Por Jorge Coutinho Paschoal – 28/07/2016
Fato é um acontecimento qualquer, situado em determinado espaço de tempo e lugar, que está demarcado por um momento inicial e final[1]. Neste sentido, tudo pode ser descrito como um fato - por mais breve e efêmero que seja - desde um simples piscar de olhos até o mais o complexo dos acontecimentos.
Como regra, o direito diz respeito a fatos, já que serve para discipliná-los: ex facto oritur jus (do fato origina-se o direito). Apesar do exposto, nem todo fato é, por si só, jurídico, pois nem sempre traz, consigo, consequências jurídicas[2]. Como bem expõe Miguel Reale, “quem pensa que o Direito provém do fato, assim como uma lei física resulta de uma experiência realizada em laboratório, engana-se redondamente”[3].
Embora o fato seja uma dimensão essencial ao direito, não é a única, sendo necessária a conjugação de uma norma que agregue em seu bojo determinada valoração jurídica[4], na esteira da doutrina tridimensional do Direito, entre fato, valor e norma
Nesse sentido, aduz Orlando Gomes que fato jurídico “é todo acontecimento, dependente, ou não, da vontade humana, a que o Direito atribui efeito”[5]. Entre os processualistas, José Roberto dos Santos Bedaque afirma, nesse diapasão, que se os atos forem “relevantes para o Direito, qualificam-se como jurídicos”[6]. Nesse mesmo sentido é a lição da doutrina estrangeira, de Benedetto Pellingra, na seara penal[7].
Eis um ponto: o fato, para ser reconhecido jurídico, (a) precisa produzir os efeitos jurídicos esperados desde logo ou (b) bastaria a mera expectativa na produção desses efeitos (aptidão ou potencialidade)? Geralmente, a doutrina não trata dessa questão, sendo pertinente a indagação de Teresa Arruda Alvim Wambier[8].
Entende-se que melhor é a segunda opção (aptidão quanto à produção de efeitos), pois há fatos cujos efeitos jurídicos só serão produzidos posteriormente, sendo que, nem por isso, se poderia deixar de qualificá-los como fatos jurídicos.
Em sentido amplo, o fato jurídico tanto pode ser involuntário como voluntário.
Ele alberga, assim, tanto as hipóteses de acontecimentos naturais, isto é, que independem da vontade humana, quanto os fatos voluntários, que dependem da volição do homem, sendo os últimos denominados atos jurídicos, mais comuns na vida e no processo.
De tal modo, o conceito de fato jurídico (em sentido lato) compreende duas conotações distintas: (1) fatos ou eventos que independem da vontade humana (mais conhecidos como fatos jurídicos em sentido estrito) ou (2) fatos voluntários, também denominados como atos jurídicos. Esses últimos, os fatos jurídicos voluntários, também se bifurcam em dois: (a) atos jurídicos em sentido estrito e (b) negócios jurídicos[9], embora a incidência deste último tipo seja polêmica no processo.
A classificação exposta é bastante usual na doutrina, embora haja outras menos usuais[10], tendo sido aplicada também ao processo. Assim, ato jurídico processual seria aquele que produz efeitos no processo. Apesar da simplicidade do assunto, existe discussão em relação ao que poderia ser qualificado como um ato jurídico de cunho processual.
Dependendo do ponto de vista, pode-se interpretar o conceito de ato jurídico processual tanto em um sentido amplo quanto mais restritivo.
Em um sentido amplo, considerar-se-ia ato processual qualquer ato praticado no curso do processo e que possa produzir efeitos jurídicos dentro dele. Em um sentido mais restritivo, consideram-se atos processuais apenas aqueles atos que são ínsitos ao processo, não tendo vida fora dele.
Para melhor compreender o exposto, pegue-se o exemplo da transação civil (no processo penal, pense-se nas hipóteses de crimes de menor potencial ofensivo, em que acarrete a transação civil acarrete a extinção da punibilidade), que é um ato jurídico que tanto pode ocorrer fora quanto dentro do processo.
Para a corrente abrangente do conceito de ato jurídico processual, se o fato tiver alguma relevância para produzir efeito no processo, poderá ser qualificado como sendo jurídico processual. O que importa é que produza efeitos processuais. Já para a concepção restrita, não poderia ser considerado um ato ou fato jurídico processual, ainda que produza efeitos dentro dele, pois não lhe é ínsito, já que pode se dar (e geralmente ocorre) fora do processo.
É adepto da concepção restrita de ato jurídico processual José Joaquim Calmon de Passos, para quem “o ato, para ser entendido como ato processual, não somente deve ser um ato integrante do conjunto de atos que constituem o processo e com eficácia para o processo, mas também uma terceira exigência se deve somar às duas precedentes – sendo ato do processo e com efeitos no ou para o processo, ele também deve ser ato que só no processo pode ser praticado. Donde conceituar o ato processual como aquele que é praticado no processo, pelos sujeitos da relação processual ou do processo, com eficácia no processo e que somente no processo pode ser praticado”[11].
Assim, para esta linha de pensamento, seriam atos processuais apenas aqueles atos típicos do processo, como uma resposta à acusação, uma contestação ou a realização de uma audiência, em que se produzam atos instrutórios.
Em que pese o respeito à opinião mencionada, não se entende dessa forma. Adota-se aqui uma concepção ampla de ato jurídico processual, considerando-se assim todo ato jurídico que tenha o condão de produzir efeitos dentro do processo.
A concepção restrita deve ser rechaçada, porque, nos dias de hoje, dificilmente um ato jurídico praticado no processo não poderá também ocorrer fora, sobretudo com a vigente ordem constitucional, em que é prevista uma série de atos que – anteriormente - apesar de exclusivamente processuais – passou a ter aplicação e vida fora do processo jurisdicional, como ocorre nos órgãos da Administração Pública ou até entre particulares (procedimentos investigatórios e fiscalizatórios de compliance).
Em outras palavras, os atos que (antigamente) eram exclusivos do processo passaram a ter aplicação fora. A esse respeito, têm-se, como exemplos, o direito de petição[12], o direito de resposta ao agravo[13], o próprio exercício do direito de defesa, que, já há bastante tempo, não é exclusivo do processo de cunho jurisdicional[14].
Por isso, caso se adotasse uma concepção restrita de ato jurídico processual, daquele que só teria vida dentro do processo, haveria o invariável esvaziamento da noção de atos jurídicos processuais, dado o cenário atual, pois muitos dos atos até então considerados intrinsecamente processuais passaram a ter aplicação extra processo.
Importa frisar que qualquer ato jurídico, ainda que não propriamente processual, sempre produzirá efeitos peculiares (e ínsitos) ao processo. Em âmbito civil, pegue-se o exemplo da transação: ela acarreta uma sentença de mérito, com aptidão para gerar coisa julgada material. No processo penal, a morte do investigado/réu, apesar de ser um fato jurídico extraprocessual, implica sentença ou declaração da extinção da (suposta) punibilidade, que é uma consequência própria e exclusiva ao processo penal[15].
Não há razão, portanto, para recusar-lhes, por isso, a condição de ato jurídico processual, em que pese entendimento de um dos nossos maiores processualistas, Calmon de Passos.
Notas e Referências:
[1] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada à teoria das nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 20.
[2] “Se um meteoro atinge o planeta Marte, esse fato, em tese, não traz qualquer consequência jurídica. É, portanto, um fato não jurídico, é um mero acontecimento. Entretanto, se esse mesmo meteoro atinge o Planeta Terra, atravessa a atmosfera e se impacta contra um edifício, destruindo-o por completo ou parcialmente, ter-se-á uma série de consequências jurídicas, tais como a cobrança de seguros, ações indenizatórias, prejuízos de ordem material e moral, mortes com a conseqüente sucessão e necessidade de aberturas de inventários, investimento público na recuperação da área atingida, etc” (VICENTE, Fabrizzio Matteucci. Arbitragem e nulidades: uma proposta de sistematização. Tese {Doutorado} apresentada perante a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo {USP}, São Paulo, 2010, p. 09)
[3] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002 p. 199.
[4] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 201.
[5] GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 2.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1965, p. 214; tem idêntica concepção acerca de fato jurídico: AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 23.
[6] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 409.
[7] PELLINGRA, Benedetto. Le nullità nel processo penale, p. 15; LEONE, Giovanni. Manuale di diritto processuale penale. 8.ª ed. Napoli: Eugenio Jovene, 1973, p. 241.
[8] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Nulidades do processo e da sentença. 5.ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 141.
[9] A tal respeito: GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, p. 214; KOMATSU, Roque. Da invalidade no processo civil, p.105; REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, p. 201. Na doutrina processual: BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual, p. 410.
[10] Parte da doutrina também fala em “ato-fato jurídico”, explicando, a seu respeito, Marcos Bernardes de Melo que “há outras hipóteses em que o fato para existir necessita, essencialmente, de um ato humano, mas a norma jurídica abstrai desse ato qualquer elemento volitivo como relevante. O ato humano é da substância do fato jurídico, mas não importa para a norma se houve ou não vontade em praticá-lo” (MELO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 137). Discorre o Autor que “no conceito de ato-fato jurídico estão incluídos: I) os atos reais; II) os casos de indenizabilidade sem culpa; III) os casos de caducidade sem culpa” (MELO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico, p. 137). Trata-se de classificação menos usual.
[11] CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada à teoria das nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 44.
[12] Artigo 5.º, inciso XXXIV, a, da Constituição da República.
[13] Artigo 5.º, inciso V, da Constituição da República.
[14] Artigo 5.º, inciso LV, da Constituição da República.
[15] Artigo 107, inciso I, do Código Penal c.c. artigo 61, do Código de Processo Penal.
. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .
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