Falando em gênero

31/10/2015

Por Joice Graciele Nielsson - 31/10/2015

Que o gênero é uma questão cultural passou a ser um dos temas menos divergentes no seio do pensamento teórico (feminista ou não, de esquerda ou não), exceto, é claro, no âmbito de um velho e teimoso neoconservadorismo. Esta era uma certeza (elas existem?) que acompanhava boa parte dos que se dispõe a estudar o tema, até que acontecimentos recentes no Brasil colocaram em cheque esta impressão. Não, é claro, aquela que a firma o gênero como uma construção cultural, mas aquela que pensava ser esta afirmação fonte de pouca divergência no pensamento teórico. E mesmo não sendo no seio do pensamento teórico, o quão longe este está daquilo que a maioria das pessoas (o tão fadado senso comum) pensam (ou não pensam) sobre o gênero, são inquietações que merecem reflexão.

Descobrir o caráter cultural do gênero foi libertador (para homens e mulheres), pois possibilitou uma ruptura no rígido vínculo estruturado entre biologia e forma de vida (sim, as pessoas nascem com uma genitália, como reafirmava uma estudante do ENEM nas redes sociais pós-prova, mas não por isso elas tem, necessariamente que cumprir com papéis sociais e lugares pré-estabelecidos no mundo, como apanhar de seus namorados, ou deixar de usar mini-saia para não merecer um estupro). Desde o “não se nasce mulher, torna-se”, com que Simone de Beauvoir abriu novas expectativas ao pensamento e à pratica feministas, o gênero passou a ser um objeto a ser compreendido e desconstruído enquanto responsável pela exclusão e subordinação femininas. A grande possibilidade representada pelo gênero, é que, enquanto construção social e não essência absoluta (elas existem?), este pode, deve e precisa ser des-re-construído. E esta des-re-construção pode e deve se dar não só com o feminino (Ei menina, você não precisa ser uma princesa à espera da chegada do seu príncipe para ser feliz; você não merece nem precisa sofrer ou aceitar violência para ter a atenção do príncipe, que a estas alturas já virou sapo...) mas também com o masculino (Ei menino, você não precisa bater em mulher pra provar sua masculinidade; você não precisa estuprar uma mulher pra dar vazão a seu ‘instinto’; você pode brincar de boneca porque, afinal, você poderá ser pai um dia), ou com todas infinitas possibilidades de construção que a relação sexo-gênero possa representar para cada pessoa.

A partir do gênero, enquanto categoria útil de análise, conforme Scott, pudemos buscar genealogias destas construções culturais em diferentes contextos, e analisamos o modo como se elabora, inscreve ou descontrói essa construção ao longo do tempo. No entanto, como afirma Carmen González-Marín, o mistério do gênero – não o mistério do eterno feminino, mas sim da atribuição e da autoatribuição do gênero – permanece intacto: embora seja a couraça que, mergulhada em um determinismo biológico molda as mulheres, e aos homens, não é uma couraça necessária. Então, porque, dado que ninguém nasce mulher, há tantas mulheres?

Ocorre que o grande relato de gênero, (Gonzálles-Marín), esta boa nova que a todos/todas liberta dos discursos que se sustentam sobre a moralização da natureza, foi lido de diversas maneiras em diferentes momentos. Iniciou pela percepção evidente de que o gênero, o feminino ao menos, não era algo eletivo, mas pertencia a um marco normativo (heteronormativo), que obedecia a processos de normalização de condutas e corpos sob a égide do patriarcado (ou patriarcalismo = patriarcado + capitalismo, como afirmava Joaquim Herrera Flores). O feminino, segundo Marcia Tiburi passa a ser um sistema simbólico, cujas teias bem armadas estão inscritas em estruturas narrativas que transmitem o discurso ideológico da dominação patriarcal, na qual deve se deitar o corpo morto (mera vida) de toda mulher reduzida a seu próprio sexo. Assim, as mulheres seguirão sendo mulheres, a menos que se rompa com o marco heteronormativo de nossa sociedade, o que expõe seu caráter político e mais do que tudo, sua vinculação com o poder, afinal, Scott já afirmava, gênero é sim uma maneira primária de significar relações de poder e um campo primordial onde o poder se articula. Não apenas o grande poder soberano do Estado Leviatã, mas, já aprendemos com Foucault, o poder in fluxo, aquele nem fixo nem localizado numa pessoa ou instituição, que se organiza segundo o campo de forças estabelecido em cada relação humana, como por exemplo no namoro, no casamento e na família.

Se descobrir o caráter construído do gênero, independente de outras considerações foi um passo radical, um segundo, representado pela performatividade (do gênero e do sexo) de Judith Butler merece destaque. Converter o gênero e o sexo em performativos é conferir a eles um status convencional, isto é, não natural, conduzindo ao importante aporte teórico de Butler e da teoria queer no sentido de demonstrar a debilidade de uma tese metafísica a respeito da identidade (precisamos mesmo dela?) e abrindo um novo horizonte ao permitir o rompimento com a eterna dicotomia igualdade-diferença. O queer aponta, na realidade, para uma zona de indiferenciação, afastando definitivamente a necessidade de justificar um status político ou a concessão de direitos sobre algum tipo de fundamentação ontológica ou de outra índole.

O grande relato de gênero poderia ter terminado aqui. Mas não é assim, e no mais das vezes, tudo volta a (re)começar , ou melhor, nada terminou quando passamos a considerar o corpo/gênero um objeto político. E isto fica evidente quando nossa sociedade (alguns, minoria, esperamos) considera ‘doutrinação de esquerda’ (Ei! machismo existe na esquerda, na direita, no meio, no lado, em qualquer lugar, vide o que as contribuições de feministas liberais como Martha Nussbaum e Susan Okin tem a nos oferecer) ou ‘doutrinação marxista (Ei!!! Marx feminista?? Desde quando?) ou propagação da ‘ideologia’ de gênero (das ideologias a mais perigosa não é justamente aquela que propaga a neutralidade do status quo?), ou uma cruzada contra a ‘família normal’ (qual família, qual lar? Aquela na qual é ‘normal’ os filhos presenciarem toda sorte de violência contra a mulher? aliás, o que estas crianças reproduzirão em sociedade?) Ou quando discutir violência contra a mulher não é considerado relevante porque, mulheres morrem menos que os homens (mortes de mulheres, por serem mulheres importam menos?).

Na verdade, pra falar de novo com Foucault, começamos a perceber que a condição do indivíduo considerado como corpo deve ser entendida como biopolítica, e, como afirma Beatriz Preciado, todos somos animais biopolíticos. Com o gênero não poderia ser diferente, e é em termos biopolíticos e não puramente políticos que o gênero e o corpo devem ser compreendidos, pressupondo a tomada de consciência da administração da vida dos indivíduos humanos por parte de um poder que não permite descrições abstratas, mas administra a vida concreta das pessoas. Nesta perspectiva, por exemplo, precisaríamos repensar a grande bandeira libertadora “O pessoal é político”. Sob a sombra do biopoder não tem sentido fazer político o pessoal, posto que o pessoal já é uma construção biopolítica. E sob a sombra da biopolítica as mulheres e os homens (não aquelas que nascem, mas aquelas que tornam-se) vão continuar tornando-se, e a violência vai continuar sendo seu corolário inexorável.

Diante disso, o que nos resta? Falar de gênero. O caminho possível na superação da violência contra a mulher, da violência de gênero e, sim, da violência em toda a sociedade pressupõe falar, construir, des-re-construir os gêneros, e neste, a oportunidade representada pelo ENEM, foi única e emblemática, e nos enche de esperanças de que a construção de relações humanas mais justas é sim possível.


Joice Graciele Nielsson

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Joice Graciele Nielsson é Doutoranda em Direito UNISINOS/FURB, Mestre em Desenvolvimento e Direitos Humanos UNIJUI, Advogada, Professora do Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIJUÍ.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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