Por Atahualpa Fernandez - 08/08/2015
Leia a Parte 1 aqui
“El hombre, en su arrogancia, piensa que es una gran obra digna de la participación de un dios. Más humilde, y yo creo que cierto, es considerarlo creado a partir de los animales.”(Charles Darwin)
Desde logo, o sistema auditivo-vocal que se havia desenvolvido nos primatas como um sistema de alerta baixo o controle “automático” do sistema límbico (o sistema motivacional-emocional) foi submetido a pressões seletivas remodeladoras intensas. Com efeito, na savana, aberta e com pouca proteção, era muito desvantajoso não poder controlar, à vontade, a emissão de sons de alerta, sons que poderiam dar sinais localizadores para os predadores ou, ao contrário, constituir até mesmo sinais de alerta para as possíveis presas. Saber manter o silêncio, poder avaliar o perigo e arrancar a expressão gutural do reino emocional regido pelo sistema límbico converteu-se em uma prioridade evolucionária – quer dizer: no princípio não era o verbo, mas o «silêncio».
Isso acabou favorecendo o aparecimento de um sistema auditivo-vocal que deixou de ser tutelado exclusivamente pelo sistema límbico para passar a ser controlado, de forma crescente, por zonas neocorticais do cérebro: o que acarretou, em igual medida, um importante aumento absoluto e relativo dessas zonas nos cérebros da primeira espécie de Homo, a aparição de novas conexões intramodulares (auditivo-auditivo) e intermodulares (visual-auditivo) e de novas capacidades associativas.
O surgimento do trato vocal no gênero Homo não somente teve que ver com as evidentes possibilidades de transformação morfológica abertas pelo maior bipedismo dos Australopithecus (e o bipedismo precedeu em muito ao crescimento do cérebro do hominídeo), senão também com a incipiente liberação que neles se deu do sistema auditivo-vocal relativamente à tutela do sistema límbico e à consequente necessidade de expressões vocais mais e mais controladas e matizadas.
Por outra parte, e referente às necessidades adaptativas de sociabilidade, como nos símios, sua natureza e predisposição social havia sido fortemente desincentivada seletivamente durante o período em que seus antecessores (o ancestral comum) ocuparam a periferia do nicho arbóreo. Mas, agora, na savana aberta, voltavam a necessitá-la: as pressões seletivas na savana aberta, com mais ausência de recursos, induziram nosso ancestral a voltar a ter fortes tendências sociais (cooperação), provocadas tanto por necessidades de proteção contra predadores (muito mais rápidos e fortes), para a caça em comum, como para o abastecimento coletivo em um meio ambiente particularmente hostil.
Parece que há bons motivos, que tem que ver com a lógica da teoria evolucionária (recorde-se o princípio acima indicado), para considerar que era inviável que fora possível um «regresso» à forte sociabilidade anterior dos monos não hominídeos. Nada obstante, as forças evolucionárias optaram por elaborar a necessidade adaptativa de sociabilidade por outro caminho, insólito, mas promissor: favorecendo o ulterior avanço das capacidades cognitivas, promovendo a capacidade auditiva e sentando as bases neurofisiológicas definitivas para a linguagem, o pensamento de comunicação e associação simbólica (visual-visual, visual-auditiva e auditiva-auditiva) e a intercomunicação proposicional.[1]
Como explica Philip Kitcher, em algum ponto da evolução dos hominídeos ocorreu algo que nos dotou dos mecanismos psicológicos adequados para superar a tendência a atuar guiados pelo instinto, o desejo, a emoção ou qualquer impulso dominante em determinado momento (ou seja, para atuar como «seres caprichosos», para utilizar a terminologia de Harry Frankfurt ao referir-se aos seres que carecem de um mecanismo pelo qual podem discriminar de forma consciente entre as variadas motivações que de vez em quando lhes impulsam a atuar ou, o que é o mesmo, que não se guiam por um raciocínio autoconsciente acerca do apropriado de suas ações propostas). Talvez tenha começado com a tomada de consciência de que certas formas de comportamento projetado poderiam ter resultados problemáticos e a consequente habilidade para inibir os desejos que de outro modo haveriam sido dominantes. Tudo isso se vinculou à evolução de nossas capacidades linguísticas, sendo muito provável, inclusive, que alguma faceta da vantagem seletiva para a habilidade linguística radica em ajudar-nos a saber quando devemos frear ou controlar nossos impulsos.
De todos modos, como foram capazes de sobreviver em condições de precário habitat é, desde logo, um mistério. Seguramente tiveram de resolver problemas de interpretação do entorno em que viviam e de antecipação das condutas de seus congêneres, para o que era necessário, em geral, a produção de conhecimento muito complexo. O que parece fora de toda dúvida é que não somente a fabricação e o uso de utensílios, senão também, e muito especialmente, os problemas da convivência social, competitiva e cooperativa, implicaram uma pressão seletiva intensa sobre o aumento da capacidade cerebral.[2]
E à medida que a capacidade cerebral e a complexidade sociocultural foram crescendo, a organização dos grupos também foi incluindo, necessária e concomitantemente, o «controle» da competição e da cooperação entre os indivíduos de uma determinada comunidade por meio do acúmulo de «tradições» que, não obstante em processo contínuo de renovação (da evolução acumulativa e renovada da cultura pelo efeito «ratchet», de que nos fala Michael Tomasello), posteriormente, com o longo transcurso do tempo, significariam o passo para uma conduta moral e normativa no sentido que toma na atualidade.[3]
Tal como concebe P. Kitcher, nossos antepassados foram capazes de formular padrões para a ação, discuti-los entre si e elaborar formas para regular a conduta dos membros do grupo - enfatizando, na linha de Allan Gibbard, o papel da conversação sobre «o que fazer» na história do pensamento moral, desde os pequenos grupos de seres humanos às sociedades atuais. E foi precisamente nesta etapa, conjectura Kitcher, que começou um processo de evolução cultural: diferentes grupos pequenos de seres humanos colocaram em prática uma série de recursos normativos (comunicação simbólica plamada em regras, histórias, mitos, imagens, etc.) para definir o modo em que vivemos ou como deveríamos viver. Alguns destes recursos ganharam popularidade entre seus vizinhos e grupos de descendentes, quiçá porque ofereciam um melhor acesso à reprodução, fomentavam a sobrevivência ou mais provavelmente porque conduziam à formação de sociedades mais tranquilas, caracterizadas por uma maior harmonia e um maior nível de cooperação. Os recursos mais exitosos se foram transmitindo de geração em geração e aparecem de forma fragmentária nos primeiros documentos escritos de que temos notícia: os códigos das sociedades mesopotâmicas.[4]
Dito isto, só resta admitir de uma vez por todas a evidência de que se acabou a era das cosmovisões totalitárias e da moralidade descendente. A versão bíblica da criação especial do homem à imagem e semelhança de Deus, tão apreciada pelo humanismo moderno, cede passagem ao “Símio ancestral” do qual todos nós descendemos. E nada disso vem da transcendência, ainda que aponte em sua direção. Esta é uma visão que em certo modo tranquiliza, uma modéstia ontológica que nos obriga a conhecer os limites de nossa natureza e nos imuniza contra ancestrais ansiedades, porque em um momento em que algumas de nossas convicções mais profundas acerca da condição humana se veem sacudidas, os velhos mitos acerca da moral humana resultam menos necessários. Já podemos viver sem verdades, pressuposições ou presunções absolutas e entender que é a natureza humana e sua história evolutiva a que provê o verdadeiro fundamento de nossa moralidade.
Como já manifestei em outra ocasião, não somos uma espécie que graças à capacidade de reflexão sobre nossa situação ponderou e decidiu sobre as vantagens de associar-se. Não somos seres exclusivamente morais ou portadores de uma racionalidade absoluta que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado. Não! Somos apenas uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta. Nossos valores, normas e imperativos morais/jurídicos nada mais são que uma parte da história natural da espécie humana e fruto de nossas interações sociais diárias.
Notas e Referências:
[1] Deve ter havido pressões seletivas extremas em favor da organização em grupo, mas essas pressões operaram sobre monos que, senão “penosos individualistas” ou “isolados sociais”, tampouco estavam inerentemente dispostos para criar matrilinhagens e grupos coesos (como não o estão hoje os chipanzés, os orangotangos e os gorilas). De maneira que as pressões ecológicas não puderam operar sobre tendências genéticas já existentes no sentido da formação de grupos e impulsar agrupamentos ainda mais compactos e coesos (como, em contrapartida, ocorreu com os babuínos da savana). A seleção teve que operar sobre a estrutura genética de uma criatura com tendência mais individualista e com uma integração dos sentidos visual, táctil e auditivo maior que a de qualquer outro mono.
[2] Existem, de fato, vários campos em que essa competição poderia operar: primeiro, existem as relações entre os sexos (nas quais machos e fêmeas negociam a criação de oportunidades de acasalamento); segundo, existe a competição intrasexual dos machos pelo acesso às fêmeas; terceiro, a competição pelos recursos (como o alimento e o território); e, por fim, se a cooperação – que teria alterado as condições de competição – tornou-se parte importante da caça e da busca de alimentos, entre outras áreas de atividade dos hominídeos, a “trapaça” passou a ser, igualmente, uma estratégia possível (M. Rose). De fato, várias teorias modernas sobre a evolução do cérebro humano mantêm que o principal estímulo ambiental seletivo para seu rápido crescimento foram as exigências de ter que tratar com a complexidade da vida social. Em vez de pensar que o cérebro humano se desenvolveu simplesmente para solucionar os problemas do entorno material, temos que considerá-lo mais bem como um órgão social desenvolvido no interior do espírito coletivo de uma comunidade. A «função própria» do fabuloso desenvolvimento neocortical do Homo sapiens é precisamente a de facilitar a interpretação própria e alheia, a inteligência social; quer dizer, a origem biológica de nossas mais extraordinárias capacidades cognitivas – como em todos os grandes hominídeos – é de todo ponto social: os dotes do ser humano e de alguns primates para compreender nos demais o princípio de «agência» ou de «Teoria da Mente» – de conhecer que o outro tem intenções e que podemos adivinhá-las – é um dos passos mais importantes que se dão no caminho da hominização.
[3] E tal como parece haver ocorrido com a própria evolução biológica, o processo de evolução das normas não teve (e não tem) lugar de maneira linear, senão por meio de ensaios e erros. Os humanos se caracterizam por ensaiar distintas soluções normativas e adotar as que lhes parece mais eficaz em um determinado momento, até que seja possível substitui-las por outras que se revelam mais adaptadas aos seus propósitos evolutivos. Na medida em que a flexibilidade da conduta humana e a diversidade das representações culturais são, ainda que limitadas, amplas e, por outro lado, dado que as alterações culturais se podem transmitir com grande rapidez e eficácia, o processo da evolução normativa se encontra sujeito a profundos sobressaltos e equívocos e, às vezes (inclusive), a retrocessos significativos. É esta, provavelmente, a melhor explicação evolucionista das chamadas «leis injustas».
[4] Portanto, não se trata de que a natureza esteja “aqui” e a cultura “lá” e que tirem de nós em direções opostas. Não! Mais bem sucede que a natureza nos fez para a cultura: os aspectos exclusivamente humanos da psicologia, os aspectos humanos da evolução, “han sido adaptaciones que nos han permitido adoptar esta forma de vivir nueva y mejor, la cultura” (R. Baumeister). Por isso tem razão Steven Pinker quando afirma que “la cultura es crucial, pero la cultura no podría existir sin las facultades mentales que permiten a los humanos crear y aprender una cultura, de entrada”.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.
Imagem Ilustrativa do Post: Walking it alone // Foto de: Lance Shields // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/lancesh/190382917
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.