EXISTE ÉTICA NA DELAÇÃO PREMIADA?

08/11/2019

Coluna Isso Posto / Coordenadores Ana Paula Couto e Marco Couto

A delação premiada ganhou fama nos últimos tempos por conta dos processos que envolvem políticos e empresários famosos. Atualmente, é muito difícil assistir a algum telejornal, independentemente da emissora que o veicule, sem ver o tema abordado. O noticiário impresso também trata do assunto diariamente. Nas universidades, quando o tema é referido em sala de aula, não faltam interesse e indagações por partes dos alunos, muitos deles com opinião formada à luz do que é veiculado pela imprensa.

É diante desse panorama que a doutrina trata do aspecto ético da delação premiada, ora criticando de forma veemente a opção feita pelo legislador, ora enxergando em tal instituto a única saída para o esclarecimento de crimes cuja prática se mostra de acentuada complexidade.

No Brasil, dentre vários autores, de maneira enfática, Eugênio Pacelli[1] explicita o seu ponto de vista favorável à aceitação ética do instituto da delação premiada, da seguinte maneira: A delação, a traição ou qualquer expressão que pretenda traduzir o ato de revelação da estrutura da organização criminosa, de seus autores e o modo de funcionamento, ou, ainda, as informações acerca da localização da vítima e do produto ou proveito de ações criminosas, nada disso vai de encontro a qualquer conceito de ética. A menos, é claro, que se passe a ideia de que a ética há de ser determinada pelo grau de lealdade entre partícipes de determinado empreendimento. Mas, aí, afastado de qualquer vinculação à moralidade, referido conceito não servirá para mais nada.

De outro lado, igualmente acompanhado por vários autores, o penalista Damásio Evangelista de Jesus[2], por sua vez, já teve a oportunidade de se manifestar de forma radicalmente contrária à delação premiada, inclusive destacando que tal instituto não é didático, com as seguintes palavras: Ocorre que o delator sabe que, descoberta a traição, fatalmente será executado pelos comparsas ou, se preso, pelos companheiros de cela, que não suportam traidores. E a norma não é pedagógica: ela ensina que trair traz benefícios.

Para prestigiar autores estrangeiros que tratam do tema, não custa lembrar que, de forma contrária ao instituto, se manifestou o italiano Luigi Ferrajoli[3], criticando a opção legislativa feita em seu país de origem de forma bastante veemente. Vale a transcrição: O legislador italiano, sugestionado pelos aspectos decadentes da experiência americana, seguiu, ao invés, a estrada oposta, legitimando a transação primeiro com as leis de emergência sobre os arrependidos e, depois, de maneira ainda mais extensa, com a recente reforma do Código de Processo Penal. O resultado é inevitavelmente a corrupção da jurisdição, a contaminação policialesca dos procedimentos e dos estilos de investigação e de juízo, e a consequente perda de legitimação política ou externa do Poder Judiciário.

Por sua vez, o alemão Rudolf Von Ihering[4] externou a sua opinião favorável ao instituto da delação premiada, ressaltando a sua utilidade prática, da seguinte maneira: Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade.

Radicalizando a sua sustentação favorável à delação premiada, Américo Bedê Jr. e Gustavo Senna[5] chegam a diagnosticar a chamada “síndrome de Alice”, nos seguintes termos: Essa postura preconceituosa e antidemocrática de certa parcela da doutrina revela um comportamento típico de quem foi acometido, pode-se dizer, pela “síndrome de Alice”, pois mais parece viver num “mundo de fantasia”, com um “direito penal da fantasia”, onde não existem homens que – de forma paradoxal – são movidos por verdadeiro descaso para com a vida humana; um mundo no qual não existem terroristas, nem organizações criminosas nacionais e internacionais a comprometer as estruturas dos próprios Estados e, por conseguinte, o bem-estar da coletividade e a sobrevivência humana.

Por sua vez, Marcos Paulo Dutra Santos[6], em excelente obra na qual aborda a delação premiada, esclarece que o delator atenta contra a legislação em vigor e, ao mesmo tempo, atenta contra os seus comparsas. Vale a transcrição: Aliás, o atuar do delator revela-se o mais repugnante de todos, pois, além de ter atentado contra a ordem jurídica e, por conseguinte, contra a sociedade, considerado o crime perpetrado, volta-se contra os próprios comparsas, protagonizando dupla traição: primeiramente, trai o pacto social que, enquanto cidadão, também assinou; em seguida, trai os corréus, violando o pacto criminoso que firmaram. E é justamente “premiado” com a menor punição.

Em estudo que realizamos para tratar especificamente do aspecto ético que envolve a delação premiada[7], tivemos a oportunidade de distinguir os autores pesquisados em dois grupos: em um primeiro grupo incluímos os autores favoráveis à delação premiada e, de outro lado, em um segundo grupo, incluímos os autores contrários à aplicação do mencionado instituto.

Dentre os autores que, sob o ponto de vista ético, são favoráveis à delação premiada, estão Guilherme de Souza Nucci, Eduardo Luiz Santos Cabette, Marcius Tadeu Maciel Nahur, Eugênio Pacelli, José Alexandre Marson Guidi, Cleber Masson, Vinícius Marçal, Rudolf Von Ihering, Victor Eduardo Rios Gonçalves, João Paulo Baltazar Junior, Américo Bedê Jr, Gustavo Senna, Walter Nunes da Silva Júnior, Nicolao Dino, Stephen Trott, Sergio Fernando Moro, Davi Teixeira de Azevedo, Fausto Martin De Sanctis, Cibele Benevides Guedes da Fonseca, Renato Brasileiro de Lima e Valdir Sznick.

De outro lado, dentre os autores que se posicionam de maneira contrária à delação premiada, sob o aspecto ético, estão Frederico Valdez Pereira, Damásio Evangelista de Jesus, Luigi Ferrajoli, Eugenio Raúl Zaffaroni, Winfried Hassemer, Marcos Paulo Dutra Santos, Rômulo de Andrade Moreira, Heráclito Antônio Mossin, Júlio César Mossin, Cesare Bonesana, Cezar Roberto Bitencourt e Paulo César Busato.

São essas as opiniões doutrinárias pesquisadas com o propósito de enriquecer o tema, não se podendo esquecer que a questão ética, por si só, apresenta grau de dificuldade elevado quanto à sua compreensão. Nesse contexto, definir se a conduta do delator, que entrega os seus companheiros de vida criminosa nas mãos da Justiça, é amparada pela ética não é simples. É justamente essa complexidade, facilmente perceptível quando são expostos tantos pontos de vista, que se pretende agora realçar, como forma de permitir que o leitor melhor possa refletir quanto ao mesmo.

 

Notas e Referências

[1] PACELLI, Eugênio. Atualização do Curso de Processo Penal. Comentários ao CPP. Lei 12.850/13. Disponível em www.eugenciopacelli.com.br. Acesso em: 01.11.2019.

[2] JESUS, Damásio Evangelista de. O prêmio à delação nos crimes hediondos. Boletim IBCCRIM, n° 5. São Paulo: IBCCRIM, 1993.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010, p. 561.

[4] IHERING, Rudolf Von. A luta pelo Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 73.

[5] BEDÊ JUNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 26-28.

[6] SANTOS, Marcos Paulo Dutra. Colaboração (delação) premiada. Bahia: JusPodivm, 2016, p 69.

[7] COUTO, Ana Paula; COUTO, Marco. (Há) Ética na delação premiada (?). In: Claudia Ribeiro Pereira Nunes; Cleyson de Moraes Mello; Leonardo Rabelo. (Org.). Diálogos em Direitos Humanos, Questões Regulatórias em Biotecnologia, Biodireito e Temas Interdisciplinares: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Pedro Diaz Peralta. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2018, v. 1, p. 293-304.

 

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