Exploração do trabalho escravo e tráfico de seres humanos – A face desconhecida do crime organizado – Por Ricardo Antonio Andreucci

02/06/2016

O comércio de pessoas constitui uma das atividades mais aberrantes e hediondas da atualidade, traduzindo uma face ainda pouco conhecida do crime organizado. Efetivamente, fenômenos modernos como a globalização econômica, os progressos da ciência, da medicina e da tecnologia, além de outros admiráveis frutos da inteligência humana, não conseguiram, até o presente momento, extirpar de nossa sociedade o cancro da escravidão humana e da mercancia de seres humanos.

É neste cenário deplorável que o Brasil, ao lado de diversos outros países na Ásia, América do Sul, África, Europa, tem no tráfico de seres humanos o maior exemplo de violação dos direitos humanos básicos, sendo a escravidão contemporânea, sem dúvida, um de seus aspectos mais preocupantes, uma vez que se caracteriza pela clandestinidade, autoritarismo, corrupção, segregação social e racismo.

O tráfico de pessoas acontece em grande parte dos países do mundo: dentro de um mesmo país, entre países fronteiriços e até entre diferentes continentes. Historicamente, o tráfico internacional acontecia a partir do hemisfério Norte em direção ao Sul, de países mais ricos para os menos desenvolvidos. Atualmente, no entanto, acontece em todas as direções: do Sul para o Norte, do Norte para o Sul, do Leste para o Oeste e do Oeste para o Leste. Com o processo cada vez mais acelerado da globalização, um mesmo país pode ser o ponto de partida,de chegada ou servir de ligação entre outras nações no tráfico de pessoas.

O grande desafio deste século, sem dúvida, é a eliminação do trabalho escravo, como vertente econômica do tráfico de seres humanos, condição básica para a sobrevivência do estado democrático de Direito.

No âmbito internacional, em 2005, com a publicação do relatório “Uma Aliança Global Contra o Trabalho Forçado”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que aproximadamente 2,4 milhões de pessoas foram traficadas em todo o mundo, 43% das quais destinadas à exploração sexual, e 32% destinadas a outros tipos de exploração econômica. No Brasil, já foram mapeadas mais de 240 rotas de tráfico interno e internacional de crianças, adolescentes e mulheres brasileiras, provenientes de todos os estados, sem distinção.

De acordo com este relatório, segundo ressalta o manual sobre Tráfico de Pessoas para fins de Exploração Sexual (produzido pela Subsecretaria de Direitos Humanos da Secretaria-Geral da Presidência da República e da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, em parceria com o Ministério da Justiça - por meio da Secretaria Nacional de Justiça, Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Departamento de Polícia Federal e da Academia Nacional de Polícia, com o Ministério Público Federal – por meio da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, e com a Organização Internacional do Trabalho e o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime) o lucro total anual produzido com o tráfico de seres humanos chega a 31,6 bilhões de dólares. Os países industrializados respondem por metade dessa soma (15,5 bilhões de dólares), ficando o resto com Ásia (9,7 bilhões de dólares), países do Leste Europeu (3,4 bilhões de dólares), Oriente Médio (1,5 bilhão de dólares), América Latina (1,3 bilhão de dólares) e África subsaariana (159 milhões de dólares). Estima-se que o lucro das redes criminosas com o trabalho de cada ser humano transportado ilegalmente de um país para outro chegue a 13 mil dólares por ano, podendo chegar a 30 mil dólares no tráfico internacional, segundo estimativas do escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) O tráfico aumentou drasticamente na Europa desde a queda do Muro de Berlim, em 1989. Segundo estimativas do Instituto Europeu para o Controle e Prevenção do Crime, cerca de 500 mil pessoas são levadas por traficantes todo ano para o continente. Os principais países de destino estão localizados na Europa Ocidental: Espanha, Bélgica, Alemanha, Holanda, Itália, Reino Unido, Portugal, Suíça, Suécia, Noruega e Dinamarca. A maioria das mulheres traficadas vem de regiões do Leste Europeu (Rússia, Ucrânia, Albânia, Kosovo, República Tcheca e Polônia), mas também do Sudeste Asiático (Filipinas e Tailândia), África (Gana, Nigéria e Marrocos) e América Latina, especialmente Brasil, Colômbia, Equador e República Dominicana.

O tráfico de pessoas é uma atividade de baixos riscos e altos lucros. As mulheres traficadas podem entrar nos países com visto de turista e as atividades ilícitas são facilmente camufladas em atividades legais, como o agenciamento de modelos, babás, garçonetes, dançarinas ou, ainda, mediante a atuação de agências de casamentos. Onde existem, as leis são raramente usadas e as penas aplicadas não são proporcionais aos crimes. Traficantes de drogas recebem, em regra, penas mais altas do que as dadas para aqueles que comercializam seres humanos.

Da “Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional”, denominada “Convenção de Palermo”, resultou o texto do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, ratificado pelo Brasil em 29 de janeiro de 2004, integrando a legislação brasileira pela promulgação do Decreto n° 5.017, de 12 de março de 2004.

No Brasil, uma das demonstrações mais efetivas da vontade política de erradicação de todas as formas de escravidão contemporânea, foi o lançamento do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, em 2002, que apresentou medidas a serem cumpridas pelos diversos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, Ministério Público e entidades da sociedade civil brasileira.

Em 2007, o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) realizou em Brasília o Seminário Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, justamente com a finalidade de discutir políticas e formas de implementação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP), em observância à determinação contida no Decreto Presidencial n° 5.948, de 26 de outubro de 2006.

Como bem observado neste seminário, o Brasil, embora singelamente, já criminaliza algumas condutas relacionadas ao tráfico interno e internacional de pessoas, embora dando a esse fenômeno, como se depreende da redação dos arts. 231 e 231-A do Código Penal, tratamento eminentemente relacionado à exploração sexual.

No dia 8 de janeiro de 2008, o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi aprovado pelo Decreto n° 6.347, ficando estabelecidas prioridades atinentes às ações de enfrentamento ao tráfico de pessoas e crimes correlatos, dentre as quais o aperfeiçoamento da legislação brasileira quanto à matéria, discriminada na prioridade n° 6 do anexo do referido Decreto.

Assim, o tráfico de seres humanos na modalidade escravidão se revela como uma das realidades mais aviltantes da condição humana, despontando, atualmente, como um dos tentáculos do crime organizado.

Representa uma nova forma de escravatura (escravidão contemporânea) que atenta contra os mais elementares princípios de dignidade humana, emergindo de situações relacionadas com a violação dos Direitos Humanos, com o crime organizado, a discriminação, a imigração, a pobreza, as assimetrias entre países mais desenvolvidos e outros mais empobrecidos, dentre outras.

Trata-se de um problema de magnitude mundial, que exige compromissos e soluções concertadas, constituindo um dos grandes desafios da sociedade globalizada.

A comunidade internacional deve ser chamada à responsabilidade, devendo assumir um papel cada vez mais ativo no combate a este flagelo, uma vez que, apesar de vários estudos indicarem que o fenômeno do tráfico de pessoas está aumentando, esta constatação não tem sido acompanhada de um aumento significativo do nível de conhecimentos que a comunidade científica, as autoridades policiais e os governantes têm sobre ele, o que dificulta a procura de soluções para o problema.

Essa nociva atividade tem sido, no mais das vezes, desenvolvida clandestinamente, o que dificulta sobremaneira a detecção e punição, ainda mais quando praticada por organizações criminosas altamente especializadas e articuladas. Mas há também os casos de conivência de comunidades internacionais, que exploram e se locupletam indevidamente do trabalho escravo como forma de incremento de suas economias. Para esses casos, os instrumentos legais nem sempre permitem respostas eficazes.

É necessária, pois, a par da conscientização da sociedade globalizada sobre este grave problema que aflige a humanidade, a criação de mecanismos eficazes de combate a esta prática criminosa organizada e hedionda, não somente através de efetivas sanções econômicas, levadas a cabo através de penalidades já largamente utilizadas em situações de embargos, como também, e principalmente, pela implementação, em nível transnacional, de instrumentos penais que permitam respostas eficazes de cunho punitivo e coercitivo, não apenas aos autores, pessoas naturais ou jurídicas, como também a todos aqueles que, de maneira direta ou indireta, são incentivadores da escravização humana.


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Imagem Ilustrativa do Post: Slavery in chains // Foto de: Gustavo La Rotta Amaya // Sem alterações

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