Extermínio da juventude na Amazônia paraense: porque (ainda) falar disso?  

05/05/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

“Não era como um quadro sem moldura. Era como a moldura de inúmeros quadros. Como quadros de uma fita de cinema. Vidas de luta e de coragem. De miséria também“ (Jorge Amado, in Capitães de Areia).

A Constituição Brasileira, desde 1988, fez firme opção pela doutrina da proteção integral a crianças, adolescentes e jovens, o que depois foi confirmado no ordenamento brasileiro como o paradigma que deve nortear qualquer política pública voltada a crianças, adolescentes e, desde 2010 ante a Emenda Constitucional n. 65, também a jovens.

Contudo, a ameaça à vida nasce no contexto das relações de poder que se estabelecem entre pessoas e, ao se voltar contra tais sujeitos de direitos, assume contornos mais graves e perversos, revelando um pano de fundo de pobreza e exclusão. Evidente é o panorama das circunstâncias em que se expressam, sendo que os dados estatísticos revelam alarmante recorte dessa violência contra uma parcela específica dessa população, em peculiar estágio de seu desenvolvimento.

A atenção ao tema da proteção à vida digna, com absoluta prioridade, a estes sujeitos data de muitas décadas, sendo muito anterior aos marcos normativos vigentes, contudo cada novo estudo sobre o tema ainda se revela atual e surpreendente. Assim, em breve olhar sobre os dados, nos propomos a refletir qual a relevância de debruçarmo-nos recorrentemente, de variados locais de fala, sobre o complexo fenômeno que tem ferido mortalmente a esperança de futuro melhor para inúmeros jovens na Amazônia paraense. 

 

Observando alguns números...

Desde 2012, a taxa de homicídios de adolescentes no Brasil é mais alta do que a da população em geral. Ou seja: hoje é mais arriscado ser um adolescente do que um adulto. Apesar de mudanças qualitativas em algumas áreas como na saúde (a redução da mortalidade infantil e ampliação das ações de prevenção) e na educação (a universalização do atendimento), há ainda um vasto contingente de crianças, adolescentes e jovens que vivem sob o risco de perderem suas vidas, em geral numa relação de dominação e força.

A violência letal intencional tem apresentado uma tendência de crescimento acentuada no país desde meados da década de 1980. A taxa de mortes por agressão por 100 mil habitantes aumentou de 11,7, em 1980, para 28,3, em 2003. Houve uma leve redução até 2012, quando voltou a crescer até atingir o maior patamar da série histórica: 29,4 vítimas para cada 100 mil habitantes em 2014. Isto é, a taxa dos adolescentes foi menor do que a taxa da população total até 2012, quando houve uma inversão. Esse resultado é alarmante, pois revela que a incidência da violência contra os adolescentes tem se agravado no Brasil tanto em termos absolutos quanto relativos a outras faixas de idade, dados do Índice de Homicídio na Adolescência (IHA/2014), obtidos em Melo e Cano (2014).

O índice geral de letalidade verificado pelo IHA para os 300 municípios com população acima de 100 mil habitantes, em 2014, é 3,65. Isso significa que, para cada 1.000 adolescentes que completam 12 anos, 3,65 morrem vítimas de homicídio antes de chegar aos 19, ou seja, ao longo do ciclo vital da adolescência. Este valor é elevado, considerando que uma sociedade não violenta deveria apresentar valores não muito distantes do 0 e, certamente, inferiores a 1. Por outro lado, é mais preocupante ainda se observarmos que houve um aumento em relação a 2013 e que o valor de 2014 é o maior da série desde que começou a ser monitorado em 2005. Essa alta incidência de violência letal significa que, se as circunstâncias que prevaleciam em 2014 não mudarem, aproximadamente 43.000 adolescentes serão vítimas de homicídio no Brasil entre 2015 e 2021, apenas nos municípios com mais de 100.000 habitantes.

A realidade é inaceitável: a cada dia, 31 meninas e meninos de 10 a 19 anos são vítimas de homicídio no País[1]. Em 2015, foram mais de 10 mil meninos mortos no Brasil – mais que todos os meninos mortos na Síria no mesmo ano. Entre 1995 e 2005, a redução da mortalidade infantil permitiu que o País salvasse 239 mil crianças e, na sequência, de 2006 a 2015, cerca de 100 mil adolescentes foram vítimas de homicídios: muitos deixaram de morrer por causas evitáveis, mas grande parte não chegou à idade adulta.

Segundo dados da Fundação ABRINQ (2019), mais de 63,7 mil mortes por homicídios foram notificadas durante o ano de 2017 no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Destes, 11,7 mil foram cometidos contra crianças e adolescentes entre zero e 19 anos de idade. As Metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecem a diminuição em um terço do número total de homicídios até 2030, contudo nota-se no Brasil um crescimento anual alarmante desses índices.

Outros tristes números nos apresenta o Atlas da Violência 2019, segundo o qual o índice de homicídios no Estado do Pará aumentou em 108,5% em 10 anos (2007-2017) , sendo que destes, a taxa de homicídios de jovens (entre 14 e 29 anos), somente em 2017, foi de 105,3 (por 100mil habitantes), sendo o 8º no ranking nacional e estando muito acima da média nacional (69,9). Observamos que a taxa de homicídios de jovens aumentou em 94% nesse período.                 

E o perfil dessas mortes faz pensar: são, em sua maioria, meninos negros que vivem nas periferias dos grandes centros e vêm de famílias com baixo poder aquisitivo, além de pouco ou nenhum acesso à escolarização formal e empregabilidade. Suas trajetórias têm muitos pontos em comum. A vida desses adolescentes é marcada, desde cedo, por violações de direitos, incluindo a discriminação racial e violências institucionais.            

Rômulo Morais (2019, p. 64) nos provoca a reflexão de que

Precisamos nos indagar para saber até que ponto as políticas públicas e os direitos humanos reivindicados para atuarem em contraposição à violência sofrida por essa juventude não reforçam as subjetividades moralistas, normalizadoras e criminalizadoras, que tomam como referências as formas de ser hegemônicas no capitalismo e na estrutura sociorracial brasileira, desconsiderando todos os modos de existência ou outras estéticas de existência que escapam a essas subjetividades.

Verificamos que, seguindo a taxa nacional, a criminalidade violenta vem sendo fortemente relacionada ao sexo masculino e ao grupo etário dos jovens de 15 a 29 anos. Observando especificamente o grupo dos homens jovens, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes chega a 195,6 somente em 2017.Também conforme Anuário de Segurança Pública (2019), houve um aumento de 230% de mortes violentas intencionais no Estado do Pará entre 2011 e 2018.

Ainda, os estados da Amazônia Brasileira, como o é o Pará, seriam um daqueles com sangrenta disputa de poder e território entre diferentes organizações criminosas, notadamente as famigeradas facções. Assim, ainda que sejam oficialmente apresentadas pelas estatísticas ofíciais algumas reduções mais pontuais de um ano a outro, constante são os patamares muito altos de homicídio. Assim como, cada vez mais banalizadas, mas sempre aterrorizantes, são as notícias de assassinatos cruéis e violentos de adolescentes em contextos dessas disputas de facções.[2]

Importante observar ainda que o Pará figura como terceiro no ranking nacional de registros de mortes decorrentes de intervenções policiais, com taxa de 72,9% .  Destaca-se que dentre os 9 estados com as maiores proporções de mortes pela polícia, o Pará foi o único que não registrou redução alguma. Nesse ínterim, o povo observa atemorizado a relação entre tais indíces de violências, haja vista que, como observa o Promotor de Justiça Estadual, Dr. Armando Brasil, em entrevista à imprensa local sobre massacre ocorrido em Altamira em 2019:

Toda vez que as facções se digladiam, as milícias se aproveitam do vácuo e ganham mais força. E esses grupos já perceberam que a venda de drogas é altamente lucrativa”, avalia o promotor. “Talvez só o Rio de Janeiro sofra mais com os milicianos do que nós.[3]

Inquietante é observar que os aspectos ligados ao fenômeno do extermínio da juventude marginalizada têm contornos mais agressivos e letais que guerras e mesmo pandemias e desastres naturais. Ainda nesse ano de 2020, com tanto luto ocasionado pelo COVID-19 em todo globo, muitas mães paraenses ainda precisam se expor ao risco de deslocamentos de emergência por temerem mais perder seus filhos e suas filhas para as armas das facções ou milícias que para tão letal vírus.

 

E assim...

Pode-se, pois, aferir que por detrás de situações de ameaça à vida de crianças, adolescentes e jovens, existe invariavelmente um cenário de ausência de políticas públicas de proteção a esses sujeitos que vai de encontro ao preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Carta Magna de 88, instrumentos basilares na construção de um Estado Democrático de Direito, expressões de um processo de luta da sociedade brasileira.

O contexto de violação de direitos de crianças, adolescentes e jovens aponta para uma necessidade urgente de ação do Estado, assim como da sociedade em geral, que possa implementar políticas e ações para efetividade desses direitos fundamentais, capazes de romper com esse ciclo de violência e vitimização tão grave que extingue vidas de forma brutal, violando todos os princípios afirmativos do Estado Brasileiro e das compreensões mais básicas de humanidade.

As estatísticas parecem chacoalhar o senso comum de que o problema de crianças, adolescentes e jovens está adstrito à família ou à vida privada: se consideramos de longa data as reflexões sobre os temas, os números nos apontam que mudar tal fenômeno social arraigado na sociedade brasileira é empreendimento que demanda ainda mais esforços.

Nesse contexto, o Estado do Pará, historicamente tão marcado por grandes violações de Direitos Humanos, necessita de respostas urgentes e eficazes para que nossas crianças e jovens possam usufruir o direito de viver com dignidade e com capacidade de exercício dos seus direitos.

É preciso, ainda, continuar avançando nas reflexões sobre os mecanismos de extermínio da juventude vulnerabilizada de modo a identificar nas práticas cotidianas as raízes histórico-sociais dos discursos legitimantes de tantas mortes e violência. Urge descontruir tais discursos letais, especialmente quando legitimadores de ações e políticas públicas, e (re)construir um (novo) ideário coletivo efetivamente valorizador da vida de todas as crianças, adolescentes e jovens que compõem a real diversidade social da Amazônia paraense.

 

Notas e Referências

ABRINQ, Fundação. Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2019. São Paulo: FADC, 2019.

CERQUEIRA, D., FERREIRA, H., LIMA, R. S. et all. Atlas da violência 2019. Brasília: IPEA, 2019.

BRUM, Eliane. A cidade que mata o futuro: em 2020, Altamira enfrenta um aumento avassalador de suicídios de adolescentes. IN: https://brasil.elpais.com/sociedade/2020-04-27/a-cidade-que-mata-o-futuro-em-2020-altamira-enfrenta-um-aumento-avassalador-de-suicidios-de-adolescentes.html?ssm=whatsapp. Consultado em 30/04/2020, 21h.

MELO, D. L. B., & CANO, I. Índice de homicídios na adolescência: IHA 2014. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2017.

MORAIS, Romulo. O Extermínio da Juventude Negra: uma análise sobre os discursos que matam. 1ed. Rio de Janeiro: Revan, 2019.

[1] Estimativa do UNICEF baseada no Datasus 2016.

[2]http://noticiasdeparauapebas.com/faccao-criminosa-da-capital-comeca-a-recrutar-adolescentes-em-parauapebas-diz-mae-de-um-dos-jovens/; https://www.romanews.com.br/cidade/corpo-de-adolescente-e-encontrado-no-rio-parauapebas-video-da-morte/74979/

[3]https://veja.abril.com.br/brasil/guerra-entre-faccoes-no-para-favorece-expansao-da-milicia-diz-procurador/

 

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