Por Natasha Karenina - 28/01/2016
É com imenso prazer e algum atraso que inauguro minha participação na coluna Feminismo(s) no Empório do Direito. Dentro outros motivos, a demora tem se dado pela dificuldade de escolher um tema que consiga ao mesmo tempo contemplar demanda do movimento de mulheres, reivindicações de direitos e o meu lugar de fala. Enquanto nascida em um dos Estados mais pobres da Federação, não me sentiria à vontade para iniciar com um tema diverso do Piauí.
Neste Estado são constantes as agressões aos direitos humanos mascaradas sob o pretexto do desenvolvimento, melhoria da qualidade de vida e aumento do número de empregos. Violações a direitos fundamentais, a direitos de comunidades tradicionais, ao direito a um meio ambiente saudável e equilibrado têm sido trazidas por projetos de grandes empreendimentos que não revelam os verdadeiros impactos negativos socioculturais e ambientais que causam.
Os prejuízos causados pelo processo de instalação dos grandes empreendimentos são notórios, mas justificáveis perante a promessa do desenvolvimento. No entanto, desenvolvimento é um termo plurissignificativo que pode ser apropriado por diferentes grupos que visam a diversos fins com o uso do termo para mascarar práticas violadoras de direitos humanos e direito ambiental.
Essa inteligência dialoga com as obras do Programa Lagoas do Norte, produto de políticas neodesenvolvimentistas implementadas com verbas do Governo Federal e do Banco Mundial. Este Programa que tem como função declarada desenvolver um conjunto de ações integradas de cunho social, econômico, habitacional, de infraestrutura e de requalificação ambiental, com vistas ao desenvolvimento sustentável e a melhoria das condições de vida da população residente. Neste sentido, medidas sanitárias, alterações na malha viária municipal e deslocamentos compulsórios podem ser percebidos no último ano como manifestações deste intento.
Elenca-se, em contrapartida, a função não-declarada do programa de reestruturar o espaço urbano da região Norte da cidade de Teresina, que margeia o Rio Parnaíba, para valorizá-la e dificultar a permanência dos antigos moradores de residir, comercializar e promover suas práticas econômicas, sociais e religiosas. As medidas elencadas na função anterior coadunam com este intento, especialmente os deslocamentos compulsórios e consequentes reassentamentos involuntários: uma considerável parcela da população das adjacências têm sido realocada para regiões periféricas da cidade, o que garante a melhoria infraestrutural mas seleciona as pessoas que podem usufruí-las.
Parte dos atingidos pelo Programa Lagoas do Norte, como os moradores e as moradoras da Avenida Boa Esperança, tem se insurgido contra a sua função não-declarada e a forma como a própria função declarada tem sido implementada, especialmente pela ausência de consulta da Prefeitura Municipal à população.
Nesse contexto de violação aos direitos humanos em virtude de uma política neodesenvolvimentista, cabe destacar os grupos mais vulneráveis. Ainda que, em virtude da hegemonia capitalista, essa vulnerabilidade não se restringe à categoria econômica, passando por organizações políticas de raça, orientação sexual, gênero, etnia, uma vez que este modo de produção se apropria das opressões – ainda que não tenham o condão econômico – para o agravamento da exploração e da dominação contra setores específicos do proletariado – e nisto ela consiste num recorte de raça, gênero ou identidade de gênero no interior dos expedientes de exploração e dominação.
Aqui, destaca-se o protagonismo das mulheres na resistência contra o deslocamento compulsório na Avenida Boa Esperança, Teresina-PI, haja vista constituir-se numa categoria que é afetada de modo diferenciado pelo Projeto Lagoas do Norte. Leva-se em conta o fato de que muitas dessas mulheres são provedoras do lar, lavadeiras, agricultoras, faxineiras, funcionárias públicas ou outras profissões. Além das atribuições como trabalhadoras, essas mulheres acumulam também os tradicionais papéis de mãe/esposa/doméstica do próprio lar, somando-se, no caso em tela, as tarefas políticas assumidas no processo de resistência o que lhes exige uma maior interação com a esfera pública.
No contexto do processo de resistência da comunidade da Avenida Boa Esperança, observa-se o protagonismo das mulheres na busca por mecanismos de defesa frente a possibilidade de deslocamento compulsório como, por exemplo, a parceria com o Ministério Público do Estado do Piauí, a Defensoria Pública do Estado do Piauí e a articulação de Assessorias Jurídicas Universitárias Populares e Advogados Populares.
Nos espaços de reunião com toda a comunidade, nas oficinas temáticas, nos atos e nas reuniões com o Ministério Público do Estado do Piauí, boa parte das participantes são mulheres, especialmente idosas. O protagonismo destas mulheres não se percebe apenas por sua presença maciça nos espaços de discussão e deliberação do movimento pela permanência das famílias em suas casas: as tarefas de direção e de formulação são de responsabilidade prioritária das mulheres. As articulações com as entidades do Poder Público e com os movimentos sociais, as formulações de calendários de lutas, atos e manifestações e a elaboração de palavras de ordem, faixas e cartazes são exemplos da atuação das mulheres da Av. Boa Esperança. Mesmo nos momentos de atos e manifestações, monopolizados classicamente por homens, as mulheres conseguem romper a invisibilidade estrutural e verbalizar suas reivindicações.
Destaca-se que a ocupação da Av. Boa Esperança e das adjacências remonta há 50 anos de forma que muitos homens e mulheres, hoje patriarcas e matriarcas, criaram seus filhos, filhas, netos e netas na mesma casa. O ritmo, inclusive, tradicional destas famílias faz com que duas ou três gerações continuem morando na mesma casa, o que reforça em todos e em todas o sentimento de pertença na casa, no bairro e na região. Apesar dos processos negativos advindos do temor da desterritorialização e do adoecimento precoce da população mais antiga, as mulheres têm conseguido romper com os processos estruturais de silenciamento e invisibilidade e pautar as demandas de direito à cidade, à moradia e à resistência na Av. Boa Esperança.
Nesse sentido, é provável que a articulação política das mulheres, contra os deslocamentos compulsórios frente ao risco de ampliação das vulnerabilidades vividas, vislumbre a construção de uma identidade de resistência, negando a identidade da mulher conforme a cultura patriarcal, onde esta é excluída dos espaços políticos e do protagonismo das lutas contra a violação dos direitos humanos.
Destaca-se que a luta das mulheres contra o deslocamento compulsório tem sido essencial para a resistência da comunidade inteira perante as ofensivas da Prefeitura Municipal de Teresina em manter os deslocamentos compulsórios e os reassentamentos involuntários como pressupostos para a realização da 2ª fase do Programa Lagoas do Norte. O protagonismo feminino nas tarefas de direção e formulação do movimento tem sido primordiais para os êxitos alcançados, especialmente a visibilidade que a luta dos moradores e das moradoras têm na cidade e a própria demora na realização da 2ª fase.
Dentre as perspectivas para a luta destas mulheres, podem-se elencar, dentre outras,: o fortalecimento constante de todos moradores e todas as moradoras para que todos e todas estejam plenamente ciente de seus direitos e possam reivindicá-los sem o intermédio de terceiros; a continuidade da articulação com Ministério Público do Estado do Piauí, a Defensoria Pública do Estado do Piauí e a articulação de Assessorias Jurídicas Universitárias Populares e Advogados Populares para que a luta social esteja alinhada à institucionalidade; e a articulação com outros movimentos sociais da cidade de Teresina que também pleiteiem os direitos à cidade e à moradia.
. Natasha Karenina é graduada em Direito pela Universidade Federal do Piauí. Mestre em Direito e Relações Internacionais pela UFSC na área de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Professora de graduação em Direito. . .
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