Filosofia e matemática  

10/03/2019

 

Em dois dos últimos livros por mim lidos, sobre Filosofia, o encerramento tratou da relação entre Filosofia e matemática, uma vez que Carlos Augusto Casanova encerra a obra “Física e Realidade: reflexões metafísicas sobre a ciência natural” com dois apêndices: “Sobre a realidade das matemáticas” e “Notas matemáticas acerca de Hilbert e seus estudos sobre as geometrias não-euclidianas e não arquimédicas”. Vittorio Hösle, por sua vez, em “Interpretar Platão”, igualmente, aborda a matemática nos dois últimos capítulos: “Sobre a filosofia platônica dos números e seu significado matemático e filosófico” e “Fundamentação platônica da euclidicidade da geometria”.

Hösle parte do princípio adotado por Casanova, dizendo este que a matemática não pode ser considerada a primeira das ciências, como exposto no artigo “Hierarquia das Ciências” (https://emporiododireito.com.br/leitura/hierarquia-das-ciencias):

“Casanova, todavia, acertadamente, rejeita a ideia segundo a qual a matemática seria a primeira das ciências, aludindo à Metafísica de Aristóteles para aduzir que a matemática supõe axiomas primeiros, que não são por ela estudados, declarando que a física é subordinada à matemática que, por sua vez, é subordinada à metafísica, porque é esta última que tem como objeto o princípio de não-contradição, pressuposto tanto pela física como pela matemática, das quais não é alvo de estudo.

‘Ora, uma disciplina que supõe o axioma fundamental, que não o considera, não pode ser tida como a primeira de todas. Mas é óbvio que a disciplina que em sua etapa ‘demonstrativa’ (não somente ‘inventiva’) considera o princípio de não-contradição é a metafísica. Somente ela, portanto, possui o título para reclamar a primazia entre as ciências’ (Idem, p. 53 – negrito meu).”

Vittorio Hösle destaca Platão como o primeiro a reconhecer que a matemática não pode ser fundamentada a partir de si mesma “na medida em que o critério de consistência formal permite a formação de sistemas opostos”, do que decorre “a deficiência, por princípio, de qualquer forma de filosofia que tome por modelo o método matemático”, exigindo-se um método mais consistente que a matemática para que se possa chegar à verdade possível, o que depende de um fundamento iniludível que é, segundo Platão, “o pensamento do pensamento, que se fundamenta reflexivamente, em última instância, pois se fundamenta a si mesmo, no pensamento dos princípios e da mais altas Ideias” (Vittorio Hösle. Interpretar Platão. Trad. Antonio Celiomar Pinto de Lima. São Paulo, SP: Edições Loyola, 2008, p. 163).

Hösle esclarece a divergência filosófica entre Platão e Aristóteles no estabelecimento de uma ordem para as ciências, porque o primeiro entendia que a hierarquia tinha a metafísica no topo das ciências, seguida pela matemática e depois pela física; enquanto o segundo ordenava o conhecimento partindo da metafísica, sucedida pela física, estando a matemática em terceiro lugar na importância científica. Salienta, por fim, que “com essa subordinação da matemática à física está dada, obviamente, uma opção pela geometria; afinal, são corpos e grandezas, não números, que, enquanto movidos, são objeto da física” (Idem, p. 173).

É possível entender que os dois grandes nomes da filosofia grega tinham abordagens distintas da natureza, pois Platão desenvolveu a doutrina das ideias, tentando explicar o Ser em sua concepção permanente, que transcende as aparências corporais, enquanto o foco de Aristóteles estava no movimento de transformação do Ser, tendo estudado as causas que levam o Ser de um estado a outro.

Vale salientar que o platonismo é uma filosofia dualista, dizendo Hösle que Platão chegou a essa dualidade, na matemática, depois que “um Uno totalmente transcendente se revelou impossível” (Idem, p. 175), ressaltando que a hierarquia platônica do Ser, de modo simplificado, “se constitui de princípios, Ideias, entidades matemáticas e mundo natural” (Idem, p. 179).

Aristóteles, contudo, não aceitou a existência independente de substâncias matemáticas, dizendo que, “em geral, resultam conclusões que são contrárias tanto à verdade quanto às opiniões habitualmente aceitas se postularmos assim os objetos das matemáticas como coisas que existem separadamente” (Aristóteles. Metafísica. Trad. Edson Bini. 2 ed. São Paulo: EDIPRO, 2012, p. 324). E conclui no sentido de que “(1) os objetos das matemáticas não são mais substanciais do que os objetos corpóreos, que (2) não são anteriores, do ponto de vista do ser, às coisas sensíveis, mas apenas do ponto de vista da fórmula, e que (3) não podem, de modo algum, ter existência independente” (Idem, p. 325).

É notável, pois, a divergência metafísica, quiçá teológica, entre Platão e Aristóteles, decorrendo daí uma concepção diferente quanto à natureza e à função da matemática. Entendo que essas posições antagônicas têm origem na forma pela qual dois dividem ou cortam a realidade, a partir de um primeiro princípio.

Platão via o mundo filosoficamente de forma dual, o mundo das ideias e o mundo da natureza, e dessa visão decorria o seu entendimento sobre todas as coisas. Em sentido oposto ao defendido por Platão, podemos compreender a realidade como uma unidade integral, que não pode ser conhecida racionalmente sem uma análise ou divisão de sua manifestação, o que dissolve provisoriamente aquela unidade original.

Pode-se, portanto, concordar com Aristóteles no sentido de que a matemática não tem existência independente, resultando de uma ação humana sobre a realidade, a ação de separar ou dividir o mundo em fenômenos, sendo que talvez exista, de fato, aquele Uno totalmente transcendente que fora descartado por Platão.

Assim, ao invés de adotar uma metafísica dualista, como a de Platão, podemos pressupor uma metafísica monista, entendendo o universo como uma totalidade da qual separamos coisas e fenômenos para fins de conhecimento do movimento cósmico, que tem origem no primeiro motor, que tudo move sem se mover. Como destacado por Aristóteles, “há uma substância que é eterna, imóvel e independente das coisas sensíveis, tendo sido também mostrado que essa substância não pode apresentar qualquer magnitude, mas que é sem partes e indivisível, pois produz movimento num tempo infinito, e nada finito possui uma potência infinita” (Metafísica, obra citada, p. 309).

Parte-se, portanto, de uma realidade única e infinita, ideia resgatada por David Bohm, dizendo que o objeto da Física é uma totalidade indivisível, o holomovimento do qual são abstraídos determinados aspectos para fins de estudos, e “qualquer parte, elemento ou aspecto que possamos abstrair no pensamento, isso continua a envolver o todo e está, portanto, intrinsecamente relacionado com a totalidade da qual foi abstraído. Consequentemente, a totalidade permeia tudo o que está sendo discutido desde o início” (David Bohm. Totalidade e a ordem implicada. Tradução Teodoro Lorente. São Paulo: Madras, 2008, p. 179).

Tal conclusão vale também para a matemática que é, assim, o resultado da atividade criativa humana de dividir a realidade, pelo que a operação matemática fundamental pode ser considerada a divisão, qualitativa ou quantitativa, distinguindo entre o “eu” e o “outro” e o “eu” e as “coisas”, entre coisas e fenômenos semelhantes e distintos, e entre unidades espirituais e corpóreas, abstraídas da totalidade do Ser.

Vittorio Hösle afirma que as mais importantes posições da filosofia da matemática do século XX são o intuicionismo, o logicismo e o formalismo. O formalismo busca uma completa autonomia para a matemática, entendendo que a consistência é suficiente como um critério de verdade da ciência matemática. O logicismo, por sua vez, fundamenta a matemática na lógica, com a qual se confunde. Dentro da linha intuicionista, Hösle destaca Brouwer, que rejeita a “ontologização de entidades matemáticas”, para quem estas “são produzidas através de um ato psíquico de consciência com o qual tendencialmente são até mesmo identificadas”, vendo Brouwer a matemática como um fenômeno histórico a serviço da vida (Obra citada, pp. 208-209).

Ocorre, destarte, na produção do conhecimento intelectual, uma separação psíquica e/ou uma separação material nos fenômenos do mundo, como abstrações da realidade única, sendo que a matemática é, pois, resultado da divisão dessa unicidade fundamental do mundo. A unidade é a realidade básica, e todo conhecimento, matemático ou não, decorre da operação mental primordial que é a divisão, a divisão criativa que parte o mundo espiritual e material em unidades iguais, ou não, que, por sua vez, podem ser também divididas, em proporções variadas.

O corte da realidade pode ser feito com ou sem perda de substância. Há perda de substância quando o resultado da divisão é propriamente uma divisão, em que as partes são dependentes do todo para que pertençam a uma unidade, como ocorre na divisão material e corporal das coisas, desdobrando seus acidentes. Também é possível a manutenção da unidade primordial após a operação, que significará, de fato, uma multiplicação, quando não há perda de substância durante a divisão, o que se dá, por exemplo, quando Deus divide conosco seu Espírito, fazendo de nós integrantes do primeiro motor, em nossa essência imóvel, talvez sendo esse o fundamento da geração dos números, a partir da dualidade, em Platão, ou da multiplicação bíblica dos pães, ou da criação de espaço por meio da energia escura.

Além disso, a partição pode ser em retas ou curvas, pode ser euclidiana ou não, no que se inclui a quebra fractal, havendo inúmeros sistemas matemáticos decorrentes de princípios ou cortes distintos pelos quais parte da realidade una pode ser abstraída ou destacada do todo o qual integra e de cuja existência é dependente, porque a totalidade permeia tudo o que está sendo discutido desde o início. Nesse ponto, como já salientado, todo sistema matemático é condicionado pela Metafísica, que determina como se dá aquele corte, sendo que o sistema matemático em si será sempre circular, incapaz de fundamentar-se a si mesmo, como ressaltado.

A unidade primária é inconsciente e imemorial, como visto no artigo anterior, já surgindo a consciência como um estado de separação inicial, o que permitiu a formação das ciências arcaicas, que se desenvolveram em conhecimentos mais recentes, incluindo os dos filósofos gregos, que já pressupunham, por sua vez, uma divisão mental realizada pelos pioneiros da atividade científica a partir da criação dos mitos, e disso decorre a dificuldade em se entender que a unidade é o estado básico da realidade e que nosso conhecimento já se desenvolveu a partir de uma divisão que está implícita na forma pela qual estudamos os fenômenos.

Essa ideia da unidade básica do mundo é compatível com a cosmovisão da religião monoteísta, segundo a qual apenas Deus é real, em sua unidade completa, eterna, total, sem magnitude, sem partes e indivisível. A divisão dessa realidade pela humanidade, o rompimento com Deus, sem o retorno àquela unidade essencial, é conhecida na literatura Cristã como pecado original, que foi superado por Jesus.

Qualquer corte dessa realidade, portanto, é arbitrário e provisório, é uma abstração que deve ser reconhecida como tal, e não pode permanecer, sendo função da Filosofia e da Religião, assim, o que também vale para a Matemática, a manutenção ou recuperação da Unidade do Ser em sua totalidade, rompida por uma divisão, que, por sua vez, decorre de uma escolha Teológica ou Metafísica, para que, então, prevaleça a racionalidade daquele Ser Uno, de modo que a humanidade em sua unidade pensante possa compreender, na existência, intelectual e sensível, superando todas as divisões e abstrações artificiais criadas pela mente humana, o significado autêntico da expressão “eu e o Pai somos um” (Jo 10, 30).

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura