Fazer (pela) Justiça - Por Paulo Ferreira da Cunha

26/10/2017

 

Em tempos que já lá vão (quase quando os animais ainda falavam), num desses balbucios interdisciplinares (hoje a alta pesquisa já está no patamar da pós-disciplinaridade, pioneiramente desenvolvida por Gonçal Mayos), contaram-me algo que terá ocorrido mas parece anedótico. Não interessa muito a veracidade, neste caso, mas a verosimilhança.

Disseram-me que numa disciplina de coisas não jurídicas um professor não jurista não permitiu que os alunos candidatos a juristas fumassem, não porque uma nova lei o proibia em salas de aula, mas culpando-os a eles por essa interdição ao que parece recente: “Os Senhores fazem destas, e agora queixam-se”.

Calculo qual haja sido o sentimento de injustiça de um aluno de Direito ao ser responsabilizado pelo acerto ou desacerto das opções do legislador. O Direito é feito pelo legislador, deveria alguém ter dito. Também nem só e nem sempre, como sabemos da teoria e da prática das fontes do Direito. Mas a lei é feita pelo legislador (afora as tais que o clássico juiz estadunidense disse ter feito – naturalmente ao julgar: “’Made some myself”).

Seja como for, sabemos que, de algum modo, em algum momento (por exemplo na interpretação e em especial na judicação: que é a última instância), o Direito é feito por juristas. Porém, eles estão muito longe de ser um grupo homogéneo. E isso tem grande importância, cada vez a tem mais...

Alguns juristas terão, certamente, que dar o exemplo. E as Faculdades e Escolas em que se ensina Direito (e se deveria preparar para fazer Justiça) terão, naturalmente, que assumir as suas responsabilidades. Não podendo ensimesmar-se, nem abrir-se para apenas algum mundo, muito seletivamente. O que talvez terá levado um dia Boaventura de Sousa Santos a dizer que elas, em geral, seriam apenas faculdades de algum direito, se a memória me não falha.

Nem faculdades de apenas algum direito nem meros cursinhos ou cursões de preparação para certo tipo de profissões jurídicas e certas regras do jogo do mercado jurídico.

Já começa a haver bastantes juristas que não alinham por velhas convenções, nem se deixam seduzir por facilitismos e demagogias pintadas de fresco mas sem consistência e conteúdo. E o Direito Fraterno Humanista, vai fazendo o seu caminho, por uma Justiça sem Espadas e sem Vendas...

Para o atingirmos, precisamos de ter juristas nisso empenhados, competentes e generosos, mas precisamos também de ter cidadãos conscientes do novo paradigma, e do bem que isso trará. Enquanto tivermos sociedades armadas, barricadas, e ódios (alguns seculares, mas sempre de estimação), enquanto tivermos gentes dispostas a liquidar os outros sem os ouvir, estaremos muito longe do Direito Fraterno. Há quem desfira estigmas a torto e a direito, sobre estes e sobre aqueles. E as redes sociais facilitam essa arma incendiária, que arruína reputações com um ariete verbal caviloso.

Só haverá Direito Fraterno com uma sociedade muito mais fraterna, com concidadãos mais cultos, mais urbanos, mais civilizados. Há princípios elementares como o da presunção da inocência, da igualdade dos gládios, da ampla defesa, da tipicidade, ilicitude e culpabilidade, segredo de justiça, imparcialidade e independência dos magistrados, garantias dos advogados e dos demandados, assim como da liberdade de expressão, e certamente também existirá um princípio do necessário recato (e não tomada de partido) da comunicação social que se queira generalista, credível. A comunicação assumidamente partidária terá menos controlo, mas mesmo assim o necessário compromisso com a verdade mínima, a decência em grau zero... Há, pois, um rol de princípios que talvez devessem ser ensinados no ensino elementar e martelados na comunicação social para que se aprenda a ser cidadão. E é um rol bastante grande, hoje em dia. Não podendo uma sociedade civilizada prescindir de nenhum.

Basta dar uma vista de olhos pela “opinião que se publica” para se aquilatar dos erros, preconceitos, inverdades, falta de informação e ódios inexplicáveis (ou muito bem explicáveis) contra o grego ou o troiano que tenham caído nas bocas do Mundo ou nas malha da Lei.

De há muito que estou distanciado de coisas políticas ativas, e mesmo quando por lá passei, discretamente, foi com empenhamento, é certo, mas jamais profissionalmente e com muita independência e sempre “nas minhas tamanquinhas”. Talvez por isso nunca tenha singrado, ou talvez por proteção do meu anjo da guarda. Seja como for, estou fora do debate, nos vários países em que vou escrevendo, falando, lecionando e publicando. E não tenho nenhum palpite sobre nenhum dos assuntos mediáticos (e tantos são). Nem tenho ódio nem amor para com nenhum dos intervenientes.

Apenas gostaria que, se vier a haver democracia e liberdade no futuro (do que infelizmente não posso ter a certeza) o nosso tempo não viesse a ser julgado pela sua Justiça, ou injustiça. Temos de posar bem para uma hipotética História. É uma preocupação que os pequenos como eu possuem, mas a fortiori deve ser dos grandes, de todo o tipo de grandes.

O séc. XXI tem responsabilidades, porque vem depois de séculos de importantes lutas e conquistas, e não pode regredir. Não pode regredir no Direito, desde logo. Não deveria. Se regredir, e um dia se vier a progredir, será julgado como um negro interregno...

Os advogados estagiários em Portugal, quando eu andava pelos Tribunais, quando não tinham tido tempo para estudar processos oficiosos que lhes eram confiados, levantavam-se quando lhes era concedida a palavra e sonora ou timidamente (dependia da maneira de ser de cada qual) diziam: “Peço Justiça!”. Não basta pedi-la, porém. A esses estagiários supriam os Tribunais a lacuna. Mas às sociedades e aos Juristas em geral ninguém vai ajudar. De nada nos servirá apenas pedir Justiça. Temos de fazer por ela...

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