Filosofia experimental: Filosofia experimental: “O trem assassino” e as redes morais do cérebro (Parte 1)

26/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 26/03/2015

 

“Una forma de pensar en las reglas morales es que son un conjunto de cosas que les digo a los demás que no pueden hacer. Utilizamos la moralidad como un método para limitar la conducta de los demás, aunque a veces digamos que es por su propio bien. Así pues, en cierto modo, se puede pensar en la moralidad como una forma de coartar la libertad de acción de los demás.”   Robert Kurzban 

«Moral». A palavra em si se impõe. Ao ouvi-la é inevitável sentir um temor quase reverencial, um máximo respeito de natureza colossal, tão irredutível em aparência que contribuiu a esculpir o mundo com o vigor de sua palavra. Muitos foram (e são) os autores e pensadores que, com maior ou menor exatidão, trataram de precisar o que é a moral, chegar ao seu «núcleo duro» para poder por fim dar com uma resposta definitiva mediante a que solver uma problemática duradoura. A questão de que requisitos devem colmar a conduta humana para ser considerada como «moral» foi (e ainda é) uma constante na história da filosofia e das teorias sociais normativas, passando por rios de tinta desperdiçados em «metafísica».

E se bem há muitos fatores a ter em conta, não necessariamente acumulativos, dizer que existe um único padrão definidor da «moral» é mais bem discutível. Na verdade, resulta evidente que se nos seguimos perguntando acerca do que é a «moral» somente pode indicar que ninguém o sabe a ciência certa: nem o cidadão comum nem o estudioso mais versado. Quer dizer, que a pergunta siga sendo relevante unicamente significa que estamos todos, para bem ou para mal, igual de confusos em torno à questão.

Com essa acidez tão sua, Bertrand Russell dizia que «tenemos dos tipos de moralidad una junto a la outra: una que predicamos pero no practicamos, y otra que practicamos pero rara vez predicamos». É fácil acomodar-se com relação à «moral» e dar por assentado que é algo que se pode entender e praticar sem dificuldade alguma: para muitos – inclusive para os que vivem segundo as leis e valores de outro mundo - «moral» é com frequência sinônimo de tudo o que uma moral não deve ser. O certo, contudo, é que a «moral» é um conceito abstrato muito difícil de definir; mais ainda se o propósito é o de buscar-lhe raízes empíricas. Não há nada físico nem tangível ao que possamos chamar «moral». Forma parte do mundo das relações, não do mundo físico dos objetos.[1]

Mas isso mesmo sucede com qualquer constructo mental. Não há nada inerente a uma pessoa que não dependa de um cérebro que o perceba e o processe. Nosso entorno, o humano, é um mundo de relações entre cérebros e mentes. Os sentimentos morais e nossa capacidade ética derivam de nossa arquitetura cognitiva e os códigos éticos e jurídicos, por sua vez, surgiram como produtos da interação entre a biologia e a cultura.

Ademais, só um descerebrado se negaria a admitir e assumir que o cérebro humano, sede de nossas ideias e emoções, da linguagem, da moral e da justiça, é o único meio através do qual os valores chegam ao mundo. É o cérebro que nos permite dispor de um sentido moral, que nos proporciona as habilidades necessárias para viver em sociedade, para interpretar e dar sentido ao mundo, para tomar decisões e solucionar determinados conflitos sociais, e o que serve de base para as discussões e reflexões filosóficas mais sofisticadas. A moral e a justiça não existem mais que no cérebro do homem ao que vai dirigido e que somente ele é capaz de produzir, compreender e aplicar suas normas, princípios e valores.

Esta fundamental evidência tem implicações para a moralidade humana, porque para compreender «lo que somos y cómo actuamos, debemos comprender el cerebro y su funcionamiento» (P. S. Churchland). Nada obstante, para a maioria dos filósofos as verdades morais são imposições razoadas. Ainda que não invoquem nenhuma divindade, seguem propondo um processo descendente no qual formulamos valores, princípios e normas e logo os impomos à conduta humana. É certo que as deliberações morais têm lugar em um plano tão elevado? Por que a moralidade tem que vir imposta desde «acima» e não pode vir de «dentro»? Que sentido teria conceber e ditar regras morais impossíveis de cumprir? Não necessitam afiançar-se em quem e que somos? Seria realista, por exemplo, exortar à gente a ser justa (boa ou correta) com os demais se não tivesse uma inclinação natural para comportar-se assim? Teria sentido apelar à justiça e à igualdade ou reagir a um trato injusto se sua ausência ou presença não suscitara poderosas emoções nos indivíduos? Por que não pressupor que nossa humanidade, e também o autocontrole necessário para uma sociedade suportável, é algo que levamos incorporado? Não tem a moralidade que ajustar-se à razão de ser da espécie?

É provável que todas estas perguntas, em vez de proporcionar respostas concludentes, não façam senão gerar mais perguntas ainda, suscitadas todas elas por esse intangível halo de mistério de que a «moral» se alimenta. Mas também é possível conjecturar que uma explicação unitária de base para a compreensão da moral e da justiça (e de suas respectivas projeções fenomenológicas), a partir das implicações ético-jurídicas da natureza humana, existe. Desde o ponto de vista teórico e empírico é possível imaginar uma explicação que atravesse as escalas do espaço, do tempo e da complexidade para encontrar em nossa natureza os fundamentos naturais e neurobiológicos adaptativos da moral e da justiça, sempre e quando se admita que: i) as características neurológicas e psicológicas (psicobiológicas) que possibilitam a conduta moral humana «deben de tener un origen en los procesos evolutivos que las crearon»; ii) os valores e imperativos morais se considerem uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.

Em minha opinião, esta constitui a melhor trajetória para distanciar-nos das inferências estúpidas e ajudar-nos a buscar as raízes de nossa moralidade em como somos, no que nos ocupa e o que nos preocupa, em nossa natureza, em definitiva (P. S. Churchland). De fato, quando eliminamos a biologia da vida social, a ciência mesma fica reduzida a um de tantos sistemas arbitrários de pensamento (R. Trivers): “Todo es a la vez naturaleza y cultura. A partir de aquí prácticamente todo es política”, sentencia Michael Ruse.

Dito isto, e tendo em conta os correlatos que no cérebro parecem ditar o sentido do comportamento moral e da justiça[2], recordarei que na atualidade existe toda uma variedade experimentos que se centram na busca de substratos neuronais diferenciais para a resolução de dois grupos diferentes de dilemas que se distinguem pelo modo de chegar a um mesmo resultado (J. Greene e colaboradores).  São experimentos mentais nos quais ao cérebro lhe resulta difícil tomar uma decisão e que estão pensados para investigar como trabalham nossa cognição e intuição moral.

Consideremos, por exemplo, o dilema moral clássico proposto inicialmente nesta forma por Phillipa Foot (caso 1). Imagine uma situação onde a sua interferência pode significar o sacrifício de uma vida para salvar outras cinco. Um trem descontrolado avança por uma via. Em seu caminho se encontram cinco pessoas que morrerão se o veículo mantém a mesma trajetória. Você, que se encontra junto à via do trem, é testemunha da cena anterior e tem a oportunidade de salvar-lhes a vida mediante o simples movimento de pulsar um interruptor que desviará o trem para outra via diferente… mas com um preço. Se o trem gira para a outra via, atropelará e matará somente uma pessoa em lugar de cinco. É correto pulsar o interruptor? Se você é como a maioria das pessoas, não vacilará à hora de pulsar o interruptor: experimentamos poucas dificuldades à hora de decidir o que fazer nessa situação. E ainda que a perspectiva de pulsar o interruptor não seja precisamente agradável, a opção utilitarista (matar a uma pessoa em lugar de cinco) representa a «opção menos má». Verdade?

Agora consideremos a seguinte variante (caso 2), proposta por Judith Jarvis Thomson. Como antes, o descontrolado trem ameaça com matar a cinco pessoas. Mas esta vez você se encontra em uma passarela (ponte) sobre a estrada de ferro e tem a seu lado a um desconhecido muito corpulento. A passarela não é alta. Somente terá que situar-se detrás desse homem e empurrá-lo com força. Seu pesado corpo bloquearia o trem. O desconhecido morreria, evidentemente, mas se salvarão cinco pessoas. Você faria? Deveria empurrar-lhe? Se você for como quase todo o mundo, se sentirá um pouco mais cauto e angustiado ante a sugestão de empurrar a uma pessoa inocente, ainda que seja para salvar outras cinco almas. Aqui poderíamos dizer que nos encontramos ante um dilema «real».

Essa dicotomia substancial nas respostas resulta assombrosa quando em realidade as cifras (salvar a vida de cinco pessoas em troca da vida de um só indivíduo) não variam entre os dilemas. Está justificada essa diferença de trato moral? É moralmente correto pulsar o interruptor? E por que não está moralmente permitido empurrar ao homem corpulento à via? É sempre inaceitável utilizar a uma pessoa como um simples meio? Qual a atitude moralmente adequada quando entra em conflito algo como a distinção entre «matar» e «deixar morrer»?


Notas e referências:

[1] Naturalmente, há outras formas de construir o objeto da «moralidade». Além de algo relacionado com a realização de nossa natureza essencial (o modo aristotélico da busca da própria «excelência»), a moralidade também tem que ver com «como» nossas atitudes e ações devem ter em conta as necessidades, desejos e direitos dos demais; quer dizer, como algo relacionado prioritariamente com nossas relações com os demais. Esta última tem a vantagem de pôr em primeiro plano o que muitas pessoas consideram o assunto mais profundo e difícil com o que tem que enfrentar-se a teoria moral, e que é a aparentemente iniludível possibilidade de conflito entre as exigências da moralidade e as do próprio interesse (H. Frankfurt). É, nesse sentido, a plena humanidade dos sujeitos a meta de todo o esforço moral: a prioridade (moral) que nos recorda a cada momento nossa dívida para com o próximo, a responsabilidade que nos ata a um ser tão precário e vulnerável como nós, o laço que amarra e une nossas respectivas felicidades.

[2] A evidência de todos os tipos de estudos neurobiológicos sugere que existe uma rede “neuromoral” no cérebro: um “órgão” ou hardware dedicado à moralidade. Esta rede, seguindo a lei de Murphy, pode avariar-se e dar lugar a umas respostas emocionais atenuadas ante a possibilidade de fazer dano aos demais e realizar condutas antissociais ou delitivas. Dito de outro modo, se a moralidade é inata no ser humano (F. de Waal; P. Bloom), se existe um “sentido moral”, deve haver uns mecanismos cerebrais, um assento no cérebro, para essa moralidade inata. Daí que não se pode julgar no mesmo plano a conduta de alguém que tem seu cérebro moral intacto com a de alguém com transtornos cerebrais que tem seu cérebro moral danificado. Por quê? Pois pelo simples fato de que não é o mesmo o comportamento de uma pessoa com o sistema moral (pré-frontal) ileso e uma que não o tem (nos referimos, por exemplo, a certos quadros clínicos e a estudos de fMRI em sujeitos normais, em psicopatas, em psicopatias adquiridas por lesões cerebrais, e na demência fronto-temporal). As pessoas com lesões na rede “neuromoral” têm a bússola moral rota, uma incapacidade para controlar seus impulsos e demais déficits morais. Para ser considerado responsável o indivíduo tem que ter a capacidade de poder atuar de outra maneira; e quando o cérebro moral está lesionado, atuar de modo alternativo não é possível. O que leva à conclusão de que a forma como enfocamos a valoração das questões de responsabilidade e o funcionamento do sistema legal a este nível parece não ser compatível com os descobrimentos da boa neurociência, isto é, que já não é possível sustentar à vista das provas existentes. Cedo ou tarde terá que cambiar para dar lugar a esse tipo de “sorte moral” (B. Williams & T. Nagel) que provoca alterações em funções que afetam a responsabilidade desses indivíduos (C. Fine & J. Kennet; M. F. Mendez; W. Glannon; U. Wagner et al.). Nada obstante, que não sejam responsáveis não quer dizer, evidentemente, que não se lhes possa aplicar nenhum castigo. As visões teóricas do castigo legal se agrupam principalmente em dois tipos de teorias: as retributivas e as utilitaristas. A visão retributiva mira ao passado e se centra no agente do ato e em sua relação com esse ato. Para castigar desde o ponto vista retributivo o indivíduo tem que merecê-lo e, por essa razão, atribuir-lhe liberdade e possibilidade de atuar de outra maneira. Este princípio se fundamenta na ideia intuitiva  de que é “injusto” que uma pessoa seja julgada ou castigada pelo que não depende dela, pelo que não está baixo seu controle (“princípio de controle”). Mas a visão utilitarista mira ao futuro, às consequências para a sociedade e aos indivíduos do castigo, sem necessidade de que o castigo seja merecido. Desde uma ótica utilitarista, por exemplo, é possível castigar a um psicopata pelo perigo que supõe para a sociedade. O que já não parece razoável é basear as decisões legais ou judiciais no que as estamos fundamentando atualmente, em que esses indivíduos (por exemplo, os  psicopatas) são livres para atuar de outro modo ou de que essa espécie de “suerte moral, más allá de la voluntad” é claramente absurda.


Atahualpa Fernandez

Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Illusion of Depth and Space (...)// Foto de: Dominic Alves // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/dominicspics/3386152940 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura