Coluna Stasis
Para o segundo encontro seria interessante agradecer pela oportunidade do primeiro, obviamente, pela coragem, e pela oportunidade de tentar permitir conhecer melhor as propostas e anseios, ou até mesmo agonias. Sim, no segundo encontro já se pode falar dos problemas da vida. Aliás, neste mundo de fluidez, de acelerações, um segundo encontro é coisa raríssima, para debate e exercício de debater ideias para o exercício reflexivo compartilhado, então ...
É de bom tom para este momento, compartilhar coisa interessante, depois destes dias que se passaram. Com certa ansiedade pela possibilidade de continuar o diálogo; em plena praça pública, ou em telas virtuais individuais, e nada públicas, se traz aqui o caso de um projeto em que professores se reuniram com ação intitulada “Como parar o relógio do juízo final”. Neste encontro, ocorrido em setembro de 2021, se apresentou escritos de documentos oficiais de países diferentes e, em um determinado momento um famoso professor[i] abriu aspas para apresentar palavras desconcertantes, embora sabidas, sentidas e vividas. E assim reproduziu:
“Os latino-americanos defendem a filosofia do novo nacionalismo, que abrange políticas para realizar uma ampla distribuição de renda e melhorar as condições de vida das massas. Esse nacionalismo econômico é o denominador comum das novas ambições por industrialização. Os latino-americanos estão convencidos de que os primeiros beneficiários do desenvolvimento dos recursos de um país deveriam ser as pessoas daquele país.”
Assim, escancaradamente, “agentes do desenvolvimento” de um país central na geopolítica do poder global, projetaram, debateram a filosofia de povos que pensavam melhorias na qualidade de suas vidas, e construíram estratégias de definição de um futuro, nada compartilhado.
Construir esse futuro, com modelo excludente, apenas para parte do mundo foi, portanto, afazer diário de muitos “agentes de desenvolvimento” de tal país. E para esse modo de viver foi preciso expandir tentáculos, modos de operar, gerir, em cada pedacinho de sala e antessala de tomada de decisão das sociedades latino-americanas.
Sim, cada gestor, cada chefe, cada mínima hierarquia construída, alcançada, veio para ser um associado local de um poder global. E assim se reproduzem relações em que, para o líder, este associado local, se a meta não é alcançada, que todos tenham empatia e compaixão, é a vida que se preserva. Aos demais, caso não atinjam recebem apenas constrangimento, desconfiança, chantagem ou ignoram completamente a necessidade de suas vidas. Afinal, os beneficiários do que se constrói são estrangeiros e seus agentes locais, não os que habitam e se relacionam na escala local, que são sensíveis e que de fato trabalham.
Mas, sabe, não queríamos apenas falar de coisas negativas e críticas neste espaço, se pudesse, colocaria uma bela cantora[ii] para ouvir “just give me your time …” para que fosse possível uma conversa sem pressa, continuidade do café mesmo. Talvez um passeio em algum jardim, parque, porque se pensarmos bem … Bem, há até outro professor[iii] que teoriza sobre as fragilidades e transformações das relações humanas e como estas também se tornam moldadas por formas atuais de consumo, ou de uso rápido, de descarte. E aqui, justo aqui é tempo de não descartar, e se houver descarte, que seja apenas o que sugeriu um rapaz cantor, descartando apenas certos dias ...[iv]
Assim, tentando escapar desse modo de não valorizar a vida, de não valorizar esses encontros, se atenta para o fato de que o que importa é o comportamento estabelecido. O que se diz e se pensa pensar é uma coisa, mas a maneira de agir vai dizer se se permite falar, se posicionar, divergir, chegar à diferentes lugares nas cidades, em todas as áreas públicas. Enfim, por vezes se considera ser consciente e, portanto, se considera ser possível e simples estabelecer relações de respeito e cooperação mas, quando menos se espera, (ou quando e onde mais se esperaria) aparecem formas de comportamento de exploração, e de abusos. Aliás, há[v] quem chame a atenção para este debate, pois, há quem pensa ser pessoa “de bem”, mas somente o comportamento pode expor outra forma de atuar, não necessariamente considerando o “bem” dos demais.
É sobre esse tema que é necessário dialogar, aquilo que se pensa e o comportamento que de fato se realiza. Aquilo que se quer dizer, e aquilo que se diz. “Estamos brincando”, “É só um modo de dizer”, “Não nos levem a mal” … Dentre tantas outras expressões que podem ser ditas após escapar viscerais preconceitos, covardias e outras formas de expressar vontades, sentimentos e ações para subjugar e impor.
E é por isso que mesmo querendo apreciar passeios e quem sabe jantar, não seria possível fugir do que aqui é típico. E aqui, no sul global o que se come é Foie Gras, porque cai, ou, melhor desce bem. Desce duto abaixo, quer se queira, quer não, e obviamente não se quer. Porque as relações de exploração ganham tentáculos e transbordam em todos os ambientes da sociedade brasileira, latino-americana e africana. O comportamento para com a sociedade pobre é o mesmo, porque mesmo que distantes, distintas, se colocam como uma massa heterogênea e avizinhada para líderes que realmente não veem humanidade e diferenças.
E, portanto, se retoma o esforço do desembaraço e da cirurgia de extração dessa lente que faz com que líderes e gestores entendam que são também do Sul, que também são pobres, que usurpados se colocam não exatamente como postos avançados de um modelo vertical e concentrador de riqueza. Mas, como algo muito pior, porque sentados em cavalos, empunham chicotes e maltratam a todes como fizeram com pessoas do país[vi] primeiro a se tornar livre neste continente, de onde se escreve, se lê, se tenta viver. Não há glamour em ser ponta de linha de um modelo explorador, há apenas tentativa de garantir proteção dos seus. Para isso, há até filme[vii] que apoia o entendimento de fenômenos da sobrevivência que dão continuidade às relações de exploração.
Reunindo então estes argumentos com professores, obras, músicas e filmes, se chama a atenção neste segundo encontro, com amargor e com doçura, para que o conhecimento das amarras seja também construído a partir de um olhar e uma forma de relação que não reproduza relações de poder, hierárquicas em seu bojo. Que envolva agentes que sejam tratados de maneira igualitária, com diálogos respeitosos, com empatia e encorajamento para estimular o que cada um pode realizar. Excluindo sim formas de opressão, de ridicularização, de preconceito, de classismo, de diminuição e de desvalorização do outro. Assim se coloca como importante o entendimento de que uma ciência emancipadora - como sistema de ideias de entendimento dos problemas para superação destes - não se constrói com réplica de modelos de tubos e conexões de injeção opressora.
Alcançar ciência é movimento de amplitude coletiva da consciência. Requer compromisso político em função de seus impactos sociais. Ciência é diálogo que se estabelece entre seres humanos diante do reconhecimento de que é possível ampliar o horizonte de compreensão do mundo, da vida, da existência, do fazer humano. A ciência requer disposição para compartilhar o mundo preservando-o e ao mesmo potencializando-o para acolher a vida em sua multiplicidade de formas e possibilidades. Ciência desprovida de consciência é tirania da política privatizada pelo capital.
Notas e Referências
[i]Noam Chomsky lendo um documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos descrevendo a América Latina e as ambições de seu povo. O professor avança: “Para lidar com o problema, os Estados Unidos convocaram uma Conferencia Hemisférica no México, em fevereiro de 1945, próximo do fim da guerra. Neste evento os Estados Unidos apresentaram a chamada Carta Econômica das Américas pedindo o fim do nacionalismo econômico em todas as suas formas. Os beneficiários dos recursos de um país devem ser os investidores dos Estados Unidos ou seus associados locais, não as pessoas deste país. https://event.webinarjam.com/live/207/67yzvcy4hpgkb9n41mfrrrq0
[ii]Sharon Jones em “Just Give me Your Time”- https://www.youtube.com/watch?v=okqZc6D4wy0
[iii]Bauman
[iv]Chico Buarque em “Valsa Brasileira”: “ Vivia a te buscar - Porque pensando em ti - Corria contra o tempo - Eu descartava os dias - Em que não te vi ...”
[v]Jesse José Freire de Souza nos apoia para o entendimento do que é comportamental, e não do que é dito socialmente.
[vi]Haiti. https://oglobo.globo.com/mundo/guarda-de-fronteira-americano-usa-redea-de-cavalo-para-perseguir-imigrantes-haitianos-1-25205998
[vii]Filme: Quanto Vale ou é por Quilo? Dirigido por Sérgio Bianchi.
https://www.youtube.com/watch?v=ACfdCYbyfI0
Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/ronmacphotos/8704611597
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