Ferrajoli ponderacionista? O sopesamento dos fatos submetidos ao juízo nas supostas colisões entre direitos fundamentais

03/10/2015

 Por Jéssica Gonçalves - 03/10/2015

A mutação histórica, ocorrida, após a 2ª Guerra Mundial no Direito, desde o modelo jurisprudencial (nomoestático/conteúdo), passando pelo legislativo (nomodinâmico/forma), até chegar, atualmente, na matriz epistemológica do constitucionalismo (forma e conteúdo), colocou em xeque, não apenas o paradigma até então vigente do (paleo) positivismo Kelsiano, mas também a própria noção de democracia formal, acrescentando-lhe a dimensão substancial da esfera do indecidível.

O constitucionalismo pode ser examinado, ao lado oposto de L. Ferrajoli, como a superação, tendencialmente jusnaturalistada, do positivismo jurídico, denominado constitucionalismo principialista (argumentativo), segundo o qual os direitos fundamentais são princípios ético-políticos (normatividade fraca), estruturalmente diversos das regras (normatividade forte), que conectam direito à moral objetiva e, em razão de se encontrarem virtualmente em conflitos, são confiados, na dicção de Susanna Pozzolo[1], ao “método do sopesamento”.

De outra forma, como complemento ao positivismo jurídico, tem-se o constitucionalismo garantista (normativo) de L. Ferrajoli que sustenta a natureza dúplice dos direitos fundamentais como conteúdo de regras deônticas (limites e vínculos aos poderes públicos) e forma de princípios regulativos (expectativas positivas e negativas), que não dialogam com a moral, já que esta, com base em H. Hart[2], é o “ponto de vista externo” ao Direito, sendo, portanto, objetos de subsunção do fato à norma.

Nesse âmbito, considerando a proposta redefinitória quanto à natureza jurídica dos direitos fundamentais sob o viés garantista, a diferença entre as normas constitucionais “não é estrutural, mas de estilo”, pois são faces da mesma moeda (implícitas umas nas outras), já que por detrás de cada regra deôntica (ex.: não matar) existe um princípio regulativo (ex.: direito à vida) e, inversamente, os princípios (ex.: igualdade), uma vez violados, aparecem como regras (ex.: proibição de discriminação).

Disso resulta que toda aplicação dos direitos fundamentais pressupõe uma argumentação anterior que se orienta pelos “casos abertos” (M. Atienza[3]) dos princípios (função normogenética – princípios servem para argumentar), porém se finalizam como regras na base do “tudo ou nada” (R. Dworkin[4]). Especificamente, os direitos fundamentais porque apresentam a forma de princípios regulativos requerem uma argumentação, mas porque o conteúdo também é de regra serão objetos, em última análise, da técnica da subsunção, razão pela qual a identificação da ponderação como único tipo de racionalidade, em oposição à subsunção que caberia apenas às regras, enfraquece a normatividade constitucional e favorece a discricionariedade legislativa e judicial.

Ressalte-se que L. Ferrajoli não desconsidera o papel da ponderação, a crítica reside na excessiva ampliação da técnica às situações inoperantes, como no caso em que o “juiz principialista” passa a ponderar aquilo que não se pondera (lei), submetendo-se aos precedentes (direito vivente) e confundindo fato e norma.

Isso porque, segundo o Autor, na sua recente obra “A democracia através dos direitos”[5], a ponderação judicial somente é admitida sobre os fatos (sempre irreptíveis) e não sobre as normas (sempre iguais), naquilo que descreve como “ponderação equitativa”, enquanto equidade na compreensão dos fatos e não fonte de produção normativa.

Este tipo de ponderação pertence à chamada “dimensão equitativa da jurisdição”, na qual a operação interpretativa (sistemática) do juiz, em cumprimento à lei (direito vigente), não valora a norma a que está sujeito (verdade jurídica), mas pondera o fato a que foi chamado a julgar (verdade factual).

Nesse âmbito, se a norma é estática, o sopesamento do magistrado, por exemplo, no direito penal, não incide sobre as agravantes e ou atenuantes em abstrato, mas se dá sobre a singularidade fática e suas características que justificam a aplicação ou não dessas circunstâncias. Na solução do conflito no caso concreto, ao contrário de Alexy, os juízes não “extraem das regras os princípios a serem balanceados”, mas ponderam as diversas singularidades fáticas que determinam a prevalência ou não daquela regra.

De resto, a própria referência principialista na solução dos chamados “casos difíceis” se dá exatamente na concretude e na diferença de tais situações e, por isso, a variedade e interpretações produzidas pela casuística jurisprudencial.  Logo, somente no âmbito das soluções jurídicas em concreto, em especial na singularidade dos casos submetidos a juiz, é que o Autor admite no seu modelo teórico, o método da ponderação como meio instrumental de solução de supostas colisões entre direitos fundamentais.

Além disso, enquanto projeto político à crise substancial e formal da democracia, o garantismo, sem cair na falácia naturalista de D. Hume, recupera os postulados da completude deôntica, legalidade estrita, acionabilidade, jurisdicionalidade e reconhece as aporias do direito ilegítimo pelo vício da antinomia e da lacuna.

A supressão do vício da lacuna está condicionada à efetivação das garantias primárias positivas pela esfera legitimidade democraticamente (“instituições de governo”) e não pela “era da ponderação judicial sobre as normas (inversão da hierarquia das fontes) que, sob as vestes do ativismo judicial a cargo da valoração subjetiva e criativa dos juízes, é causadora de câncer nos elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito, correspondentes a separação dos poderes e sujeição de todos somente a lei.


Notas e Referências:

[1] DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da constituição. 2. ed. São Paulo: Landy Editora, 2010.

[2] HART. H. L. A. O conceito de direito. 3. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001

[3] ATIENZA, Manuel. O Direito como Argumentação. In: Argumentação e Estado Constitucional”.  Coordenação de Moreira, Eduardo Ribeiro. São Paulo: Icone Editora, 2012.

[4] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

[5] FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. Tradução de Alexandrer Araujo de Souza e outros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. 

ATIENZA, Manuel. O Direito como Argumentação. In: Argumentação e Estado Constitucional”.  Coordenação de Moreira, Eduardo Ribeiro. São Paulo: Icone Editora, 2012.

DUARTE, Écio Oto Ramos. POZZOLO, Susanna. Neoconstitucionalismo e positivismo jurídico: as faces da teoria do direito em tempos de interpretação moral da constituição. 2. ed. São Paulo: Landy Editora, 2010.

DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1997.

FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. Tradução de Alexandrer Araujo de Souza e outros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

HART. H. L. A. O conceito de direito. 3. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.


Jéssica Gonçalves é Graduada em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL-SC. Formada pela Escola da Magistratura do Estado de Santa Catarina (módulo I e módulo II). Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC-SC. Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Regional de Blumenau – FURB-SC. Pós-Graduada em Direito Aplicado pela Universidade Regional de Blumenau – FURB-SC. Mestranda do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC-SC.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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