Famílias simultâneas e poliafetivas: Dona Flor, Cadinho e Seu Quequé na busca da tutela jurisdicional

03/06/2016

Por Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes – 03/06/2016

A literatura e a dramaturgia são repletas de exemplos de amores livres.

Dona Flor era casada com Vadinho, que só queria saber de farras e jogatina nas boates da cidade. A vida de abusos e noites em claro acaba por acarretar sua morte precoce, deixando Dona Flor viúva. Logo ela se casa de novo, com o recatado e pacífico farmacêutico da cidade, Teodoro Madureira. Com saudades do antigo marido que apesar dos defeitos era um ótimo amante, acaba causando o retorno dele em espírito, que só ela vê. Passando a dividir o leito com os seus dois maridos.

Na novela Avenida Brasil, a figura engraçada e cativante de Cadinho mantinha três relacionamentos simultâneos: com Verônica, Noemia e Alexia. Três mulheres com características bem distintas, ao fim da novela, concordam que são apaixonadas pelo mesmo homem e celebram um casamento múltiplo.

Já Seu Quequé, homem carismático, mantém três esposas, três famílias bem constituídas. Em Pernambuco, Quequé é casado com Eleuzina, em uma relação madura e de companheirismo. Santinha, mulher bela, recata e do lar, é sua esposa em Alagoas. E em Sergipe, Quequé é marido de Nicinha, moça graciosa e inconsequente.

Se a arte imita a vida, ou se a vida imita a arte, é certo que, na “vida real”, muitos são os casos de uniões múltiplas. Há pouco tempo o 15.º Ofício de Notas do Rio de Janeiro registrou a União Estável entre três mulheres. Este não foi o primeiro caso de registro de união poliafetiva, o precursor ocorreu em Tupã, no interior de São Paulo, em 2012. Na ocasião, um homem e duas mulheres procuraram um cartório para registrar a relação.

Apesar do influxo cultural poligâmico histórico[1] a legislação brasileira é expressa na adoção da monogamia. Juridicamente falando, duas situações impedem o reconhecimento das uniões plurais. A primeira é a previsão no Código Civil da nulidade absoluta do casamento contraído em situação de bigamia (arts. 1521, VI e 1548 do CC). Já a segunda situação é a tipificação do crime de bigamia no artigo 235 do Código Penal que prevê pena de reclusão de 2 a 6 anos.

A doutrina prevê duas possibilidades de uniões plurais: as famílias simultâneas e as famílias poliafetivas.

As famílias simultâneas ou paralelas são aquelas onde pelo menos um dos cônjuges, simultaneamente, possui relacionamentos afetivos diversos. Tais relacionamentos tem o intuito de formação de família e são aceitos e queridos pelos envolvidos. Como exemplo, as relações de Cadinho e de Seu Quequé, embora este último as “esposas” não tivessem conhecimento.

Já as famílias poliafetivas, como os casos narrados no início do texto, são aquelas onde três ou mais pessoas relacionam-se de maneira simultânea em um único vinculo familiar. Da mesma maneira que as famílias simultâneas há a aceitação de todos os envolvidos. Como no caso de Dona Flor, Vadinho e Madureira.

Muitos tem sido os trabalhos acadêmicos versando sobre a viabilidade de reconhecimento jurídico dessas “novas” formas de família. Alguns Tribunais brasileiros, inclusive, já tem reconhecido os direitos provenientes destas relações. Neste sentido:

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. POSSIBILIDADE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante ao casamento de “papel”. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o de cujus. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO, POR MAIORIA, VENCIDO O DES. RELATOR. (Apelação Cível Nº 70019387455, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 24/05/2007)

DIREITO DAS FAMÍLIAS. UNIÃO ESTÁVEL CONTEMPORÂNEA A CASAMENTO. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO FACE ÀS PECULIARIDADES DO CASO. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Ao longo de vinte e cinco anos, a apelante e o apelado mantiveram um relacionamento afetivo, que possibilitou o nascimento de três filhos. Nesse período de convivência afetiva – pública, contínua e duradoura – um cuidou do outro, amorosamente, emocionalmente, materialmente, fisicamente e sexualmente. Durante esses anos, amaram, sofreram, brigaram, reconciliaram, choraram, riram, cresceram, evoluíram, criaram os filhos e cuidaram dos netos. Tais fatos comprovam a concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isso é família. O que no caso é polêmico é o fato de o apelado, à época dos fatos, estar casado civilmente. Há, ainda, dificuldade de o Poder Judiciário lidar com a existência de uniões dúplices. Há muito moralismo, conservadorismo e preconceito em matéria de Direito de Família. No caso dos autos, a apelada, além de compartilhar o leito com o apelado, também compartilhou a vida em todos os seus aspectos. Ela não é concubina – palavra preconceituosa – mas companheira. Por tal razão, possui direito a reclamar pelo fim da união estável. Entender o contrário é estabelecer um retrocesso em relação a lentas e sofridas conquistas da mulher para ser tratada como sujeito de igualdade jurídica e de igualdade social. Negar a existência de união estável, quando um dos companheiros é casado, é solução fácil. Mantém-se ao desamparo do Direito, na clandestinidade, o que parte da sociedade prefere esconder. Como se uma suposta invisibilidade fosse capaz de negar a existência de um fato social que sempre aconteceu, acontece e continuará acontecendo. A solução para tais uniões está em reconhecer que ela gera efeitos jurídicos, de forma a evitar irresponsabilidades e o enriquecimento ilícito de um companheiro em desfavor do outro (TJMG. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0017.05.016882-6/003 – RELATORA: EXMª. SRª. DESª. MARIA ELZA – DJ 20.11.2008)

Apesar da boa intenção do julgador de não deixar desamparados relacionamentos que não são revestidos da formalidade prevista em lei, ainda prevalece o entendimento, baseado no dispositivo legal, de que os relacionamentos devem ser monogâmicos (ao menos para os efeitos deles decorrentes).

Eis algumas decisões:

DIREITO DE FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE UNIÕES ESTÁVEIS SIMULTÂNEAS. IMPOSSIBILIDADE. EXCLUSIVIDADE DE RELACIONAMENTO SÓLIDO. CONDIÇÃO DE EXISTÊNCIA JURÍDICA DA UNIÃO ESTÁVEL. EXEGESE DO § 1º DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. 1. Para a existência jurídica da união estável, extrai-se, da exegese do § 1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, o requisito da exclusividade de relacionamento sólido. Isso porque, nem mesmo a existência de casamento válido se apresenta como impedimento suficiente ao reconhecimento da união estável, desde que haja separação de fato, circunstância que erige a existência de outra relação afetiva factual ao degrau de óbice proeminente à nova união estável. 2. Com efeito, a pedra de toque para o aperfeiçoamento da união estável não está na inexistência de vínculo matrimonial, mas, a toda evidência, na inexistência de relacionamento de fato duradouro, concorrentemente àquele que se pretende proteção jurídica, daí por que se mostra inviável o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. 3. Havendo sentença transitada em julgado a reconhecer a união estável entre o falecido e sua companheira em determinado período, descabe o reconhecimento de outra união estável, simultânea àquela, com pessoa diversa. 4. Recurso especial provido. (STJ. REsp 912.926/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 22/02/2011, DJe 07/06/2011)

A monogamia constitui princípio que informa o direito matrimonial, não se podendo reconhecer a constituição de uma união estável enquanto uma pessoa estiver casada (e mantendo vida familiar) ou conviver em união estável com outra pessoa.  Constituiu concubinato adulterino a relação entretida pelo falecido com a autora, pois ele mantinha vida conjugal com a esposa. (Apelação Cível Nº 70063902027, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 29/04/2015)

O relacionamento afetivo da apelante com o seu amado não se enquadra no conceito de união estável, visto que o princípio da monogamia, que rege as relações afetivas familiares, impede o reconhecimento jurídico de um relacionamento afetivo paralelo ao casamento.  (TJMG –  Apelação Cível  1.0183.12.015480-6/001, Relator(a): Des.(a) Fernando Caldeira Brant , 5ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 05/06/2014, publicação da súmula em 16/06/2014)

Mas pergunta-se: E quanto às escrituras lavradas para reconhecimento das relações simultâneas ou poliafetivas. São elas válidas juridicamente?

Eis trecho de uma escritura que visa o reconhecimento destes tipos de relação: “Os declarantes, diante da lacuna legal no reconhecimento desse modelo de união afetiva múltipla e simultânea, intentam estabelecer as regras para garantia de seus direitos e deveres, pretendendo vê-las reconhecidas e respeitadas social, econômica e juridicamente, em caso de questionamentos ou litígios surgidos entre si ou com terceiros, tendo por base os princípios constitucionais da liberdade, dignidade e igualdade.”

Contudo, apesar da declaração de vontade dos integrantes destas relações poliafetivas, a escritura lavrada é nula. Como já falado anteriormente, as relações afetivas múltiplas afrontam diretamente a legislação pátria, não há como em ato notarial e/ou registral ver-se reconhecida tal relação.

José Fernando Simão[2] sustenta:

“… não seria necessário profundo estudo para se perceber a nulidade absoluta do instrumento lavrado. A escritura, se cuidasse apenas de sociedade de fato entre três pessoas, sem qualquer repercussão para o direito de família, mas apenas com aspectos obrigacionais, nenhum problema jurídico teria. Então fica uma pergunta a ser respondida: qual a consequência prática de se lavrar uma escritura evidentemente nula? Notemos o que diz a tabeliã que lavrou a escritura em questão para podermos responder o questionamento: “Se essa família tiver um filho, como funcionaria o registro? Essas questões terão que ser decididas pela Justiça. Assim também foi com os casais homoafetivos, que tiveram que brigar muito para que dois homens ou duas mulheres conseguissem colocar seus nomes numa certidão de nascimento.”

Há poucas semanas a Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), recomendou a proibição de novas escrituras públicas de reconhecimento de uniões civis entre mais de duas pessoas. O pedido é resultado de uma representação judicial da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS), que solicitou a proibição de novas escrituras até que a matéria seja devidamente regulamentada.  A corregedora nacional de Justiça, ministra Nancy Andrighi, negou a liminar, mas, ainda assim, sugeriu aos cartórios do país que aguardem a conclusão do estudo sobre o caso no CNJ para lavrarem novas escrituras.[3]

Certamente, a cada dia mais, caminhamos rumo a não interferência estatal nas relações afetivas. Isto demandará uma preparação muito maior dos envolvidos. É claro que a repercussão das relações múltiplas não é tão somente “emotiva”. As conseqüências econômicas e paterno/materno-filial são temas a serem profundamente debatidos, sob pena de, buscando amparar relações que hoje são marginalizadas, desamparar aqueles que despreparadamente e inconsequentemente aderiram aos “amores livres”.


Notas e Referências:

[1] Indico a leitura do artigo POLIGAMIA, CASAMENTO HOMOAFETIVO, ESCRITURA PÚBLICA E DANO SOCIAL: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA do autor José Fernando Simão.

[2] POLIGAMIA, CASAMENTO HOMOAFETIVO, ESCRITURA PÚBLICA E DANO SOCIAL: UMA REFLEXÃO NECESSÁRIA? PARTE 4. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/poligamia-casamento-homoafetivo-escritura-publica-e-dano-social-uma-reflexao-necessaria–parte-4/10583.

[3] Disponível em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/82221-corregedoria-analisa-regulamentacao-do-registro-de-unioes-poliafetivas


Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes. Fernanda Sell de Souto Goulart Fernandes é graduada em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí (2002) e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2005). Doutoranda pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente é professora do Instituto Catarinense de Pós Graduação, advogada pela Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina e professora da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.


Imagem Ilustrativa do Post: love love // Foto de: Camdiluv ♥ // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/camdiluv/4438886665

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura