Feminismos sem edições - O papel da mulher nos cenários jurídicos (Parte 1) - Por Fernanda Martins

10/09/2016

Por Fernanda Martins – 10/09/2016

Leia Também a Parte 2

Foi assim que me vi caminhando com extrema rapidez por um gramado. Imediatamente, um vulto de homem ergueu-se para interceptar-me. Nem percebi, a princípio, que os gestos daquela pessoa de aparência curiosa, de fraque e camisa engomada, eram a mim dirigidos. Seu rosto revelava horror e indignação. O instinto, mais que a razão, veio em meu auxílio: ele era um Bedel; eu era uma mulher. Aqui era o gramado; a trilha era lá. Somente os Fellows e os Estudantes têm permissão de estar aqui; meu lugar é no cascalho.[1]

Virginia Woolf

A apresentação dos cenários que ora se propõe a construir são pano de fundo para uma problemática pouco desconhecida às mulheres. Enfrentar mecanismos de segregação e de apartação no e do diálogo é uma prática cotidiana para aquelas que visam resistir à lógica de um sistema estruturalmente fundado na desigualdade de gênero. A discussão que se teoriza parte da prática na elaboração própria de uma práxis de luta feminista diária, estabelecida, portanto, a partir de bases teóricas aliadas às mais diversas performances materializadas na realidade com o objetivo específico de trazer provocações sobre o papel das mulheres na esfera acadêmica do Direito.

Virginia Woolf em “Um teto todo seu” é convocada a escrever sobre “mulher e ficção” e inaugura a apresentação de seu texto expondo as angústias possíveis e inerentes de escrever de si, a partir de si, relacionadas à escrita fundamentalmente de mulher. Diz a escritora que ao ser chamada para pensar e depositar seu pensamento em folhas de papel sobre o assunto em questão, deparou-se com uma dúvida latente, a qual se estabelecia na dificuldade em reconhecer de qual relação entre “mulher e ficção” se buscava falar quando se ofertou o convite à temática.  Indagou-se, sentada à beira do rio, se

O título "As mulheres e a ficção" poderia significar (...) mulher e como ela é; ou poderia significar a mulher e a ficção que ela escreve; ou poderia significar a mulher e a ficção escrita sobre ela; ou talvez quisesse dizer que, de algum modo, todos os três estão inevitavelmente associados (...).[2]

A dúvida que Virginia Woolf apresenta é uma questão que perpassa minha mais íntima reflexão quando sou chamada para falar sobre qualquer temática ou para escrever sobre algum assunto. Falar ou escrever considerando meu local sempre presente de mulher em contínua (des)construção exige busca permanente pelo questionamento sobre o papel assumido e atribuído a mim quando coloco-me a pensar qualquer produção intelectual. Se nos mais variados assuntos essa questão insurge de forma relevante, quando convidada a escrever especificamente sobre “mulheres”, vejo essa angústia potencializada ao mais exigente cuidado. Assim, a partir dessa dúvida implicada diuturnamente, proponho relacionar-me às “ficções” estabelecidas na inevitável ligação que existe entre as três modalidades expostas pela escritora inglesa.

1. Relatar a si mesmo e o “eu” como “teórico social”

Os cenários “fictícios”, que serão apresentados, são escolhidos, dessa forma, a partir de situações pessoais, haja vista ter-se como proposta na presente fala romper com o regime de verdades inerente ao discurso masculino colocado na toada das escritas e das reflexões mais comuns nos espaços jurídicos. Parte-se, portanto, do feminismo[3] como orquestra para ressoar a trilha sonora das reflexões sobre “as peças” que aqui se montam diante do cenário opressor da violência de gênero, que ora se busca denunciar.

A importância de construir uma escrita feminista a partir de mulheres é apresentada pela historiadora Margareth Rago quando evidencia que feminismo é um movimento que tem transformado

profundamente a cultura e a vida pública, no Brasil, a partir de lutas que se dirigem para frentes muito diversificadas, no âmbito da política, no da religião e especialmente no do pensamento. Lutar contra a violência que sofrem as mulheres significa, a meu ver, não apenas enfrentar situações palpáveis como o estupro, a violência doméstica, a inferiorização, a humilhação e a exclusão física das mulheres, mas enfrentá-las também no plano simbólico e do imaginário social, transformando as formas misóginas e sexistas de pensar que hierarquizam o mundo e produzem regimes de verdade autoritários e excludentes. Significa dissolver as narrativas históricas masculinas, universalistas e binárias (…).[4]

Busco, assim, partir da minha subjetividade ao pensar as escritas, sempre no sentido de dissolver “as narrativas históricas masculinas, universalistas e binárias”. É a partir da reflexão de como me relaciono com o mundo e com as pessoas, que crio as interlocuções entre teoria e prática. Particularmente, encontro certa dificuldade de falar sobre feminismos sem ser através de “saberes localizados”.[5] Trata-se da opção em relatar a mim mesma a partir de um “eu”, no qual me sinto segura para relatar sobre, um “eu” como “teórico social” como “alternativa ao relativismo”, uma construção, portanto, “de saberes parciais, localizáveis, críticos, apoiados na possibilidade de redes de conexão, chamadas de solidariedade em política e de conversas compartilhadas em epistemologia.”[6]

Como mulher que ocupa um espaço de privilégios, sinto-me certa de que as questões que envolvem meu local de fala como feminista não é o mesmo que o de outras mulheres, portanto, opto por falar a partir de mim, mas sempre pensando em como é possível estar relacionada com as reivindicações de outras tantas. Até porque falar do “eu”, não é apartar condições sociais e históricas, mas sim considerar que tal contexto constitui as condições gerais para o surgimento do “eu”.[7] E esse “eu” não pode ser desvinculado do coletivo e “a razão disso é que o ‘eu’ não tem história própria que não seja também história de uma relação – ou conjunto de relações – para um conjunto de normas”.[8]

É, portanto, através da relação estabelecida e identificada nas ficções de Woolf e no “eu” como possível “teórico social” de Butler que apresento narrativas formuladas na construção diária de reconhecimento e enfrentamento das lógicas perversas do patriarcado.

2. Cenário 01

Através de sua mais branda imaginação, pense em um recinto plural e supostamente democrático de uma Universidade, cujo público é predominantemente composto por estudantes do curso de Direito. Agora pense que, nesse local, um tema estava sendo debatido: “Constituição e populismo punitivo” – discussão, portanto, propícia para a conjuntura atual de instabilidade política e de violações de direitos na qual se encontra a realidade brasileira em tempos (não tão) recentes.

Imagine que a discussão em pauta recaía, propriamente, nos sentidos discursivos e nos significados que estão implícitos e explícitos quando da opção por certas palavras e por determinados termos a ser utilizados nesse tão clamado “combate à corrupção” que se percebe pelo país.

Nesse cenário, alguém, de forma pontual, faz uma colocação: “são tempos [esses nossos] em que se exige a defesa da moralidade pública”. Talvez, em outros momentos de tempo e de espaço, a alusão à “moralidade pública” poderia passar despercebida como mecanismo de defesa de uma ordem colocada sob valores quaisquer. Contudo, por remeter à leitura imediata das condições políticas, sociais e econômicas que estão vinculadas ao seu uso, a expressão não passou batido, mas alavancou, em réplica, um pensamento específico: a violência de gênero.

Materializando tal reflexão, foi apontado que essa “moralidade pública” permanece a aprisionar mulheres, além de ainda justificar as mais longas violências de gênero que imperam no vocabulário misógino – o qual, por sua vez, sustenta a lógica do patriarcado. A expressão, por tanto já ter sido e continuar sendo utilizada para legitimar abusos nas mais múltiplas esferas, tem significado que, em aparência, não precisaria mais ser discutido: inclusive soa à escuta como uma história anterior, na qual a mulher que figurava como vítima de estupro via o julgamento passar pelo seu comportamento pessoal – em acordo ou não com a “moralidade pública” – e não pela conduta do agressor. Mas esses são tempos passados, poderíamos pensar.

Após constatado – quem sabe – o óbvio, o que se ouviu como tréplica foi que a “moralidade pública” ora defendida representava a integridade política do Estado brasileiro, e, portanto, em nada nutria relação com esse tal de feminismo. Em face disso, enfim, uma dúvida fundamental rompeu do diálogo: será que o cenário político e o discurso de defesa da sociedade que perpassa a moralidade pública e afronta às garantias mínimas do direito brasileiro realmente não tem relação com a força imperativa do machismo que nos assola?

Ao pensar as questões de gênero[9] e seus significados para o direito, compreende-se que este lida com demandas judiciais e sociais, que por coincidência, são demandas individuais ou coletivas pautadas na vida e no cotidiano de pessoas. Essa coincidência (não tão) irônica nos diz muito sobre o olhar do judiciário e dos juristas, sobre suas lides e sobre a complexa disjunção que existe entre norma, aplicação e sociedade[10], entre as quais encontra-se a realidade das mulheres.

Responder a demandas judiciais e políticas, deveria ser uma relação bastante conexa entre direito normativo e movimentos sociais que se desenvolvem numa realidade complexa. Portanto, pensar a relação do direito com as questões de gênero, mais especificamente feministas, deveria ser também um ato de reflexão sobre o olhar patriarcal[11], no qual se utilizaria das normas para aplicá-las como resposta ao processo de conquista de direitos formais e materiais de igualdade[12].

O papel dos atores do poder judiciário e de seus representantes, aqui considerados como todos aqueles que atuam e participam da lógica do sistema, é recorrentemente questionado quanto às reflexões que atravessam o diálogo sobre o direito das mulheres e sua atuação nesse meio, o qual perpetua a fórmula do pensamento machista[13]. No entanto, supostamente, a academia que deveria exercer uma atuação vanguardista diante dos mármores concretáveis realizados pelo poder de julgar e pela esfera política sempre pautada na construção do discurso opressivo, compactua com a reprodução da desigualdade.

Desarticular, portanto, a discussão sobre a política e o direito relacionados aos debates feministas num cenário constituído – supostamente - pela pluralidade do espaço universitário, é assumir que há uma suposta disjunção entre as temáticas. É atestar que a lógica colocada na separação dos espaços públicos e privados se reafirma inclusive quando a mulher ocupa espaço de fala aparentemente comum entre gêneros.

Joan Scott traz como ponto central para articular mudanças na forma de construir novas perspectivas para velhas questões, aqui traçadas a partir do distanciamento entre a mulher e a política, algumas questões necessárias. A historiadora questiona pontualmente “Qual é a relação entre as leis sobre as mulheres e o poder do Estado?” como indagação urgente para

tratarmos da oposição entre masculino e feminino como sendo mais problemática do que conhecida, como alguma coisa que é definida e constantemente construída num contexto concreto, temos então que perguntar não só o que é que está em jogo nas proclamações ou nos debates que invocam o gênero para justificar ou explicar suas posições, mas também como percepções implícitas de gênero são invocadas ou reativadas. [14]

Quando se coloca em evidente apartação o movimento de reivindicação da liberdade das mulheres, de reconhecimento dos seus direitos já assegurados, do respeito à diferença e do respeito à singularidade, do plano do político, supõe-se que se tratam de movimentos de resistências distintos.

A constituição dos espaços se formula, dessa forma, a partir dos papeis socialmente impostos. A colocação proferida na Universidade sobre a “falta de afinidade” entre o sentido discursivo de “moralidade pública” e as reivindicações feministas de libertação, demonstra que ainda não há “permissão” para que sejam relacionados diálogos políticos e acadêmicos com os feminismos, pois estruturalmente são, para o patriarcado, constituídos desde sua base em esferas desconexas e incisivamente designados para serem naturalmente[15] desvinculados.

Saffioti, ao abordar a preocupação que perpassa a construção dos papeis, evidencia que

a identidade social da mulher, assim como a do homem, é construída através de distintos papéis (sic), que a sociedade espera ver cumpridos pelas diferentes categorias de sexo. A sociedade delimita com bastante precisão, os campos em que pode operar a mulher, da mesma forma que escolhe os terrenos em que pode atuar o homem.[16]

Compreender que uma discussão séria e comprometida com o direito e com a política se estabelece sim no diálogo com as questões das mulheres, e que a recusa de enlace sobre as temáticas configura a autorização de práticas autoritárias do discurso misógino, é reconhecer uma fuga da castração[17] que se opera no homem através desse envolvimento temático.

O homem que ocupa o espaço público e se concretiza como homem a partir da ideologia patriarcal como regulador da ordem pública se vê castrado de seu domínio quando percebe ele ocupado por mulheres. É afronta direta ao poder do macho, como afirma Saffioti.

É de extrema relevância reconhecer que os trilhos da democracia que se busca passam necessariamente pelos fortes passos da consciência dos feminismos. É ainda mais imprescindível entender, de uma vez por todas, que para rachar a ordem instituída na violência e na opressão, ou para furar a lógica antidemocrática dos discursos de ódio, também é necessário partir os discursos misóginos. Sem isso, continuaremos fadadas àquilo que alguns insistem em chamar de “moralidade pública”, sempre constituída sob o olhar do patriarcado, sem que a partida no sentido da democracia seja realmente dada.

Envolver, portanto, a política e o direito com os feminismos é caminho certo de enfrentamento às “ficções” que se criam quando se fala sobre a realidade em que a mulher vive.


Notas e Referências:

[1] WOOLF, Virginia. Um teto todo meu. São Paulo: Círculo do livro. s.d.

[2] WOOLF, Virginia. Um teto todo meu. São Paulo: Círculo do livro. s.d. p. 7

[3] Feminismo é “uma teoria prática que surge das condições concretas das relações humanas, enquanto essas relações são baseadas em relações de linguagem que são relações de poder. Um poder constituído com base no que se pode chamar de paradigma masculinista. O feminismo é uma crítica concreta da sociedade que tem base em uma ação teórica inicial e que é constitutiva da prática enquanto crítica da dominação masculina. Feminista é alguém que pensa criticamente, enquanto essa crítica se dá na direção de uma releitura do mundo que tira os véus desse mesmo mundo organizado pela dominação masculina. Mas a dominação masculina não é apenas atitude dos homens, embora seja fácil para os homens, sujeitos concretos que autorizam a si mesmos como agentes da dominação masculina. A dominação masculina é estrutura de poder ao nível dos dispositivos do poder. Engana-se quem pensa que o “machismo”, nome vulgar da dominação masculina, será desmanchado apenas por meio de uma dominação feminina que seria, aliás, um erro capaz de destruir o feminismo.” TIBURI, Marcia. O que é feminismo? Disponível em http://emporiododireito.com.br/o-que-e-feminismo-por-marcia-tiburi/, 2015. Acesso em 04 nov 2015

[4] RAGO, Margareth. O feminismo acolhe Foucault. Disponível em https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2015/09/01/o-feminismo-acolhe-foucault-margareth-rago/

[5] HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: cadernos pagu, n. 5, 1995. p. 07-41.

[6] HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. In: cadernos pagu, n. 5, 1995.p. 23

[7] BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. p. 17

[8] BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.p. 18

[9] BUTLER, Judith. Repensar lavulnerabilidad y la Resistencia. Conferencia enlaUniversidad de Alcalá, XV Simposio de laAsociación Internacional de Filósofas, 2014.

[10] ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. In: Revista Sequência, nº 50, p. 71-102, jul. 2005.

[11] PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

[12] MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014.

[13] MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológica-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

[14] SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, vol. 16, n. 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990. p. 28

[15] SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. p 11

[16] SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. p. 8

[17] SAFFIOTI, Heleieth I.B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987. p 25


Fernanda Martins. Fernanda Martins é Mestre em Teoria, Filosofia e História do Direito pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Professora substituta na Universidade Federal de Santa Catarina e professora na Universidade do Vale do Itajaí. E-mail: fernanda.ma@gmail.com .


Imagem Ilustrativa do Post: Woman // Foto de: Seabamirum // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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