Por Atahualpa Fernandez - 07/08/2015
"¡Oh cándida incredulidad de muchas gentes, sin juicio analítico ni otra guía del laberinto… que su deseo de que ocurra lo que les conviene!" (Sofía Casanova)
Susan Blackmore começa um de seus livros com a seguinte observação: “Los humanos somos bichos raros”. Sem lugar a dúvidas nossos corpos evolucionaram por seleção natural da mesma forma que outros animais. Mas existem grandes diferenças entre nossa espécie e as outras criaturas desse complicado, incerto e ruidoso mundo. Para começar, temos a capacidade de falar e nos consideramos a espécie mais inteligente. Somos capazes de ganhar-nos o sustento de mil maneiras diferentes e nos encontramos distribuídos por todas as partes.
Somos capazes de ingressar voluntariamente em um monastério e renunciar à reprodução, atuando em contra aos ditados de nosso funcionamento biológico; podemos suicidar-nos ou matar em nome de nossas crenças culturais sobre a honra ou a religião; podemos adorar a seres inexistentes, estabelecer rituais, abraçar e fomentar crenças que não têm outra realidade intrínseca que a que lhes outorgamos em nossa mente; podemos viver imersos em ilusões cognitivas que nos induzem a pensar em um (ou vários) Deus (es) onipresente e observador atento, que fomos criados para uma finalidade especial, que há vida depois da morte ou que os acontecimentos naturais contêm mensagens importantes procedentes de outro mundo. Podemos, enfim, imaginar que as coisas são distintas ou conceber mundos imaginários (mundos dos que não temos experiência direta), fingir que há espíritos ou fadas no fundo do jardim, apartar-nos de nosso mundo e perguntar-nos como seria se fora diferente da maneira em que o percebemos.
Devido a nossa versatilidade, declaramos guerras, amamos e odiamos com a mesma facilidade e frequência, invejamos os demais, mentimos e nos envergonha a sexualidade. Consumimos televisão e cotonetes, conduzimos automóveis, usamos computadores e tomamos sorvete. Causamos um impacto ambiental tão agressivo no ecossistema que, ao que parece, nossa própria capacidade de manter vivo aquilo de que mais necessitamos para existir está em perigo de extinção. (S. Blackmore)
Nossa própria experiência consciente, da que estamos tão orgulhosos e seguros, não é mais que uma fração do que sucede na mente e que não reflete todos os mecanismos que estão atuando e que são gerados por uma multitude de processos inconscientes. E um dos maiores inconvenientes do ser humano é a dificuldade que supõe contemplar-nos uns aos outros sem prejuízos. Somos, para o bem ou para o mal, seres desenhados para julgar e valorar moralmente as pessoas e os fenômenos que nos cercam, para interpretar os demais, para ler suas mentes, para ler o que há baixo a superfície, para entendê-los e para entender a nós mesmos como seres intencionais, para antecipar acontecimentos e dar sentido ao que vemos.[1]
Por uma parte, somos animais comparáveis a qualquer outro: dispomos de pulmões, carne, sangue, coração e cérebro compostos de células vivas; comemos, respiramos e nos reproduzimos. A teoria da evolução de Darwin através da seleção natural pode explicar facilmente como chegamos, durante um largo período evolutivo e junto com os demais seres do planeta, a ser o que somos e a compartilhar tantas características. Por outra, também é certo que nos comportamos de maneira bastante distinta dos outros animais. Somos, definitivamente, distintos, porque, em certa medida, podemos ir mais além de nossos genes e atuar de maneira que resultam estranhas desde o ponto de vista das demandas de nossa herança genética. (M. Gazzaniga)
Cada um de nós é um ser único: nossos genes provêm de outras criaturas que existiram antes de nós e, de reproduzir-nos, seguirão transmitindo-se. E dado que dispomos de um talento inato para a linguagem que não tem rival e de um entorno cultural muito peculiar, somos o resultado de um complicado processo que combina os programas ontogenéticos cognitivos do organismo com uma enorme quantidade de estímulos procedentes de nossa existência (essencialmente) social, ou seja, do ambiente sociocultural em que movemos nossa experiencia vital no tempo e no espaço.
De fato, custa trabalho imaginar por que existe o homem, e não somente entendendo tal pergunta em um sentido metafísico de causas últimas, senão em um aspecto muito mais próximo do processo filogenético que teve lugar nos últimos quatro milhões de anos. Com um pequeno detalhe que não se deve deixar passar: existe um princípio importante (e inegociável) na evolução biológica por seleção natural segundo o qual a evolução sempre se incrementa a partir de algo pré-existente, quer dizer, de que não existe um ser onipotente capaz de contemplar, por exemplo, o desenho do olho humano e pensar: «Merda! Seria melhor tirar um troço e começar de novo». Começar de novo nunca é possível.[2]
Assim que há fundados motivos para supor que a espécie Homo sapiens foi submetida a intensas pressões evolucionárias promotoras de uma crescente agudeza perceptiva (dominando absolutamente a modalidade visual, seguida da auditiva e a táctil, e em progressivo detrimento da olfativa) e, sobretudo, de uma insólita capacidade para a associação, o raciocínio e a inferência (do que é testemunho o espetaculoso crescimento das regiões neocorticais do cérebro humano). Este crescimento extraordinário das habilidades cognitivas é o resultado das pressões de um meio ambiente cambiante que dava vantagens adaptativas decisivas à versatilidade, à flexibilidade das respostas e à capacidade de aprendizagem dos organismos.
Pois bem, para o que aqui interessa nossa história filogenética parece ter ocorrido como segue. Por motivos que não vêm especialmente ao caso, o antepassado comum que compartilhamos com os grandes monos hominídeos (os símios: gorilas, chipanzés e bonobos), acabou resultando menos competitivo que outros monos no nicho ecológico arbóreo originário de todos os primatas, de maneira que acabou sendo apartado à periferia desse nicho.
As pressões evolucionárias se deram aqui, na periferia arbórea, em um duplo sentido. Por um lado, a importante disposição genética à coesão social, própria dos primatas, foi desincentivada (a periferia do nicho arbóreo favoreceu mais bem a busca “individualista” de oportunidades de exploração de recursos minguados), o que levou a selecionar traços que favoreceram a autonomia e a capacidade para se fiar cada vez mais de si mesmos. Por outro, e em consequência disso, as pressões seletivas a favor do incremento das capacidades cognitivas aumentaram de forma espetacular: a agudeza visual – dominante já em todos os primatas – melhorou (aperfeiçoou-se a visão estereoscópica, já adquirida no espaço adaptativo tridimensional que era o nicho arbóreo), as conexões corticais (não regidas automaticamente pelo sistema límbico) intramodulares (visual-visual) e intermodulares (visual-táctil) cresceram, e com ele as capacidades associativas e de manipulação simbólica.
Mais tarde, nossa linha filogenética se separa dos símios quando nossos antepassados abandonam finalmente a periferia do nicho arbóreo selvagem. Estes primatas peculiares (conhecidos como Orrorin tugenensis e com um nome coloquial de Millenium Man) foram capazes de explorar as possibilidades de um nicho ecológico particular em certa forma disponível: o do solo dos bosques do Rift. Os chimpanzés e bonobos atuais (assim como os gorilas) são seres que aproveitam hoje o solo do bosque tropical; seus antepassados o faziam também, com bastante certeza. Mas aproximadamente há seis milhões de anos atrás o ser de que tratamos se distinguia deles na maneira como se locomovia pelo solo. Em lugar de caminhar a quatro mãos, apoiando a planta dos pés e as palmas das mãos, utilizou somente as extremidades inferiores. Algo parecido ao que fez Lázaro das Sagradas Escrituras: «Levántate y anda».
Esse ser que antecipou a Lázaro em sessenta mil séculos e que foi capaz de levantar-se para caminhar de forma bípede havia sofrido algumas transformações que lhe permitiriam caminhar com mais desenvoltura ao preço de trepar (em árvores) pior. O razoável e o mais provável seria que se houvesse extinguido sem mais. Mas sobreviveu. Por alguma razão que não conhecemos bem, essa maneira de locomover-se lhe dotou de certas vantagens à hora de disputar os recursos do meio com seus competidores. Com a bipedia como traço distintivo, milhões de anos depois nossos antecessores se converteram em colonizadores das savanas abertas africanas em um processo que coincide com o aparecimento das primeiras indústrias líticas e os primeiros exemplares do gênero humano. E as pressões evolucionárias que nos interessam saber parecem ter sido as seguintes.
Notas e Referências:
[1] Como esclarece Daniel Dennett, o cérebro humano é uma «máquina de antecipação», e «criar futuro» não somente é o mais importante que faz, senão que parece ser o traço definitório de nossa humanidade: a predição constitui a verdadeira entranha da função cerebral (R. Llinás). “Los humanos somos el único animal que puede contemplar su futuro, el único que puede desplazarse mentalmente por el tiempo, prever una variedad de futuros y elegir el que causará más placer y/o menos dolor. Se trata de una adaptación excepcional que, por cierto, está relacionada directamente con la evolución de los lóbulos frontales” (D. Gilbert).
[2] A certeza a favor da evolução nunca deixou de aumentar desde que Darwin acumulou evidências para convencer os cientistas de sua época de que os seres vivos são descendentes modificados de antepassados comuns. De maneira que a origem evolutiva dos organismos é hoje uma conclusão científica estabelecida com um grau de certeza comparável a outros conceitos científicos certos como, por exemplo, o de que a Terra é redonda, a estrutura do genoma humano ou a composição molecular da matéria. Este grau de certeza, que vai mais além de toda dúvida razoável, é o que indicam os cientistas quando afirmam que a evolução é um “fato”. Recordemos: a evolução é um processo histórico imprevisível. O desenho evolucionado dos organismos atuais foi causado por circunstâncias passadas que não tinham nenhuma previsão de futuro e que não tem que ver com os problemas atuais. A seleção natural - que como se sabe é uma das principais, senão a principal força desenhadora na evolução biológica - não é teleológica, orientada a um fim, capaz de prever seus cursos de ação futura e planificá-los por antecipado; ao contrário, é míope e oportunista: nem retrocede à hora de aproveitar vantagens conjunturais, nem vê mais além dessas vantagens - nunca constrói ex amorphos hylés, senão aproveitando e reaproveitando material já estruturado.
Atahualpa Fernandez é Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España.
Imagem Ilustrativa do Post: Walking it alone // Foto de: Lance Shields // Sem alterações
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