FILTRAGEM RACIAL

04/03/2023

Coluna Por Supuesto

Na sessão plenária do próximo 8 de março o STF dará continuidade ao julgamento do HC 208240, Rel. Min. Edson Fachin, impetrado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo. A Defensoria sustenta que a condenação do paciente por tráfico de drogas é nula porque a prova foi obtida através de uma busca policial motivada por filtragem racial. Até o momento os Ministros que votaram reconheceram que o perfilamento racial deve ser abolido da prática policial, porém não existe unanimidade no entendimento de que a tese se aplique ao caso.

Há um tempo que no campo jurídico constitucional e internacional, especialmente e com ênfase na seara penal, a chamada Racial Profiling é matéria de análise, designando, não sem preocupação, o uso geral e sistemático da prática de abordagem para identificação e busca de supostas provas por agentes da segurança pública, fundadas com exclusividade na cor da pele, a origem étnica, a nacionalidade ou a religião da pessoa abordada.

Internacionalmente, o estabelecimento de perfis raciais se pode verificar em vários âmbitos da atuação policial ordinária, no combate às práticas terroristas e a toma de decisões sobre migração, refúgio e controle de fronteiras, especialmente na Europa que assumiu as teses das “janelas quebradas”, tese que se desentende do exame de qualquer causa social capaz de explicar a conduta do agente, que é tratado como um “inimigo” dentro de um cenário de todos contra todos. Como há sido denunciado por entidades como o ACNUR e Anistia Internacional, a frequência com a qual se retiram direitos, sem que exista objetividade de condutas ou situações, mas apenas baseadas no “aspecto do sujeito”, constitui um retrocesso civilizacional condenável provocado por este tipo de teses.     

Há vários estudos sobre o tema da filtragem racial à qual faz alusão a Defensoria. Em um deles, publicado na Revista Logos da Colômbia, observamos com surpresa que os patrocinadores da elaboração de perfis étnicos com o pretexto de fazer identificações policiais afirmam que a prática é sinónimo de boa atuação policial para a prevenção, detectação e investigação das condutas criminosas e que, precisamente por isso, o desenvolvimento de tipos de perfis de pessoas é uma estratégia policial que deve ser aceita e permitida sempre que os perfis não cruzem a linha que separa a atuação policial e legítima das práticas discriminatórias. (Open Society Justice Initiative, 2009ab In Ziati, Dedeu e Soria Verde, Identificaciones policiales por perfil racial. Revista Logos. Janeiro-abril 2022)

É dizer, para os adeptos da filtragem, que não comporta apenas o critério “cor da pele”, como é o caso do HC que examinará o STF, a prática é legítima, sempre e quando “a atuação policial não seja discriminatória”. Não é possível aceitar tal argumento que parte, como se percebe claramente, do entendimento preconceituoso de que determinados grupos de pessoas estão comprometidas com práticas criminosas por pertencer a uma etnia ou ser oriundo de determinado país ou mesmo, pela cor da sua pele. É dizer, a linha que distingue a atuação policial e a prática discriminatória já foi cruzada com a própria suposta legitimidade da estratégia de permitir que tal perfil seja criado para alicerçar a atividade policial. A discriminação está no próprio argumento que pretende sustenta-la. Seres humanos não podem ser discriminados negativamente. Não existe suporte moral ou jurídico para essa premissa.

No Brasil, as polícias, conforme o artigo 144 da Carta de 1988, são instituições que tem a seu cargo a preservação da segurança pública, que é conforme o artigo 6º, um autêntico direito fundamental. Portanto, a atuação de cada uma e, portanto, de cada agente, está ligada a postulados constitucionais de respeito à dignidade humana, não discriminação, inviolabilidade da vida, garantia das liberdades cidadãs e em geral o conjunto dos direitos fundamentais. Também, desde logo, conforme o 144 do Código de Processo Penal, a revista pessoal independe de mandado judicial, bastando a fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos que constituam corpo do delito.

Há, certamente, um juízo discricionário em favor da polícia, da qual se exigem critérios de razoabilidade que não são caprichosos, senão ancorados, precisamente nos postulados constitucionais. Por outras palavras e tentando ser mais precisos: a necessidade de combater práticas ilícitas está autorizada pela Constituição, constitui a segurança publica um direito fundamental, contudo, o exercício da atividade policial e esse combate não pode ser desculpa para violentar direitos fundamentais e realizar práticas discriminatórias reveladoras de um prejulgamento do agente com fundamento na cor da pele. 

Não é sem razão que a revista pessoal e a identificação policial, que recebe o nome de Stop and Search, na Grã Bretanha e de Stop and Frisk, nos Estados Unidos, tem sido bastante questionada pelos constantes abusos cometidos a seu amparo, em alguns casos, com a fatalidade da morte da pessoa abordada. Na Colômbia o caso de Javier Ordoñez ainda é analisado como matéria de análise sobre o que não pode ser uma abordagem policial. Tanto naqueles países como na América Latina, infelizmente, pessoas negras tem 4 vezes mais possibilidades de serem detidas ou privadas da liberdade, segundo as estatísticas de entidades como a Home Office no ano 2015 e outros dados igualmente confiáveis de organizações de direitos humanos.

Mas, voltando ao Brasil, a fundada suspeita à qual faz alusão o dispositivo do CPP somente pode se deduzir de indícios de que a pessoa submetida à revista participa ou participou da comissão de algum delito, da qual se desprende, no caso, que a ação de abordagem é razoável e necessária.  

No Estado de São Paulo, segundo as estatísticas da Secretaria de Segurança Pública foram realizadas no ano 2023 um total de 9.287.983 requerimentos de identificação e revistas pessoais (https://www.ssp.sp.gov.br/Estatistica/plantrim/2022-01.htm). Entretanto, estes dados, frios e sem maiores explicações, não oferecem as circunstâncias nas quais se realizou a prática policial. Não há como estabelecer qual as características das pessoas, sexo, idade ou etnia, cor da pele, nacionalidade e outros dados que podem ser de especial interesse.

Sem embargo, e como também acontece em outros países, no Brasil há um forte movimento de organizações que destaca, através de pesquisas constantes, que a prática da polícia se concentra em determinados grupos sociais e se utiliza com frequência e sistematicidade o critério da cor da pele para realizar a abordagem.

Se temos reconhecido que o racismo estrutural e o discurso de ódio se espalham e se manifestam nos entreveros diários da convivência humana, a olhos vista, resulta bastante lógico pensar que como uma consequência quase que natural existam práticas como detenções arbitrarias por parte de quem exerce autoridade em nome do Estado. Ao final, a força pública está inserida dentro do mesmo contexto de discriminação.

Por isso, a questão que enfrenta o STF é delicada e poderia potencializar um amplo debate sobre as práticas policiais em determinadas regiões da periferia das grandes cidades, para somente citar uma questão. No Brasil e no restante da América Latina grupos inteiros de pessoas são estigmatizadas, submetidas a arrestos, detenções e registros por mera suspeita, perpetuando-se os estereótipos e o racismo. Para essa dinâmica se argumentam as teses de que há segmentos sociais perigosos tendo em vista, por exemplo, de que país procedem, onde moram, que religião praticam ou que música dançam, e que a polícia deve agir com medidas de prevenção contra eles. Um controle social fruto dos preconceitos de sociedades nas quais as diferenças se tornaram desigualdades, ao amparo e reflexo direto do surgimento e reprodução perversa de classes sociais fruto de um sistema excludente e selecionador de quem pode e quem não pode ter direitos e cidadania plena.

O STF decidirá, mas, com independência de que se aplique ou não ao caso, a filtragem racial é tema a ser debatido com maior fôlego e, por supuesto, devem-se extrair as possíveis saídas para avançar a uma sociedade cada vez mais democrática.     

 

 

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