tovo Loureiro e Salo de Carvalho, deve-se tomar cuidado com o formalismo (melhor dizendo, com um “discurso” formalista radical, vendido como sempre bom ou garantidor), pois não se leva em conta que ele, às vezes, “instrumentaliza os Estados autoritários, precisamente pelo afastamento que proporciona entre a burocracia judicial e os subordinados, entre aqueles que possuem e os que não detêm o domínio da técnica. Assim, em muitos casos, legitima-se proposições vazias com vestes pseudojurídicas, impregnadas pelo repressivismo”[32].
Aliás, esse formalismo, a princípio, inócuo, se encontra presente, de modo mais sutil, não só nos atos jurídicos em si, mas ao longo das práticas de toda a persecução penal, a qual está circundada por diversos simbolismos: tanto na arquitetura dos tribunais quanto na disposição das salas de julgamentos. Também está subrreptício na localização dos atores processuais, dentro das salas de audiência e das sessões de julgamento: geralmente, o acusador encontra-se situado ao lado do magistrado, ambos localizados ligeiramente acima do réu e de seu advogado, conforme muito bem expõe Rubens Casara, com que estamos inteiramente de acordo[33].
Já dizia Calamandrei que “um advogado espanhol, que assistia a uma das nossas audiências penais, admirava-se por a bancada de advogados estar colocada mais abaixo que a dos juízes. Em Espanha, pelo contrário, a tradição exige que estejam colocadas ao mesmo nível, significando-se dessa forma que as duas missões são iguais”[34].
Muitas solenidades também podem ser encontradas nos objetos que guarnecem a justiça: tapetes vermelhos, móveis escuros e pesados, lúgubres (para falar o mínimo), os vitrais, que mais fazem o tribunal parecer uma Tribunal religioso, onde não se julgam apenas fatos, mas a alma das pessoas. O próprio modo como as salas de julgamento são projetadas confere um ar teatral, de grande espetáculo aos julgamentos, o que, em alguns casos, chega a intimidar não só o acusado, mas o próprio advogado[35].
Aliado a isso, o processo penal está repleto de diversas cerimônias degradantes, cuja principal finalidade é expor ainda o imputado, submetendo-o a um estado de humilhação, que – não raras vezes, por não ter justificativa idônea - não se mostra nada razoável, causando-lhe sofrimento desnecessário e ansiedade (stato di prolungata ânsia, conforme adverte Aury)[36].
A tentação formalista, por outro lado, pode bem servir a juízes acomodados, preguiçosos e/ou temerosos de tomar qualquer decisão, os quais se apegam à forma como pretexto para proferirem decisões simplistas, eximindo-se do peso e da responsabilidade de julgar o caso[37].
Lembrando que, de todos os tipos de magistrados, o pior é justamente o que não decide, seja porque não quer, seja porque tem medo.
Esse formalismo sem sentido, no final das contas, pode criar um terreno fértil para se fazer das formalidades o exercício da chicana jurídica de todas as pates, desviando a atenção das questões de fundo, relacionadas ao mérito da causa: em seu lugar, instituir-se-ia um tipo de litígio paralelo, isto é, um dissídio indireto[38], no qual só se discutem formalidades vazias de sentido.
Vistos os benefícios e possíveis malefícios de um direito formalizado, de rigor concluir não ser possível abdicar do formalismo no direito, sobretudo na seara penal.
Na verdade, o problema não reside no formalismo em si, mas, muito ao contrário, no seu mau emprego. Nisso, praticamente, toda a doutrina está de acordo, até mesmo aquela mais ligada à teoria da instrumentalidade e a favor de uma maior relativização das formas[39]. De fato, não se pode ir contra o formalismo no direito, pois ele representa uma irrenunciável garantia para todos, podendo-se questionar apenas qual a sua exata medida[40].
Ada, Antonio e o Professor Antonio Scarance Fernandes bem mostram que “a regulamentação das formas, quando bem aplicada, longe de representar um mal, constitui para as partes a garantia de uma efetiva participação na série dos atos necessários à formação do convencimento judicial e, para o próprio juiz, instrumento útil para alcançar a verdade sobre os fatos que deve decidir. O que deve ser combatido, nessa matéria, é o excessivo formalismo, que sacrifica o objetivo maior de realização da justiça em favor de solenidades estéreis e sem nenhum sentido”[41].
Até mesmo o Professor José Roberto Bedaque, um dos Autores mais críticos da forma no processo moderno, pondera e discorre que “a forma na medida certa é fator de garantia. A ausência dela enseja abusos, normalmente por parte dos mais fortes”[42].
Muito distante de ser um elemento indesejável, o formalismo que se renega no processo é o identificado “como culto irracional da forma, como se fora esta um objetivo em si mesma”[43]. O formalismo, se bem pensado e bem aplicado, é sempre um dado absolutamente necessário e imprescindível no direito, mormente em âmbito penal e processual penal.
Na Alemanha, Claus Roxin bem observa que, dentro da lógica do procedimento penal ínsito ao Estado de Direito, a proteção do que chama por princípio da formalidade não é menos importante que a condenação dos culpados e o restabelecimento da justiça e da paz pública[44]. Na Itália, Luigi Ferrajoli discorre que “nenhum valor ou princípio é satisfeito sem custos”[45] residindo aí um dos preços que se deve pagar com o formalismo, que, certamente, seria muito maior caso simplesmente inexistisse. Uma coisa é, em alguns casos, reconhecer a necessidade de simplificação das formas: o que não significa desnecessidade, pois as formas são sempre imprescindíveis[46].
O processo nasce, naturalmente, para demorar - aliás, racionalmente, como bem pondera Aury Lopes Júnior[47]: o que constitui uma garantia contra julgamentos injustos, temerários e levianos. A pressa é inimiga da verdade e da justiça, sendo que a demora decorrente do trâmite processual e das regras a ele inerentes é uma aliada da prudência. A forma, nesse sentido, serve como um antídoto contra as paixões e um freio ao ímpeto e clamor dos justiceiros.
Na esteira da doutrina de Hassemer: “O objeto da justiça é seguramente o oposto das necessidades executivas: não é o combate, mas a ponderação, não é a determinação, mas a prudência. Ela necessita de tempo para seus produtos, não pode, em geral, prometer soluções para problemas, mas, no máximo, decisões para problemas ou até mesmo, somente a análise desses problemas. Ela provocará, querendo ou não, a frustração de expectativas e o acréscimo de lesões, não podendo representá-lo melhor do que ela realmente o é. Não lhe é permitido, geralmente, adiantar-se à situação, caso esta pegue fogo, ela deve esperar até ser chamada. A justiça surge, então, quando a criança já caiu no poço. Ela não impulsiona, mas acompanha, sob o peso dos princípios, que mais impedem do que possibilitam uma solução rápida e efetiva do problema: proporcionalidade ao invés de intervenção, profundidade ao invés de prontidão, todo tipo de atenção e ponderação ao invés de uma decisão imediata”[48].
Tão importante é o formalismo à persecução penal que a doutrina chega a afirmar que a legalidade do processo penal constitui um “valor em si mesmo”[49]. De modo que, como bem afirma Ada Pellegrini Grinover, “assim entendido, o rito probatório não configura um formalismo inútil, transformando-se, ele próprio, em um escopo a ser visado, em uma exigência ética a ser respeitada, em um instrumento de garantia para o indivíduo”[50]. Vista a questão por esse ângulo, tem razão Alois Troller ao discorrer que o “princípio da rigidez das formas sempre permaneceu como a espinha dorsal do processo”[51], podendo-se concluir ser questionável falar em um suposto princípio da “liberdade das formas”[52], tão alardeado em processo civil, mormente no que tange à seara penal[53].
O formalismo não pode ser menosprezado com base em um discurso equivocado, no sentido de que a legalidade das formas deveria ceder ante os imperativos do alcance da justiça substancial.
Restaria perguntar o que seria essa tal justiça e quem diria quando ela é obtida? Reside aí uma questão antiga, mas sempre recorrente ao direito: o dilema entre justiça e segurança jurídica, como expõe Jorge de Figueiredo Dias[54], que bem pode ser pensado, no processo, entre respeito à forma e o alcance da verdade e da justiça. A dicotomia, no entanto, é apenas aparente, pois, como pondera Cândido Rangel Dinamarco, só se pode considerar uma decisão justa se obtida por meios justos[55].
Dessa maneira, a justiça substancial não afasta, mas, em verdade, pressupõe a segurança jurídica inerente ao respeito às formas instituídas. Constitui, portanto, uma falácia sustentar uma separação radical entre justiça e segurança jurídica, entre justiça (ou obtenção da verdade) e formalismo, como se fossem fatores antagônicos. Na realidade, um constitui o fundamento e a razão do outro[56].
Se não houvesse qualquer pretensão de se alcançar a justiça, não haveria razão para se instituírem formas e regras no curso processo, já que previstas (quando bem pensadas), justamente, para levar a uma decisão que seja a mais correta possível. Por outro lado, se não houvesse a previsão dessas mesmas regras, nunca seria possível dizer quando uma decisão poderia ser considerada justa e/ou correta, já que, não fosse pelo respeito às regras do processo, a decisão seria produto, apenas e tão-somente, de ato impositivo de poder (decisionismo).
Ora, conforme ensinamentos da doutrina alemã, de um dos maiores teóricos do formalismo no processo: “Se de vez em quando quisermos amaldiçoar o formalismo processual, pensemos que em um importante domínio jurídico ele ata as mãos da arbitrariedade, a pior adversária da justiça. ‘A forma é a inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade’. Möser entendeu, de forma sábia e serena, a rigorosa e tão necessária finalidade do formalismo processual: ‘Todas as pessoas podem errar, tanto o rei quanto o filósofo, e o último talvez por primeiro, visto que ambos estão tão altamente situados, e da quantidade de coisas que pairam sob seus olhos nenhuma pode ser considerada inteira e completamente pacífica e exata. Por causa disso, todas as nações fizeram alicerce de sua liberdade e do seu domínio que aquilo que um homem reconhece como direito ou verdade nunca deve valer como direito antes de receber o selo da forma’. ‘O mais triste caso em que o juiz frequentemente se encontra é aquele em que ele reconhece de maneira evidente o verdadeiro direito e não pode realizá-lo por formalidades. Todavia, é melhor um homem triste do que colocar todos em perigo; e isso ocorreria se cada juiz pudesse aceitar como verdadeiro direito o que ele reconhece e logo lhe atribuir força de coisa julgada. Toda pessoa tem de reconhecer com coração agradecido que se prefira o formal ao real quando ambos não se encontrem juntos; e quem exclui totalmente a forma ou quer abreviá-la e dificultá-la de modo não natural ofende a humanidade’”[57].
Como afirma Luigi Ferrajoli, está aí um “preço do formalismo”[58] que se deve pagar, e, em regra, com bom espírito, já que ele desempenha o papel de filtro, no processo, para se depurarem os abusos e os constantes equívocos que poderiam ocorrer em seu curso.
Cumpre analisar quando o pagamento desse preço trará algum saldo positivo, já que há formas no processo que, à evidência, além de serem inócuas, ou não terem função alguma, levam à violação de direitos. Analisar o exposto implica tratar dos valores em relação aos quais as formas foram instituídas, já que o formalismo que interessa e que deve ser observado e cultuado no processo só pode ser o valorativamente útil e orientado para a consecução de determinado fim (legítimo).
Notas e Referências:
[1] MEDEIROS, Luiz César. O formalismo processual e a instrumentalidade: um estudo à luz dos princípios constitucionais do processo e dos poderes jurisdicionais. 3ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, p. 32.
[2] GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal. 7.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 285.
[3] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Vol. I. 4.ª ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1959 p. 13.
[4] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil. Tese (Doutorado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1996, p. 06-07.
[5] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. I. 6.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 145.
[6] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil, p. 08.
[7] CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno: contraditório, proteção da confiança e validade prima facie dos atos processuais. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 06-07. Evidentemente, a passagem descrita para o processo civil deve ser compatibilizada com o processo penal, pois o Ministério Público é um ente estatal, criado para melhor proteger os interesses e direitos da vítima e do próprio suspeito/imputado.
[8] BAGGIO, Lucas Pereira & TEISHEINER, José Maria Rosa. Nulidades no processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p.45.
[9] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil, p. 08.
[10] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal: as interceptações telefônicas. São Paulo: Saraiva, 1976, p. 75.
[11] MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Vol. II. Atualização: Eduardo Reale Ferrari e Guilherme Madeira Dezem. 3.ª ed. Campinas: Millennium, 2009, p. 394.
[12] “Entre os leigos abundam censuras às formas judiciais sob a alegação de que as formas ensejam longas e inúteis querelas, e freqüentemente a inobservância de uma forma pode acarretar a perda do direito; e ambicionam-se sistemas processuais simples e destituídos de formalidades. A experiência, todavia, tem demonstrado que as formas são necessárias no processo, tanto ou mais que em qualquer relação jurídica; sua ausência carreia a desordem, a confusão e a incerteza” (CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. Vol. III. Tradução: J. Guimarães Menegale. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 04).
[13] FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 11.ª ED. São Paulo: RT, 2009, p. 17.
[14] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 502.
[15] CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno, p. 05.
[16] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil, p. 10.
[17] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil, p. 11.
[18] “A prévia regulamentação da atividade das partes e do juiz atende ao interesse geral, pois não apenas garante o equilíbrio do contraditório e o tratamento isonômico entre os sujeitos parciais, como assegura a imparcialidade do juiz e confere transparência à atividade desenvolvida no processo” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 429).
[19] ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo criminal brasileiro. Vol. I, p. 14.
[20] O “bom senso” nem sempre é o mesmo para uma e outra pessoa. Aliás, se todos tivessem o mesmo bom senso e agissem de acordo com ele, não seria preciso lei para disciplinar a conduta de cada indivíduo na sociedade: lembrando que muitas pessoas cometem infrações, achando que estão de acordo com bom senso.
[21] OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de. Do formalismo no processo civil, p. 09.
[22] “... a forma não é tão somente uma garantia de justiça, mas uma garantia de confiança dos cidadãos no direito” (GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades: processo penal e instrumentalidade constitucional. Tese (Doutorado) apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Paraná, 2010, p. 113).
[23] FERNANDES, Antonio Scarance. Teoria geral do procedimento e o procedimento no processo penal. São Paulo: RT, 2005, p. 37.
[24] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução: Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: RT, 2002, p. 50.
[25] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 52.
[26] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 419.
[27] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais: elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Tradução: Angela Nogueira Pessôa. Revisão: Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 70.
[28] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais, p. 71.
[29] GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Uma nova teoria das nulidades, p. 275.
[30] BIZZOTTO, Alexandre. A inversão ideológica do discurso garantista: a subversão da finalidade das normas constitucionais de controle limitativo para a ampliação do sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 196.
[31] A respeito dessas funções: BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais, p. 70-77.
[32] CARVALHO, Salo de & LOUREIRO, Antonio Tovo. “Nulidades no Processo Penal e Constituição: Estudo de Casos a Partir do Referencial Garantista”. In: Diogo Malan & Geraldo Prado (coord.). Processo penal e democracia: estudo em homenagem aos 20 anos da Constituição da República de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 513.
[33] Como bem indaga Rubens R. R. Casara: “estar sentado ao órgão judicante interfere no exercício das funções institucionais do Ministério Público” (CASARA, Rubens R. R. “Um banquinho, o ministério público e a constituição: em busca de um espaço público republicano”. Boletim do IBCCrim, São Paulo, ano 13, n. 151, jun./2005)
[34] CALAMANDREI, Piero. Êles, os juízes, vistos por nós, advogados. Tradução: Ary dos Santos. Lisboa: Livraria clássica, 1940, p. 53.
[35] CALAMANDREI, Piero. Êles, os juízes, vistos por nós, advogados, p. 65-66.
[36] LOPES JÚNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 54-55.
[37] CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno, p. 15
[38] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais, p. 77.
[39] Consultem-se: BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 28 e p. 52; CABRAL, Antonio do Passo. Nulidades no processo moderno, p. 16.
[40] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 42.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 204.
[41] FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal, p. 17.
[42] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 25.
[43] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. I, p. 40.
[44] “En un procedimiento penal proprio del Estado de derecho, la protección del principio de formalidad no es menos importante que la condena del culpable y el restablecimiento de la paz jurídica” (ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. Traducción de la 25.ª edicion alemana: Gabriela E. Córdoba y Daniel R. Pastor, revisada por Julio B. J. Maier. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2003, p. 02).
[45] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 449.
[46] SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. 2.º vol. Revisão e tradução: Aricê Moacyr Amaral Santos. 23.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 60-61.
[47] LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal, p. 28.
[48] HASSEMER, Winfried. Direito penal libertário. Tradução: Regina Greve. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 30.
[49] CORREIA, João Conde. Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais. Coimbra: Coimbra, 1999, p. 23. Por isso, a doutrina reitera que “o método através do qual se indaga deve constituir, por si só, um valor, restringindo o campo em que se exerce a atuação do juiz e das partes” (FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães & GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal, p. 122).
[50] GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades públicas e processo penal, p. 74.
[51] TROLLER, Alois. Dos fundamentos do formalismo processual civil (Von den Grundlagen des zivilprozessualen Formalismus). Tradução: Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 2009, p. 17.
[52] No nosso ordenamento jurídico, “embora o Código de Processo Civil apregoe adesão á idéia da liberdade das formas (art. 154), os atos mais importantes do processo são eminentemente formais (...) Na verdade, a forma é exigida para a grande maioria dos atos processuais – o que leva a doutrina a reconhecer o âmbito restrito de aplicação da regra e a adoção, pelo sistema processual brasileiro, do princípio da legalidade das formas, embora sem a rigidez originária...” (BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 91).
[53] Entre os penalistas, afirma Vicente Greco Filho: “não existe a decantada liberdade das formas. A forma é legal, que deve ser respeitada pelos sujeitos processuais. Os códigos de processo são códigos de modelos típicos, aos quais as partes, o juiz e os auxiliares da justiça devem submeter-se. (...) O primeiro princípio, portanto, que rege os atos processuais e consequentemente o das nulidades é o da tipicidade das formas, que poderia ser assim formulado: O Código prevê os atos que deve ser praticados e como devem ser praticados, devendo esse modelo ser respeitado” (GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal, p. 286).
[54] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito processual penal. Vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 2004 (reimpressão da 1ª edição), p. 45 e ss.
[55] “A generosa idéia do processo justo e équo, que vem sendo cultuada pelos processualistas modernos, apóia-se na constatação de que dificilmente produzirá resultados substancialmente justos o processo que não seja em si mesmo justo – ou seja, aquele que não for realizado sem o predomínio dos parâmetros político-liberais emanados das garantias constitucionais do sistema” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. I, p. 185). No mesmo sentido, frisando que “uma decisão só é justa se foi lograda por meios justos”: CORREIA, João Conde. Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais, p. 26.
[56] O mesmo ocorre com outras (falsas) dicotomias, no processo, como eficiência e garantismo, sendo que um procedimento só pode ser considerado eficiente se for realizado com garantismo. A respeito do assunto: FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação, p. 21-22; FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 6.ª ed. São Paulo: RT, 2010, p. 19.
[57] TROLLER, Alois. Dos fundamentos do formalismo processual civil, p. 109-110 (grifos nossos)
[58] “Este, ademais, é o valor e, também, o preço do ‘formalismo’, que no direito e no processo penal preside normativamente a indagação judicial, protegendo, quando não seja inútil nem vazio, a liberdade dos cidadãos, justamente contra a introdução de verdades substanciais, tão arbitrárias quanto intoleráveis” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão, p. 38).
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
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