Por Naiara Czarnobai Augusto - 02/11/2015
A revolução da década de sessenta, conhecida pela queima de sutiãs, continua sendo silenciosamente sufocada pela sociedade. Engatinhamos na luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres apesar de a Constituição Federal do Brasil nos assegurar isonomia [art. 5°, caput]. Ousamos e desafiamos a entrada da mulher no mercado de trabalho, e em 2015 ainda vemos artistas de Hollywood aproveitando o reconhecimento de seu talento para gritar ao mundo que estão cansadas de serem remuneradas em razão do gênero aposto em suas certidões de nascimento.
É fato que as mulheres já são a principal fonte de renda em mais de 50% das famílias brasileiras, e ainda assim o setor privado utiliza referenciais discriminatórios no quesito remuneração. Na liderança de renomadas organizações não é diferente, pois mentes femininas representam um mínimo percentual de colocação, o que nos faz perceber que ainda há uma longa jornada para que as mulheres tenham a oportunidade de comandar instituições. E quando acontece de se atingir o ápice da cadeia trabalhista, mulheres ainda se veem obrigadas a optar por não usufruir completamente da sua licença maternidade em razão dos compromissos profissionais, ou ainda são submetidas a tabelas de controle gestacional por seus empregadores a fim de garantir estabilidade de emprego.
No entanto, há uma conta que não encontra resultado certo. As mulheres ocupam significativamente o ambiente universitário, persistem na qualificação acadêmica, e cada vez são aprovadas em número maior para o funcionalismo público. Ainda assim, apesar de todo o esforço para se ter os mesmos direitos e oportunidades, as oportunidades são reduzidas, sobra discriminação, excede o desrespeito e foge o bom senso daqueles que insistem em distinguir as pessoas por seu gênero.
A revolta com a questão do exame nacional do ensino médio que apresentou texto de Simone Beavoir, somada à proposta de redação sobre violência contra a mulher, revela quão evidente é a necessidade de implantarmos no sistema educacional uma cultura de discussão de temas complexos e desafiadores como o feminismo e a desvalorização da mulher na sociedade, objetivando que as futuras gerações de adultos sejam mais coerentes e abertos à reflexão.
A manifestação popular que se viu nas redes sociais desde então é plenamente válida, assim como em todos os sentidos pelos quais ela se dissipa, desde que a causa seja digna de apreciação e de consideração no que se refere à evolução do pensamento retrógrado de que mulheres são limitadas em termos de capacidade e desenvolvimento.
A queima de sutiãs, que de fato nunca aconteceu, já mostrava com ousadia que as mulheres desejavam se libertar dos adjetivos que sempre lhe qualificaram perante a sociedade, e que excluíam aquelas que não se enquadravam nos padrões considerados “adequados” em termos de beleza, conceito ou estima perante o seu meio social.
Com razões um tanto diversificadas, a mídia ainda explora, com sensacionalismo e depreciação, manifestações que acontecem mundo a fora, nas quais feministas expõem seus corpos nus como forma de chamar a atenção das pessoas para as causas pelas quais lutam em nome de todas nós. A liberdade de imprensa e a obrigação de informar esbarram na linha tênue da manifestação do pensamento e da disposição do próprio físico. Manifestações como estas, apesar das suas liberalidades, devem ser apreciadas pelos interesses pessoais que tutelam, bem como pela forma difusa que reflete em toda a população.
Nesse contexto, a menina que luta para competir em uma modalidade esportiva dominada pelos garotos tem o mesmo objetivo que a funcionária de uma empresa que faz verdadeiros malabarismos para ser reconhecida pelo seu desempenho e por sua qualificação profissional, ao invés de ser promovida pela sua aparência física.
A mesma proteção que a atriz hollywoodiana merece por ser remunerada pelo trabalho que realizou com o mesmo empenho e dedicação que seu colega masculino, e que possui representação menor em um determinado filme, deve também ser garantida à mãe de família que não tem voz para administrar a sua liberdade sexual com o parceiro que abusa de bebidas alcoólicas e se torna violento.
Em todas as hipóteses de violação dos direitos das mulheres, a origem é a mesma!
É certo que no último século evoluímos consideravelmente no que se refere à proteção da mulher, que gradativamente deixou de ser um título de propriedade ao homem que lhe possuía para ser sujeita digna de respeito. Num Brasil colonial era relativamente comum que meninas, filhas de trabalhadores, filhas de gente simples, ou simplesmente filhas de desconhecidos, fossem obrigadas a manter com ‘senhores’ uma relação de subordinação que hoje podemos comparar à escravidão sexual. Seus corpos não lhe pertenciam, não tinham autonomia para negar adentrarem forçosamente em sua intimidade, devastar sua integridade física, emocional e psicológica. Hoje elas podem dizer não, mas muitas vezes não são ouvidas.
Atualmente pesquisas estatísticas apontam que a cada 5 minutos uma mulher seja abusada sexualmente em nosso país. Vale registrar que toda forma de toque ou relação não consentida é abuso. Não se trata de charme de mulher ‘que se faz de’ difícil, como alguns ousam classificar, o assunto deve ser tratado como legalmente é definido – ABUSO SEXUAL e ESTUPRO.
Mesmo com a criação de delegacias especializadas, a mulher ainda encontra bastante resistência para levar ao conhecimento das autoridades a sua situação de violência ou risco de sofrê-la, seja por ameaça dos próprios abusadores, ou pelo receio de serem reconhecidas em seu núcleo de convivência.
Há que se imaginar que podem ocorrer falhas no levantamento e no tratamento de dados oficiais, que não consideram as mulheres que ocultam seu sofrimento e seus abusos, o que nos permite concluir que a realidade é muito mais chocante do que parece ser, e é vivida por milhares de meninas e mulheres.
A triste evidencia nos mostra ainda que a invasão da intimidade e da privacidade feminina é considerada relativamente comum para alguns homens que utilizam seus aparelhos celulares para registrar vídeos de relações sexuais, para fotografar sem autorização, para submeter seu desejo desmedido a mulheres que simplesmente querem usar meios de transporte sem qualquer forma de abuso.
Essa cultura do reconhecimento da mulher apenas pelas curvas de seus corpos, pela sensualidade que demonstra ao se vestir ou se comportar, é intensificada por publicidade de bebidas alcoólicas, onde são criadas interpretações com [in]disfarçado entretenimento para mulheres bonitas e sensuais, ensejando interpretações de domínio masculino, submissão sexual e sentido pejorativo de limitação de liberdade da mulher no ambiente de um bar, onde são maquiadas a sua consideração como objeto de desejo que deve ser facilitado pelo teor etílico da diversão.
Apesar do discurso de que “aquela roupa”, ou “o tipo de comportamento”, constituem apelo ao estupro, é inegável que nada justifica o reconhecimento da exclusão da liberdade sexual dessas mulheres, inclusive porque a pedofilia bem demonstra que não são apenas os corpos esguios ou curvilíneos que despertam desejos e ereções, mas também a aparência exterior de meninas delicadas e cuja maturação sexual sequer iniciou, como aconteceu recentemente com uma participante de um programa de televisão que explora talentos mirins e que foi vítima de comentários abusivos em redes sociais.
Por todas essas circunstâncias, o feminismo ainda é necessário. Assim como foi a luta contra a exclusão e o preconceito racial, espera-se que cheguemos em um momento de evolução onde as pessoas reconhecerão que não existe essa distinção entre homens e mulheres, e principalmente entre seus direitos profissionais e sexuais.
Até que vivenciemos essa idealização, é extremamente importante que já nos primeiros anos de vida seja despertado o senso de consideração e respeito pelo próximo, independentemente da condição que nos distingue em essência, que sejam oferecidas as mesmas oportunidades de desenvolvimento profissional e remuneração tanto para homens quanto para mulheres, que sejam admitidas as liberdades sexual e de pensamento das mulheres que possuem o direito de dispor sobre o próprio corpo e manifestar suas ideias, e não há outro caminho se não for pela educação e pela discussão aberta e saudável.
Enquanto isso não acontece, despimo-nos do preconceito e usemos a camisa do feminismo, com a ousadia que o tema merece. Esta defesa é mais do que um modismo social, é um alvo a ser perseguido para que em breve possamos ter uma sociedade verdadeiramente justa e solidária, onde as mulheres sejam consideradas em sua total integridade, simplesmente por serem humanas.
Imagem Ilustrativa do Post: Real Women Don't Use Apostrophes// Foto de: David Goehring // Com alterações
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