Feiúras desapercebidas: Considerações da Criminologia Crítica sobre liberdade condicional

18/05/2015

Por Maíra Marchi - 18/05/2015

Com minha dor não se brinca / Já disse que não / Devagar, devagar com o andor / Teu santo é de barro e a fonte secou / Já não tens tanta verdade pra dizer / Nem tão pouco mais maldades pra fazer / E se a dor é de saudade / E a saudade é de matar / Em meu peito a novidade / Vai enfim me libertar

(Samba de uma nota só. Rodrigo Maranhão)

Neste espaço já deve ter ficado evidente o quanto gosto de cinema[1]. Além de um gosto “pessoal”, tenho cada vez mais claro que é um belo recurso de diálogo com a Psicanálise, e, além disto, que talvez seja o único veículo pelo qual alguns conseguem contactar determinadas questões. Mantendo a dor longe dos olhos e dos ouvidos, e com a ilusão de que a ficção e a realidade são diferentes[2]: talvez seja por este meio que alguns operadores do Direito mantêm-se longe do próprio coração.

Já é deveras conhecida a idéia de que há operadores do Direito com corações desabitados de alma. São aqueles amantes da “lei e ordem”. Ah, aqui uma observação precisa ser feita: com “alma” não se está referindo apenas em termos de afetos, mas também à cognição (sujeitos que não portam deficiências mentais) e contato com a realidade (sujeitos que não portam transtornos mentais de espectro psicótico ou perverso).

Hoje, no entanto, gostaria de falar sobre a hipocrisia nossa de cada dia. Ou, mais especificamente, daqueles que se dizem fiéis ao princípios da Criminologia Crítica[3], etc., mas que possuem suas reservas. Que acrescentam um “mas” quando questionados sobre a aplicabilidade destas concepções a, por exemplo, situações de crimes sexuais contra crianças.

Não é ao acaso, talvez, que se encontra uma carência de produções acadêmicas a respeito. Na plataforma Capes, utilizando os descritores “criminologia crítica” e “criança”, para pesquisa em todos os tipos de publicação, sem delimitação de idioma e a qualquer data, encontra-se 01 trabalho (Bitencourt, 2007). Já inserindo os descritores “criminologia crítica” e “infância”, resulta a busca em 44 trabalhos. Entretanto, nenhum deles pondo em relação esta área de conhecimento e esta temática. Nas plataformas Lilacs e Scielo, há nenhum trabalho.

Há alguns dias alguém, indagado sobre a possibilidade de articular suas discussões sobre a tendência a se judicializar conflitos à violência sexual contra crianças, alegou “não! Acho que aí é violência, mesmo!”. Bom...então quer dizer que sua discussão sobre judicialização de conflitos não era aplicada à violência? Ou será que há violências mais ou menos violentas? E, se sim, tal gradação basear-se-ia em que parâmetro?

Possíveis respostas a estes questionamentos pareceram-me ser trazidas pela Criminologia Crítica. E é por esta lente que proponho, neste texto, apresentar algumas reflexões a partir da obra “O lenhador”, indagando sobre o quão críticos são os que se dizem críticos. A obra trata destes nossos tabus ocidental-cristãos (sexualidade e infância); assim sendo, a quem se diz atravessado pela Criminologia Crítica, será uma maneira de legitimar quem se é. E, àqueles cuja falta de hombridade faz com que apliquem a Criminologia Crítica “só de brincadeirinha”, será um bom teste. Em baile de máscaras, talvez não baste ficar atento a quem se passa por salvador. Talvez se tenha que ver atrás da máscara, mesmo!

O filme acompanha Walter a partir do momento em que adquire o direito à liberdade condicional denominada “supervisionada”. Sai com obrigatoriedade de receber visita semanal do agente de condicional, comunicar visitas recebidas, manter uma distância mínima de cem metros de escolas e não violar qualquer lei. Também freqüenta sessões com um psicólogo, mas não se sabe se em caráter de obrigatoriedade[4].

Cumpriu doze anos de pena em regime fechado, por haver estuprado meninas de dez a doze anos. O que se sabe dos atos é que as colocava sentadas em seu colo, de costas para ele, e que as impedia de esboçar qualquer reação.  Diz que nunca as machucou, mas não se sabe o que ele compreende por ferir.

Numa sessão psicoterapêutica, recorda-se, perguntado sobre a quê lhe remetem as palavras “menina”, “beleza”, “prazer”, que quando tinha seis anos e a irmã (Anelle) quatro gostava de cheirar os cabelos dela. Às vezes fazia isso quando estavam na cama, tirando uma “soneca”. Não se sabe se ele sofreu violência sexual, mas é possível pensar que sim, já que logo após esta lembrança angustia-se significativamente ao perceber que o profissional havia deixado a cadeira a sua frente e estava sentado atrás dele. “Não gosto de ninguém atrás de mim!”.

Comecemos pelo controle social informal envolvido na criminalização terciária sofrida por este homem. Na recepção pelo empregador em uma madeireira, é-lhe dito que “só estou fazendo isso porque você fez um bom trabalho para o meu pai!”. Na primeira visita do cunhado Carlos (esposo de Anelle), Walter lhe diz que ele é o único da família que ainda fala com ele, e escuta em resposta que ele sempre lhe foi grato pelo fato de haver sido o único que falou com ele quando foi apresentado à família e não foi bem recebido por ser negro[5].

Enfim: escuta repetidamente que ele só é aceito por meio de favores, para que se saldasse “dívidas” com ele contraídas anteriormente. Ora, nada pior que ser aceito por alguém só para que este alguém não se sinta ingrato, injusto. Se bem que há os que aceitam formas de amar sem amor, como aquelas nas quais se está com alguém não porque se deseja, mas porque não se quer se sentir culpado. Sim, falo daquela ilusão cristã do amor altruísta e incondicional...

Anelle, por sua vez, sequer aceita vê-lo. Inclusive devolve o presente de casamento que Walter havia dado: uma mesa de cerejeira por ele desenhada e feita. Os contatos entre eles é, inclusive, mediado por Carlos. Quando ela concorda em encontrá-lo, propõe no período em que a filha (Carla, 12 anos) estará viajando. Walter recusa, para não ser conivente com o receio familiar de que ele violentasse a sobrinha. Na última cena do filme, eles se encontram, mas não ficam frente a frente. Ele até tenta abraçá-la, mas ela tira sua mão de seu ombro e se irrita. Não se sabe o que conversaram.

Passemos a discorrer sobre o que fundamenta estes processos de criminalização terciária: uma manutenção da exclusão que já existia na criminalização primária e secundária.  Nesta direção, um diálogo entre Walter e Carlos é significativamente elucidativo: ele convida Walter para sair, contando que fica louco por outras mulheres quando Anelle viaja. Relata ainda que quando passa por uma mulher sexy tem a impressão de estar incomodando, e que quando vê uma mulher bonita ele a olha. Conclui “é o preço da beleza, amigo!”. Em seguida, comenta que lá fora (no mundo do qual Walter não mais faz parte, parece) está uma loucura, porque as mulheres usam “mini” roupas, encerrando ao dizer “você não sabe o que a Carla e suas amigas usam!”.

Neste momento, Walter pergunta-lhe se Carla já lhe despertou sensações (do inglês “feelings”, que poderia ser traduzido por “sentimento”, mas talvez a opção da legendagem tenha sido uma “animalização” de Walter, retirando-o do campo do afeto e o reduzindo ao campo da biologia).  A reação do cunhado é lhe pegar pela gola da camisa, e dizer “não tenho sua doença nojenta. É uma doença? Seja o que for, não tenho. Se um dia encostar na minha filha, mato você!”.

O filme insinua, mas apenas a quem pode ouvir, que há aspectos mercadológicos (a imagem que se publiciza da mulher e, por exemplo, as roupas que por esta via se pretende vender), bem como machistas (a idéia de que a roupa e o corpo de uma mulher são sinalizadores de interesse ou não por sexo), que são desconsiderados no tratamento penal de casos de violência sexual. Aspectos relacionados à própria criminalização primária, e que ultrapassam portanto o autor do ato em questão. Insinua, então, que a autoria de uma violência sexual contra crianças poderia ser estendida não apenas ao autor da cena do crime. Ou, pelo menos, que antes de se preocupar com os casos individualmente, dever-se-ia atentar para aspectos publicitários, culturais, econômicos, históricos, etc.

Ademais, agora numa visão mais micro da violência sexual, insinua que o Direito Penal preocupa-se com atos, e não com subjetividades. Logo, que a ele não deveria interessar se alguém deseja ou não cometer violência sexual contra crianças, mas apenas se ele a comete.  De qualquer modo, acompanhando algo aqui em outro momento já sinalizado por conta dos exames criminológicos, os porta-vozes da justiça divina (alguns operadores do Direito)[6] nada querem saber da subjetividade além do ato que a faz chegar a suas instituições, entendendo que ela reduz-se ao comportamento, mas, ao mesmo tempo, não se satisfazem em aparecer em sua faceta fiscalizatória, vigilante, punitiva apenas quando alguém comete crimes, contravenções ou infrações.  É o sonho da onisciência e onipresença!

Há uma outra personagem cuja relação com Walter nos revela estes interesses que regem a criminalização terciária: a secretária da madeireira onde trabalha. Entretanto, ela destaca interesses “subjetivos”, “individuais”, que dizem respeito as suas questões psíquicas. Logo que vê Walter, ela se interessa por ele e procura se aproximar. É só após sua recusa que ela busca saber de seus antecedentes, numa clara demonstração de que tal informação teria por função vingar-se dele. E o faz, ao divulgar a todos os funcionários seu histórico criminal, alegando que “as pessoas têm o direito de saber!”. Antes disto, ainda, faz insinuações a Walter de que ele deveria sair da empresa, e faz um aparente “teste de controle de impulsos”. Refiro-me à cena em que o chama para assinar um cartão que a madeireira enviará a um funcionário que acabou de ser pai, na qual diz-lhe “é menina!” e o olha diretamente para observar uma possível reação. Melhor dizendo: um possível indício de que ele se atrairia sexualmente por uma menina que acabou de nascer.

É...os recalques via de regra são associados a fantasias sexuais que rechaçam a castração. Por exemplo: de que alguém que comete crimes sexuais contra crianças seria o “ao menos um” a quem nada é interditado em termos sexuais. Daí as concepções de que, uma vez violentador sexual, sempre violentador sexual. De que, uma vez atraído por crianças, sempre atraído por crianças. De que, uma vez atraído por uma criança, atraído por qualquer criança.

O psicólogo procura justamente alertá-lo para os riscos dele, Walter, também ser agente da própria criminalização terciária. Daí tentar em vários momentos despatologizar a maneira com que ele se percebe. Tal patologização evidencia-se nas seguintes cenas: 1) Walter diz que não vê distinção entre psicólogo e psiquiatra quando o profissional pede que não lhe chame de doutor porque não é médico; 2) Walter indaga se será normal um dia, e não sabe responder o que é ser normal quando lhe feita a pergunta sobre o que seria normal; 3) Walter questiona se o psicólogo acha que ele é louco, e se recusa a responder se se considera louco; 4) Walter pergunta quando será normal.

Ele só para de fazer tais perguntas quando percebe que disponha de conceitos demasiado grandiosos e imprecisos (normalidade e loucura) para se referir ao seu desejo de ver uma menina, e até falar com ela, sem pensar em sexo. Nesta sessão, ele havia relatado que havia seguido uma garota no shopping. Inicialmente ofende-se quando o psicólogo indaga-lhe sobre o que imaginou acontecer, o que gostaria que acontecesse, mas depois se sentiu acolhido ao escutar a interpretação de que talvez ele estivesse se testando, para avaliar se após tantos anos ele conseguiria estar próximo de uma menina. Termina por dizer que ele falou disso, e não agiu. Na sessão seguinte é que Walter se recorda dos episódios infantis envolvendo a irmã, já aqui citados, revelando um progresso no tratamento.

Há pelo menos uma personagem que caminha no sentido oposto ao da criminalização terciária aqui mencionada. E é por tal razão que ela é rechaçada pelo próprio Walter, que, como dito acima, também era agente de sua própria criminalização. Trata-se de uma namorada do protagonista. Walter se interessa por ela ao presenciar sua reação quando foi chamada, por outro funcionário da empresa onde trabalhavam, de “apetitosa”. Ela lhe agrediu fisicamente e disse “gostaria que um tarado fizesse isso com sua irmã? Brinque com você mesmo!”. Como se viu, o conteúdo em si da fala já fez eco na subjetividade de Walter. Entretanto, como se evidenciará cada vez mais a partir daqui, o que também pode lhe ter encantado é o simples fato de ela haver reagido ou precisado que alguém interviesse em seu nome.

Em determinada cena, ela responde a Walter qual havia sido a pior coisa que ela fez (mantido relações sexuais com o esposo da melhor amiga desde a segunda série do ensino fundamental); logo, mostra-se não hipócrita ao falar que também em si ela reconhece algo imoral. Quando ele lhe conta os atos que havia cometido, ordena que ela vá embora. Ela se recusa, alegando que não se choca facilmente. Então, ele a ofende dizendo “mas deveria estar chocada. Ou curte esse tipo de coisa?”. Ela volta a lhe procurar após enfrentar o próprio espelho (diz a sua própria imagem “o que tá olhando?”), talvez desafiando sua imagem ideal, que se alienaria a determinados ideais de humano e amor.

Retomam a relação, e Walter lhe questiona “por que você fica?”. Ela responde “vejo algo em você. Algo de bom. Você não vê, mas eu vejo”. Walter então fala que as chances estão contra ele. Ela: “que chances?”. Ele: “a porcentagem para caras como eu. A maioria de nós acaba voltando para lá!”. Ela: “a maioria fala sem saber. Quer falar de chances? Qualquer dia conto como sobrevivi sendo a única filha, tendo três irmãos”. Devido à insistência de Walter, ela narra que foi vítima de incesto parte, para surpresa dele, não apenas de um irmão, mas de todos, em ordem cronológica. Ele também se surpreende quando ela nega que os odeie.

A propósito, aqui se pode lembrar dos processos de criminalização secundária, já que ela justifica seu amor por eles dizendo que são fortes, gentis e chefes de família. E, em seguida, fala que se Walter perguntá-los sobre o que fizeram com ela, será por eles agredido e chamado de mentiroso.  Ou seja: ser chefe de família seria uma condição incompatível com a de autor de crime sexual contra crianças, e seria o motivo pelo qual ela teria superado o que lhe fizeram. Parece que esta namorada bem retrata uma vítima de crime sexual contra crianças que é autora de criminalização secundária. Talvez tenha sido a única forma com que pôde ultrapassar o que vivenciou.

Mais uma vez, poderíamos questionar o politicamente correto, aqui para questionar se é a única via pela qual se pode suportar violências sofridas. Em outros termos: se a corrupção que fazem de nós deve ser respondida com nossa retidão.  Às vezes, antes da corrupção, a maior violência já era sofrida: a exigência de retidão. Talvez a própria ideologia de extermínio de quem nos corrompeu seja uma forma de manter esta violência estrutural. O desafio é, na condição de vítima, saber disso.

O sargento Lucas, agente de condicional de Walter, é o ápice desse processo de criminalização terciária. Em suas visitas, constata-se uma caricatura de tal processo. Senão vejamos: na primeira cena: adentra o apartamento, e só depois pergunta se pode entrar. Anda pelos cômodos, e só após indaga se poderia ver o ambiente. Quando Walter aponta a retórica de suas perguntas, reage dizendo “gosto de perguntar. É força do hábito” e logo em seguida questiona se teria algo a esconder. Walter responde “todos têm!”. Então, Lucas fala que pode conseguir um mandado de busca. Walter fala que, se o pudesse, ele o teria trazido. Lucas ri como se tivesse sido desmascarado, e muda de assunto: relata que uma menina de dez anos havia sido atacada dias atrás. Conclui com “é uma coincidência, não?”. Walter indaga o horário em que isto se teria dado, e escuta “eu é que faço perguntas”. Tenta explicar que, caso saiba, poderia ajudar[7]. Mas é interrompido com ordem de tirar a mão do bolso e voltar a sentar.

Lucas cospe o chicletes na pia da cozinha, e passa a discursar que sabe cada passo que Walter dá, inclusive quando se masturba olhando meninas pela janela. Indaga se ele chega a mostrar o pênis para elas[8]. Walter reage dizendo que ele não pode falar com ele “como se fosse...” e antes de concluir é mais uma vez interrompido. Lucas diz “como um merdinha? É isso que você é para mim: um merdinha! Se eu lhe jogar pela janela agora, sentirão sua falta? Posso dizer que pulou quando eu entrei. Acreditarão em mim ou em você? Seria um merdinha morto!”. Termina com “precisamos ver se está se comportando bem. Ok?”. É precisamente após esta cena que ele quase reincide, ao seguir a menina no shopping.

Na segunda visita de Lucas, Walter recebe o agente indagando o que poderia fazer por ele. A resposta irônica (?) “ouvir minhas histórias sobre Jesus!”. Após perguntar por que motivo Walter havia descido em um ponto de ônibus diferente do habitual[9], inicia um discurso com a frase “alguns caras entram em casas de família”. Novamente aqui uma polarização entre bom e mal, aqui atravessada pelo modelo ocidental, moderno e burguês de família. Então, narra o que um condenado à pena de morte falou-lhe sobre sua última vítima, cujo corpo foi encontrado aos pedaços. Aqui, merece destaque o fato de se referir a um caso diferente dos crimes cometidos por Walter, não apenas em termos de tipificação, mas que se teria caracterizado por ameaça e crueldade, o que não se sabe ter havido na atuação de Walter. O caso: uma mãe ouvia a televisão num volume tão alto que não escutou um homem entrando pela janela do quarto da filha. Ele teria tapado sua boca, e lhe ameaçado matar a mãe caso ela reagisse. Teriam saído pela porta da frente.

Lucas questiona a Walter se ele acredita em contos de fadas, exemplificando com o “Alice no país das maravilhas”. Então, tenta lembrar o nome de um conto, do qual se recorda que havia um lenhador que, com um machado, tira uma menina da barriga de um lobo. Walter lembra o nome do conto (Chapeuzinho vermelho). Lucas fala “não tem lenhador nesse mundo. Não sei porque deixam monstros como você nas ruas. Aí temos que pegar de novo e de novo”.

Após sua saída, Walter rasga o diário que havia sido sugerido pelo psicólogo, enquanto diz a si que ele não poderia ter falado com ele como se fosse um doente. Reafirma que não é doente. Procura lembrar de quem é, ao que parece; em outras palavras: que não é doente. Também parece tentar lembrar que não é como o executado pelo Estado citado por Lucas. Porém, após na cena seguinte ser agredido fisicamente no local de trabalho porque a secretária divulgou nos armários de todos os funcionários seus antecedentes criminais, retorna ao parque em que havia conhecido uma garota de onze anos (Robin – nome de uma espécie de pássara, como a própria menina diz -).

E aqui se chega a um aspecto fundamental deste texto: o que a vítima pode fazer por si, mesmo em casos de violência sexual contra crianças. Ou, melhor dizendo, até que ponto se pode independer do Estado. E, até, se precisa dele se independer para não sofrer mais danos que os já sofridos. E, porque não, para não ser conivente com processos de exclusão terciária, por exemplo.

A primeira vez que Robin e Walter conversam é a cena que sucede a sessão de psicoterapia em que Walter lembra-se dos episódios com a irmã. De fato, como bem ensina Freud (1914), repetir pode se seguir do recordar, mas até se elaborar pode haver novas repetições. E, ainda, há questões que nunca são plenamente elaboradas.

Walter já havia visto a menina de casaco vermelho em outra data, no mesmo ônibus. Mas neste dia resolve descer no mesmo ponto que ela, e a segue até o parque no qual ela adentra para sua rotina de observação e catalogação de pássaros. No diálogo entre eles, a menina pergunta o que ele estava vendo, e ele aponta para um ninho. A menina posiciona o binóculo e diz que são estorninhos, dos quais não gosta por serem muito agressivos e terem hábitos nojentos. Em seguida, conta que já viu um representante da espécie “vireo solitário” naquele local. Walter diz “gostei”, talvez porque com ele se identificou na condição de “sem ninho”. Então, ela fala que os vireos solitários são bem musicais.

Robin indaga se ele também observa pássaros, ao quê Walter diz ser mais observador de pessoas. Complementa que pelo modo como ela olhava o topo das árvores, por exemplo, ele pensou que ela fosse decolar e voar. É quando a menina fala que o pai gosta que volte cedo, e que, então, irá. Walter diz que é bom, mesmo, obedecer ao pai.

No segundo encontro, Robin está mais uma vez com a blusa vermelha. Walter já a espera no parque. Questiona onde estão seus amigos, e se ela tem amigos. A menina responde que possui amigos. Então, ele fala que uma menina bonita como ela deve ter amigos, partindo da idéia de que se não se tem amigos é porque não se é bonito. Robin diz que não é bonita. Walter argumenta que não é uma beleza padrão, e que belezas incomuns passam desapercebidas. “Como quem só vê os pássaros de cores mais vivas”.  A menina pergunta se ele possui amigos, e ele responde que não. Robin indaga o motivo, e ele comenta que há muito tempo foi mandado para muito longe, e que quando retornou seus amigos haviam partido. A garota reage perspicazmente: “parece que você foi banido!”. Logo, aponta para o fato de que alguém que não tem amigos talvez tenha beleza, e que só está sozinho porque foi banido.

Então, diz que os pássaros são seus amigos, que sabem que ela os observa mas não ligam. Alega que, se sabem que não vai machucá-los, eles gostam. Walter pede que ela sente no seu colo. A resposta: “não, obrigada”. Walter diz “ok. Sem problema”. A menina, não suportando contrariá-lo, pergunta se quer que sente no seu colo. Walter responde afirmativamente, e diz que conhece “um lugar tranqüilo, exceto pelo som dos pássaros bem pequenos!”. A garota diz que devem ser pintassilgos. Então, comenta que o pai pede[10] que ela sente no seu colo. Walter questiona se ela gosta quando ele lhe pede isso. A resposta é negativa. Então, ele indaga por quê, e em seguida se eles estão a sós quando ele a pede isso, se ele lhe diz coisas estranhas e se mexe as pernas de modo estranho. A todos estes questionamentos, a reação da menina é a mudez e a direção do olhar para os pássaros, com o binóculo. Ao fim, Robin pergunta se ele quer que ela se sente no seu colo, alegando não se importar. Ele responde que não, e diz para ela ir para casa.

Foi se deparar com o sofrimento de Robin que fez com que Walter se contivesse. E, talvez, ter-se identificado com ela na condição de vítima de crime sexual. Conforme já dito, o filme não traz imagens de que o tenha sido, mas traz elementos que levam a pensar que sim. Talvez aqui tenha ressignificado algo que escreveu quando anotava em seu diário as aproximações que presenciava entre Candy e crianças da escola. Walter registrou: “o que devo fazer? Chamar a polícia? Muito perigoso. E se Candy atraí-los para um passeio? É isso: se um garoto for, é porque quer dar um passeio!”. Talvez tenha ressignificado a noção de que adultos e crianças possuem as mesmas condições de lidar com o desejo próprio e alheio. Porém, como argumentado, isso foi conseguido não a partir de exclusão e sofrimento, ou silenciamento da vítima.

Ao retornar para casa, na cena seguinte, Walter vê um garoto saindo do carro de Candy. Espanca-o. No dia seguinte, recebe visita de Lucas, que diz que ele se encaixa perfeitamente na descrição feita pelo menino que presenciou o espancamento de um homem logo abaixo da janela de seu apartamento na noite anterior. Vê um arranhão em seu pescoço, mas acredita na versão de Walter de que resultou da passionalidade de sua namorada. Então, questionado se estava de mudança (havia caixas pela casa), responde que ia morar com ela. Recebe os parabéns do oficial, que sequer pergunta seu novo endereço.

Ao se despedir, Walter questiona se ele acredita que prenderão o autor. Lucas responde que sim, mas observa que a vítima é procurada em outro estado, onde teria estuprado um garoto. Ri ao contar que o maxiliar do homem havia sido, dentre outras coisas, quebrado.

Para Lucas, aqui representando o Estado, a liberdade de Walter foi conquistada quando reproduziu um ciclo de violência, e quando supostamente colocou-se no lado dos bons. Isto faz mais sentido se se retomar a segunda cena entre Lucas e Walter, na qual inicia a visita alertando que ele havia colocado a planta sempre-viva num local onde havia muito sol. Walter pergunta se ela cresceria no ambiente externo, ao quê Lucas respondeu que não porque lá as árvores fazem muita sombra. O sargento não sabe orientar outra posição que não duas opostas (sol e sombra, externo e interno), integrando-as.

Esta planta foi dada pela namorada a Walter quando se reconciliaram. Frente à resistência dele em receber o presente, ela argumentou que todos precisam de uma planta, que aquela era resistente, e, por fim, “dê um pouco d’água, não exponha ao sol e a olhe de vez em quando. Adoram ser olhadas e tocadas”. Enfim...o toque fundamental para se viver não era de sol ou sombra, secura ou frescor. Somos mais que um pedaço de carne.

 Walter, fixado na parcialidade de um cheiro, encontra alguém que nele escuta música (paradoxalmente, talvez, uma possível vítima o salvou). Walter, que dizia gostar do barulho que vinha das crianças, talvez não reconhecesse a beleza dos sons que vinham dele. A beleza padrão chega aos olhos; a incomum, aos ouvidos.

Walter demorou a entender que a questão não é a quantidade da beleza. Também demorou a entender que não é a quantidade de amor, já que disse a Carlos que não se deve amar demais os filhos, e escrito em seu diário que Carlos era louco pela filha e que, se não tomasse cuidado, iria sofrer.  Só ao fim entendeu que pode amar bastante, e de um jeito bom. Talvez tenha sido muito lesado pela falta de amor que sofreu, e perverteu o amor. Transformou carência em violência. E deixou de ser vítima para ser autor.

Também demorou a entender que a assimetria de poder não está na diferença de idades. Refiro-me à precisão com que selecionava suas vítimas a ponto de só haver violentado uma de nove e uma de treze porque elas mentiram a idade.

É fato que o Direito precisa lidar com marcadores objetivos, mas há que se ter limites para as generalizações. Até a matemática sabe dos limites da previsibilidade, replicabilidade, neutralidade do observador, etc. Assim, talvez o Direito precisasse observar outros profissionais, como psicólogos, mas não para violentá-los.


Notas e Referências:

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Revan, 2012.

BITENCOURT, Luciane Potter. A vitimização secundária de crianças e adolescentes e a violência sexual intrafamiliar. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Direito, Porto Alegre, 2007.

FREUD, Sigmund (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 12 v. Rio de Janeiro: Imago, 1980. p.191-203.

O LENHADOR. Direção: Nicole Kassell. Roteiro: Steven Fechter e Nicole Kassell. Produção: Lee Daniels. Distribuição: Dash Films, 2004.

[1] http://emporiododireito.com.br/lolita-e-as-dores-do-direito-sobre-violencia-sexual-e-adolescencia-por-maira-marchi/ e http://emporiododireito.com.br/falando-sobre-tabus-para-derrubar-totens-por-maira-marchi-gomes/

[2] A Psicanálise desde muito cedo ensinou-nos que a realidade só existe enquanto apropriação. Logo, que a realidade só é a psíquica. E, assim sendo, que a realidade sempre é ficção, e que é só a ficção que tem estatuto de realidade.

[3] Em poucas palavras, a Criminologia Crítica seria um campo do saber que pensa o crime/criminalidade não a partir do sujeito que comete um ato criminoso, contravenção ou infração. Sua especificidade é pensar o controle social formal (instituições de Estado) e informal (família, religião, escola, mídia, etc.), incluindo-se a criminalização, a partir dos processos exclusão (de raça, etnia, gênero, classe social, faixa etária, etc.). Nesta direção, destaca a construção do crime enquanto produção social enviesada por questões político-econômicas localizadas num tempo e num espaço, que faz com que algumas condutas e não outras sejam previstas como “crime”, alguns crimes tenham uma resposta mais grave que outros (criminalização primária), algumas vítimas sejam mais vítimas que outras, alguns autores sejam mais visíveis ao sistema judicial que outros (criminalização secundária), alguns cumpram suas penas em condições melhores que outros, e alguns sejam após cumprimento de suas penas mais estigmatizados que outros (criminalização terciária). Por fim, alerta para os efeitos danosos a todos nós trazidos pelo capitalismo patriarcal globalizado sob a ideologia neoliberal (Andrade, 2012).

[4][4] A propósito, uma apropriada discussão sobre o uso do saber psicológico pelos operadores do Direito neste momento em que alguém reavê a liberdade é uma continuidade às considerações aqui anteriormente feitas (http://emporiododireito.com.br/nas-maos-de-flores-consideracoes-psicologicas-sobre-exame-criminologico-por-maira-machi-gomes/ e http://emporiododireito.com.br/ser-o-que-se-e-impossiveis-contribuicoes-da-psicologia-ao-direito-por-maira-marchi-gomes/).

[5] A legendagem, num claro desserviço à política de visibilidade do preconceito racial, traduz por “moreno”. Preconceito frequentemente aparece com a roupagem do “politicamente correto”...

Aliás, o filme talvez mereça uma crítica significativa nesta direção, já que representa o cunhado, o agente de condicional, o empregador e a secretária que aqui são/serão mencionados como negros, e Walter e sua namorada como brancos. Sugiro que o leitor e expectador considere tais dados em suas reflexões paralelas sobre a obra. Apenas gostaria de alertar para a mensagem que o diretor pode ter querido passar: questionar nossas representações raciais? Se sim, a melhor via seria polarizando brancos e negros, ainda que em posições inversas às que se são visibilizadas pelo sistema judicial?

[6] Não esqueçamos das bancadas do bem (alguns legisladores) e dos implantadores de próteses de bondade (alguns servidores do poder executivo), cuja participação no que diz respeito ao exame criminológico ainda é pequena, mas que não o é caso tenhamos outros focos de observação desta mesma temática da violência sexual contra crianças.

[7] Como narrado a seguir, ele observara um homem que abordava crianças na escola que ficava em frente ao seu apartamento. Registrou no diário, e o chamou de Candy, talvez porque o via entregando doces a crianças.

[8] Tal imagem fica por conta da fantasia de Lucas, pelo menos considerando o que se tem de informações sobre o caso, já que em nenhum momento indica-se que Walter apresentava condutas como essa.

[9] Ele havia seguido uma outra garota num parque, conforme explicado a seguir. Alega a Lucas que havia cochilado no ônibus e se confundido ao acordar.

[10] A legendagem interessantemente traduz por “deixa”. Talvez se possa utilizar disso para pensar que a assimetria de poder aqui existente independe do comportamento. Assim, mesmo que fosse a menina quem pedisse que sentasse no colo, nada mudaria em termos de efeito psíquico violento do ato. Porém, o Direito parece ter dificuldade em ultrapassar leituras comportamentais dos eventos, ainda que se reconheça ser um desafio fazê-lo, sem recair num Direito Penal do autor.


Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela UFSC e Psicóloga da Polícia Civil de SC.  Facebook (aqui)                                                                                                                                                                                                                                                                                                

 


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