Fluxo e contrafluxo conceitual: entre a assistência e a legitimidade extraordinária no Direito Processual Civil

06/05/2018

Coluna: Adovocacia Pública em Debate / Coordenadores: Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta Araújo

Um dos temas mais importantes de teoria geral do processo diz respeito aos conceitos de legitimidade, substituição processual e intervenção de terceiros.

O CPC/15 fez importante ajuste redacional, no que respeita aos institutos de sucessão e substituição processual. A figura da sucessão ocorre em casos específicos previstos em lei, inter vivos ou mortis causae. Na sucessão, o sucessor recebe a mesma legitimidade do sucedido, podendo ser ordinária ou extraordinária (arts. 108 a 112, do CPC/15).

Enquanto na sucessão, o sucessor passa a figurar na mesma posição do sucedido (ex. alienação da coisa litigiosa – art. 109, §§1º e 2º, do CPC/15), na substituição, o substituto é parte, atuando em nome próprio na defesa de interesse alheio e com autorização do ordenamento jurídico (art. 18, do CPC/ 15)[2].

Houve, neste fulgor, alteração em relação ao que previa o CPC/73, tendo em vista que os arts. 42 e seguintes da legislação anterior mencionavam substituição de parte, quando, em verdade, ocorria o fenômeno da sucessão de parte, passando o adquirente a defender direito próprio em nome próprio (legitimidade ordinária ulterior).

A hipótese do adquirente de coisa litigiosa é uma das poucas em que ocorre a figura da substituição processual no âmbito do direito individual. Outras situações interessantes desafiam a aplicação deste instituto, como, por exemplo, concurso público, licitação, lançamento irregular de taxa de limpeza pública[3] ou de IPTU[4].

De outro prisma, a legislação de 2015 consagrou importante modificação em relação ao instituto da legitimidade extraordinária, se comparado ao CPC/73, gerando consequências na atuação do substituído e no conceito de assistência simples.

Na legislação anterior, a legitimidade extraordinária (parte na relação processual, defendendo direito material alheio), apenas poderia estar presente mediante autorização legal, nos termos do art. 6º, do CPC/73[5]. Pelo art. 18, do CPC/15, há autorização para essa atuação pelo ordenamento jurídico.

Assim, pela análise da cláusula geral de negócio processual (art. 190, do CPC/15), defende-se que o legislador passou a permitir, mediante acordo de vontades, a transferência da legitimidade processual para outrem que, ao aceitar, atuará como seu substituto processual.

Contudo, existem algumas variáveis a serem enfrentadas, especialmente em relação ao papel do substituto e do substituído, no processo em que ocorreu esta cláusula de transferência de legitimidade. Vejamos um exemplo: o titular de direito material imobiliário pode, mediante negócio processual, atribuir a um terceiro a atuação em juízo para a defesa deste direito. Neste caso, a parte material passa a condição de parte processual para aquele que, de início, seria terceiro em eventual demanda judicial discutindo tal direito. A cláusula geral de negócio processual (art. 190, do CPC/15), permite este fluxo e contrafluxo conceitual (parte e substituição processual negocial) que, na prática, gera a alteração da condição de parte processual e de terceiro.

Interessante é notar, portanto, que o CPC/15 enseja um amplo diálogo entre os conceitos de terceiros e partes. Se antes a legitimidade extraordinária apenas podia ser em virtude de autorização legal (art. 6º, do CPC/73), agora há amplo poder de negociação sobre a condição de parte no processo. Repito: aquele que seria terceiro pode, mediante negócio processual, atuar como parte, demandando, em nome próprio, direito alheio. E ao titular do direito material é admitida a ampla negociação de sua legitimidade processual, sem alterar a sua condição de detentor do bem jurídico discutido em juízo.

Logo, além dos casos previstos em lei, há permissão de disposição da condição de parte no âmbito processual, sem afetar a titularidade do direito material. Neste caso, o legislador permite ao substituído a atuação como assistente litisconsorcial do substituto (Art. 18, §único, do CPC/15).

Assim, nada impede que o detentor do direito material, que autorizou a demanda judicial promovida pelo substituto processual, atue na condição de assistente litisconsorcial deste. Mais uma vez é dever ressaltar o caminho traçado pelo CPC/15: o titular do direito material, que está sendo discutido em juízo pelo seu substituto processual, pode atuar na condição de assistente qualificado (litisconsorte) do autor.

Este raciocínio pode ser feito para qualquer modalidade de substituição processual, tendo em vista que o legislador não restringe às hipóteses de negócio processual. Logo, em ação civil pública ou outra modalidade de substituição processual por força de lei, nada impede que o titular do direito material (substituído) atue na condição de assistente litisconsorcial do substituto processual. Esta intervenção, em termos práticos, permite o controle, por parte do substituído, da atuação em juízo, com os mesmos poderes e ônus de um litisconsórcio do autor[6].

Por derradeiro, é mister enfrentar a situação envolvendo o fluxo e contrafluxo conceitual da assistência simples.

O CPC/15 inovou em relação aos institutos da assistência (simples) e substituição processual. Claro que, de início, o assistente simples continua sendo tratado como terceiro - auxiliar do assistido[7] - com os mesmos poderes e ônus deste último (art. 121, do CPC/15).

No CPC/73 havia previsão, que gerava certa confusão prática, da atuação na qualidade de gestor de negócios, nos casos em que o assistido era revel (art. 52, §único). Contudo, quais eram os poderes e ônus do gestor de negócios, advindo, v.g., da revelia do assistido? A rigor, o assistente passava a atuar em nome próprio, na defesa de direito alheio sendo, portanto, substituto processual[8] e não mero gestor de negócios.

Tentando solucionar esta questão, o art. 121, §único, do CPC/15 consagra que, em caso de revelia ou omissão do assistido, o assistente (simples) passará a ser considerado substituto processual. A rigor, como já mencionado, a atuação sempre foi como substituto processual, mesmo no regime do CPC/73, levando em conta que a expressão gestor de negócios (oriunda de direito material - arts. 861 a 875 do Código Civil) era totalmente estranha à sua real atuação em juízo.

Com o atual Código, apesar de não ter alteração em relação à titularidade do direito material que está sendo objeto de demanda judicial, há a possibilidade da mudança na legitimidade passiva, de ordinária, para a extraordinária. A rigor, aumenta os poderes do assistente que, de mero auxiliar, passa a ser substituto processual do assistido, nas situações previstas no §único, do art. 121, do CPC/15. Já o réu, que era legitimado ordinário, passará a ser substituído, com a atuação do seu antigo assistente na qualidade de legitimado extraordinário, constituindo-se clara situação de fluxo e contrafuxo entre os conceitos de parte e terceiro.

Vale citar um exemplo: se o assistente tiver impugnado as alegações fáticas suscitadas na inicial, mediante apresentação de instrumento de defesa, está afastado o efeito de presunção de veracidade dos fatos oponíveis ao assistido revel eis que, neste caso, a atuação do impugnante será na condição de substituto processual do revel. Este raciocínio, inclusive, mitiga os efeitos da revelia previstos no art. 344, do CPC/15.

Há, portanto, a possibilidade de mudança da condição processual, dos ônus e dos poderes entre o assistente e assistido, dependendo da conduta omissa deste. O que antes era assistente simples passa a ser tratado como parte (substituto processual), e o que era parte, passa a ser considerado substituído. Isso tudo sem qualquer mudança na configuração da titularidade do direito material debatido em juízo.

Os atos praticados positivamente pelo assistido vincula o assistente (art. 122, do CPC/15). Logo, em caso de realização de negócio processual, renúncia, desistência[9], reconhecimento jurídico do pedido ou outro ato de vontade, vincula o assistente que, nestes casos, atua como mero auxiliar da parte.

Deve, portanto, o intérprete ter cautela na leitura dos arts. 121 e 122, do CPC/ 15. A ampliação dos poderes do assistente e, a rigor, a mutação de sua condição processual (de auxiliar para substituto processual), irá depender da falta de atuação do assistente[10]. A própria coisa julgada, quando ocorrer, atingirá o substituído (que é o titular do direito material debatido), o que, inclusive, esvazia a interpretação literal do art. 506, do CPC/15.

Como já mencionado, apesar da vedação do art. 506, do CPC/15, a coisa julgada pode atingir para prejudicar a situação jurídica do substituído e titular do direito material. A sua omissão ou revelia e a substituição processual pelo assistente, não impede que os efeitos jurídicos atinjam sua esfera jurídica. 

E não é só. O art. 121, §único, do CPC/15, também permite, por exemplo, que o recurso do assistente seja conhecido, mesmo em caso de falta de apelo do assistido[11]. A expressão qualquer omissão como permissivo para a mutação da condição processual, legitima a apreciação do recurso do assistente, na condição de substituto processual, mesmo quando o assistido não recorre[12]. O único impedimento para a apreciação do mérito do apelo é a presença de manifestação expressa do assistido no sentido contrário ao manejo do recurso (art. 122, do CPC/15).

Logo, é fácil concluir que o legislador processual de 2015 provoca novas reflexões em relação ao diálogo entre os institutos processuais debatidos neste ensaio.

 

NOTAS

[2] “Na substituição processual, não há troca de sujeitos; na verdade, não há qualquer alteração da relação processual. Ocorre que um sujeito tem o poder (legitimidade) de estar legitimamente em um processo defendendo interesse de outrem”. DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 17ª edição. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 356.

[3] No caso de discutível legitimidade do locatário para impetrar MS contra a taxa de iluminação pública, visando defender seu direito decorrente, já decidiu o STJ: “Processual civil e tributário - Locatário - Taxa de limpeza pública, conservação de vias e logradouros e combate a sinistros - Ausência de legitimidade ativa ad causam para figurar na relação jurídica-tributária - precedentes do STJ. 1. O locatário, por não deter a condição de contribuinte, não possui legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança objetivando o não-recolhimento de IPTU e taxas. Precedentes do STJ. 2. É cediço na Corte que o locatário é parte ilegítima para impugnar o lançamento do IPTU, porquanto não se enquadra na sujeição passiva como contribuinte e nem como responsável tributário. Precedentes: AgRg AG 508.796/RJ, Relator Ministro Franciulli Netto, DJU de 30/06/2004; REsp 604.109/RJ, Relator Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJU de 28/06/2004; REsp 124.300/SP, Relator Ministro Milton Luiz Pereira, Primeira Turma, DJU de 25/06/2001; REsp 228.626/SP, Relator Ministro Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, DJU de 03/04/2001. 3. Recurso especial provido”( RECURSO ESPECIAL –SP – 1ª T – j. em 16.08.2005 -– Rel. Min. Luiz Fux).

[4] Na hipótese de IPTU, em que pese configurar-se imposto propet rem, há razoável interpretação defendendo a legitimidade ativa do locatário para impetrar MS alegando vício no lançamento. A rigor, o direito supostamente violado é o locador, sendo o do impetrante apenas um direito decorrente.

[5] Como, v.g., nos casos de ação civil pública (art. 5º da Lei n. 7.347/1985 e art. 82 do Código de Defesa do Consumidor) e de impetração de mandado de segurança pelo detentor de direito líquido e certo derivado (art. 3º, da Lei 12016/09).

[6] Não é objetivo deste ensaio analisar a substituição processual passiva. Sobre o tema, ver DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil. Vol. 1. 17ª edição. Salvador: Juspodivm, 2015, pp. 346-356.

[7] “O assistente não defende direito próprio na demanda, apenas auxiliando o assistido na defesa de seu direito, de forma que a sua atuação no processo está condicionada à vontade do assistido, não se admitindo que a sua atuação contrarie interesses deste”. NEVES, Daniel Amorim, Assumpção. Manual de direito processual civil – volume único. 8ª edição. Salvador: Juspodivm, 2016, p. 280.

[8] No tema, ver DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2003, v. II e MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2015, p. 199 e seguintes.

[9] O STJ já decidiu, na vigência do CPC/73: “Processual civil. Assistência simples. Desistência da ação. Prejudicialidade do recurso do pretenso assistente. Arts. 50 e 53, CPC. Na assistência simples, como na hipótese, o assistente não poderá, sozinho, prosseguir na ação principal em substituição ao assistido que dela desistiu, por isso mesmo e que, como disposto na parte final do art. 53, CPC, "terminando o processo, cessa a intervenção do assistente". assim sendo, uma vez tendo sido extinto o processo, por sentença homologatória do pedido de desistência da autora, com a concordância dos réus, resta prejudicado, por perda do objeto, o recurso interposto por quem pretende ingressar, como assistente simples, no feito ja findo. recurso julgado prejudicado, por perda de seu objeto” (REsp 37306 / SP – Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA - 4ª T – J. em 22/10/1996. DJ de DJ 16/12/1996 p. 50873 - LEXSTJ vol. 94 p. 92 -RSTJ vol. 93 p. 290).

[10] Importante a hipótese trazida por Daniel Amorim Assumpção Neves: “sendo possível no acordo de procedimento previsto no art. 190 do Novo CPC a convenção sobre ônus processuais, é importante afastar a atuação do assistente diante da omissão do assistido quando ela for decorrência de tal ajustamento prévio. Dessa forma, caso as partes convencionem que não será cabível o recurso de agravo de instrumento no processo, a omissão do assistido diante de uma decisão interlocutória não decorrerá de vontade espontânea ou de desídia, mas de compromisso previamente firmado. E nesse caso o assistente não poderá ser considerado substituto legal do assistido e qualquer ato por ele praticado será ineficaz”. ”. NEVES, Daniel Amorim, Assumpção. Manual de direito processual civil – volume único. 8ª edição. Salvador: Juspodivm, 2016, pp. 281-282.

[11] O que já era admitido pelo STJ, na legislação de 1973: “Processual civil. FGTS. União. Assistência simples. Art. 52, do CPC. 1. Na qualidade de assistente simples da Caixa Econômica Federal, tem legitimidade para recorrer, desde que não haja expressa vontade, em sentido contrário, do assistido, hipótese não ocorrente na espécie. 2. Agravo improvido” (AgRg no Ag 447608 – Rel. Min. CASTRO MEIRA – 2ª T – J. em  04/12/2003 – DJe de 25/02/2004 p. 142).

[12] Este recurso do terceiro, na condição de assistente, encontra amparo na redação do art. 996, §único, do CPC/15.

 

 

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