Flexibilização das relações de trabalho, fragilização do sindicalismo e o caso FORD de 1998

27/11/2018

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

 

Com base no artigo de ROBERTO VERAS, da Escola Sindical São Paulo da CUT e Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania/USP, publicado na Revista Crítica de Ciências Sociais, 62, Junho 2002, 97 – 120, Coimbra – Portugal, analisa-se a questão da flexibilização das relações de trabalho em um momento de fragilização do sindicalismo, tomando-se como apoio o caso concreto, de 1998, da demissão de 2.800 empregados da Ford, no ABC, em São Paulo.

Em tempos de Reforma Trabalhista no Brasil, com o advento da Lei 13.467/2017, que inclusive tornou facultativas as contribuições ou impostos sindicais, apontando para profundas transformações no sindicalismo brasileiro, acreditamos ser de grande valia e interesse a discussão trazida por meio desse breve artigo.

INTRODUÇÃO

Ao longo dos anos 90, o Brasil sofreu importantes mudanças em sua base econômica e em suas dinâmicas social e política. O marco na promessa de uma nova institucionalidade no país foi a promulgação da Constituição de 1988, que incorporou novos direitos sociais e instrumentos legais e jurídicos de garantia da cidadania.

Todavia, as políticas de orientação neoliberal implementadas no país a partir da década de 1990 operaram mudanças para além do sentido meramente econômico, entrando em rota de colisão com as conquistas sociais e políticas da década anterior. Tal situação repercutiu fortemente no campo da ação sindical.

DOS ANOS 80 AOS 90: NOVO CENÁRIO PARA A AÇÃO SINDICIAL

As greves metalúrgicas ocorridas em São Paulo entre 1978 e 1980 constituíram um marco no sindicalismo brasileiro. Uma nova política sindical surgia lutando, no campo sindical, pela autonomia sindical e direito de greve, e, no campo político, pela democratização da sociedade brasileira. O “novo sindicalismo” surgia da ação sindical voltada ao interior das empresas, colocando-se no cenário público do país, o que restou espelhado na Constituição Federal de 1988. Ao longo dos anos 80, a CUT afirmou-se como a principal central sindical do país, conduzindo três greves gerais (1986, 1987 e 1989).

A partir dos anos 90, entretanto, passou a operar-se a passagem de um modelo centrado em papel ativo do Estado, para um modelo de liberalização comercial e financeira. Aos novos desafios trazidos por tais mudanças, acrescentaram-se os antigos, no que se refere ao modelo sindical corporativista e à tendência de acomodação nela dos diversos segmentos sindicais.

Além disso, tal instituição sindical passa a ser vista como um “obstáculo”, segundo a perspectiva neoliberal. O debate sobre a sua eliminação ressurge como parte de uma tendência mundial de desregulamentação dos direitos sociais e de flexibilização das relações de trabalho, em um momento de fragilização do sindicalismo.

Pode-se dizer que as iniciativas governamentais na área visaram, desde então, eliminar a regulamentação e a ação do Estado no âmbito do direito individual do trabalho e  a restringir o poder sindical, quanto à negociação coletiva e o direito de greve.

O governo tem feito, desde então, a promoção de tais mudanças através de iniciativas tais como: Medida Provisória sobre a Participação nos Lucros e Resultados (PLR), em 1994; decretação do fim da indexação salarial, em 1995; lei das cooperativas de trabalho, em 1994; lei da contratação por tempo determinado, em 1998; além do fim da obrigatoriedade do imposto sindical, em 2017.

Desde então, um profundo movimento de ressignificação vem sendo operado na sociedade, onde os direitos sociais são tomados como “obstáculos” ao desenvolvimento econômico, ou são tomados como “privilégios”, pode-se dizer.

A política sindical nos anos 90, ao mesmo tempo que perde poder de mobilização, assume uma nova agenda, onde a questão do emprego, na proporção em que cresce o desemprego e avança a precarização do trabalho, vem assumindo cada vez mais um lugar central.

NOTAS SOBRE A INDÚSTRIA AUTOMOBILÍSTICA NO BRASIL

A indústria automobilística teve seu primeiro grande impulso no Brasil nos anos 1950, concentrando-se inicialmente em São Paulo, na Região do ABC. Nos anos 1970, o setor alcançou uma produção recorde de 1 milhão de unidades. Iniciava-se ali um movimento de descentralização do setor, com a instalação de novas fábricas em Minas Gerais, no interior de São Paulo e no Paraná. Com a recessão do início dos anos 1980, os níveis de produção caíram, recuperando-se em 1986 e mantendo-se estável até 1992. De 1992 até 1997 a produção cresceu até atingir 2 milhões de veículos.

A elevação da capacidade produtiva do setor foi acompanhada de mudanças no padrão produtivo, com a introdução de novas técnicas de gestão da produção e do trabalho, tais como a terceirização, o trabalho em grupo, a polivalência e a redução dos níveis hierárquicos, entre outros. Entretanto, daí resultaram sistemáticas perdas de postos de trabalho e um processo de precarização dos contratos de trabalho. O número de empregados nas montadoras manteve-se, durante os anos 90, em torno de 100 mil, mesmo com a expansão ocorrida. Nos últimos anos esse nível vem caindo.

Quanto à Ford, em particular, no final de 1998, quando anunciou 2.800 demissões, havia iniciado um processo de desativação de sua unidade na cidade de São Paulo e estava transferindo um projeto de nova planta para a Bahia, em decorrência de incentivos fiscais. Iniciava-se, nesse contexto, o cenário da luta dos trabalhadores da Ford em resistência às demissões.

O CASO FORD DE 1998 - SINDICALISMO DO ABC

No dia 23.12.1998, 2.800 empregados da Ford na região do ABC receberam carta da empresa anunciando a demissão. Ao procurarem o sindicato, a orientação recebida foi a de não assinar a rescisão do contrato e de comparecer a uma assembleia convocada para o dia 4 de janeiro, na porta da fábrica, na volta do recesso das festas de fim de ano. O sindicato, assim, convocava os trabalhadores para resistirem às demissões.

O anúncio, pela Ford de São Bernardo do Campo, das 2.800 demissões, em dezembro de 1998, pegou a todos de surpresa. O Sindicato e a Comissão de Fábrica se posicionaram contra a medida, exigindo a abertura de negociações. Uma assembleia com demitidos e não demitidos foi convocada para 4.1.1999, no pátio da fábrica. A estratégia era a de que todos vestissem os seus macacões e assumissem seus postos de trabalho, pondo a fábrica para funcionar. Ao invés da estratégia habitual da greve, a opção foi resistir às demissões se dispondo ao trabalho.

A pronta reação da empresa, adiando o retorno ao trabalho para o dia seguinte e, em seguida, a resposta dos trabalhadores, realizando uma plenária na sede do Sindicato, indicavam o jogo de forças, em lances diários, que se seguiria a partir dali.

Daí por diante os trabalhadores da Ford, o Sindicato e seus aliados, a empresa e o governo federal, sob estratégias próprias, lançam-se em sucessivas movimentações, buscando influir no desfecho dos acontecimentos.

A Ford tentou dissuadir os trabalhadores propondo, em 22.1.1999, uma ampliação dos benefícios para os demitidos. Além do mais, a empresa se viu frente ao custo (crescente) de ter que manter a produção desativada, para impedir o acesso dos demitidos, ou de reativar a produção, enfrentando os demissionários que voltariam ao trabalho, por não aceitarem a demissão.

Da parte do Governo Federal, o discurso oficial era de que não caberia ao governo intervir, por se tratar de assunto entre os metalúrgicos e a empresa.

Após diversas negociações, no dia 25.2.1999, um acordo foi celebrado: 1.543 ex-demitidos teriam seus contratos suspensos, sem recolhimentos ao FGTS e INSS, sem rescisão, recebendo por 5 meses o seu salário líquido integral e podendo frequentar um curso de qualificação profissional no Senai. A empresa se comprometeria, ainda, a reintegrar cerca de 300 trabalhadores estáveis. Dali em diante, novos PDV – programas de demissão voluntária foram lançados pela empresa, até que, em agosto de 2000, cerca de 700 empregados (os últimos do grupo de 2.800) negociaram um pacote de demissões com a empresa.

REFLEXÕES FINAIS

Para uma abordagem mais atenta desse movimento, poderíamos nos perguntar sob que perspectiva o sindicalismo do ABC enfrentou o fato criado com as demissões na Ford. Em um contexto de perspectiva neoliberal, em que medida a experiência em questão se colocou em um ângulo de resistência?

Um dado importante a considerar é que o movimento sindical estudado sugeriu uma dinâmica contrária à lógica privatista, nuclear do discurso hegemônico, ao se impor como um acontecimento público. A publicização do movimento resultou de uma combinação de elementos, tais como: a necessidade em buscar apoio junto à sociedade e à opinião pública, o caráter dramático do desemprego e o sentido simbólico da resistência.

Pode-se dizer que movimento sindical em comento inscreveu-se num contexto tal, que projetou-se como um movimento de contestação a respeito do caráter inevitável das necessidades do mercado. Além disso, bem evidenciou a dimensão social e pública de questões como o desemprego.

Resta saber se, no contexto atual, o Sindicalismo será capaz de reafirmar-se como um sujeito social e político influente no cenário nacional, especialmente nos novos tempos da Lei 13.467/2017, onde as contribuições e impostos sindicais são facultativos (artigos 545, 578, 579, 582, 583, 587 e 602 da CLT), onde as rescisões dos contratos de trabalho não mais necessitam de homologação sindical, e onde as dispensas individuais, plúrimas ou coletivas equiparam-se para todos os fins (artigo 477-A, CLT). Tal desfecho, parece-nos, está em aberto.

 

Notas e Referências

Revista Crítica de Ciências Sociais, junho de 2002. Sindicalismo e relações laborais. N. 62. ISNN 0254-1106. Centro de Estudos Sociais. Coimbra – Portugal. Ed. Rainho & Neves Ltda.

 

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