Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
O roteiro que dita como atuar nos palcos da Sociedade de Consumo também não é fruto do acaso. Ao que parece, ele foi minudentemente pensado pelo Mercado desde que percebeu que o desejo de ter, anteriormente descrito, ao corroer as almas e os corações dos homens e as condutas adotadas a fim de satisfazê-lo, são momentos raramente permeados por quaisquer decisões racionais. [...] qualquer rápido passeio pelo território desenhado no apontado mapa [...] permite notar incontáveis consumidores – e, antes disso, bilhões de seres humanos – entorpecidos por campanhas publicitárias construídas exatamente para promover a letargia dos sentidos. Hipnotizados pelo canto – quando não, também, pelo encanto provocado pelas feições, formas e trejeitos – das Sereias contemporâneas, impedidos de compreender quais as diferenças existentes entre a realidade e as representações projetadas pela Matrix, na qual todos somos personagens de um espetáculo – uma tragédia, é factível apontar – sem fim, aparentemente não há escolha a ser feita senão ceder às tentações do Mercado[1].
Abordou-se neste espaço, anteriormente[2], o quão difícil se revela efetivar o direito à informação na dinâmica imposta pelo Mercado de Consumo, movida diuturnamente pelo império da publicidade, em razão de obstáculos opostos pela própria essência da atividade publicitária, propagadora de mensagens que visam a encantar e estimular o desejo pelo consumo. Assim, para a consecução dos objetivos do Mercado, o discurso publicitário, incansavelmente, constrói-se reforçando o afastamento dos consumidores de ponderações racionais e minuciosas acerca das informações (às vezes) recebida[3].
Sobrevém, na via de dúvidas e perplexidades que se abre a partir da constatação de que a efetividade do direito à informação resulta significativamente comprometida pelo potencial de encantamento e subjugação do racional extraído das mensagens publicitárias, outro aspecto que merece atenção: o universo particular destinado à atividade publicitária direcionada ao público infantil.
O veículo mediante o qual produto destinado às crianças será a elas apresentado não é, aqui, o mais relevante[4]. O que releva apreciar, talvez especialmente, são as implicações decorrentes das estratégias esmiuçadamente pensadas e estudadas para atingir esse público – sabidamente mais frágil e mais suscetível aos apelos da publicidade[5]. Estratégias que serão utilizadas nas embalagens, outdoors, anúncios televisivos, dentre outros meios, e que são pensadas e estudadas para atrair especificamente a atenção das crianças para aquilo que está sendo ofertado, considerando, para tanto, características próprias dessa parcela da população, distintas daquelas encontradas no público adulto[6].
O produto concebido para ser consumido por crianças, assim, é comumente apresentado a esse nicho consumidor junto de elementos que apresentam forte compatibilidade com o imaginário infantil e, consequentemente, forte poderio de atração sobre crianças[7]. Elementos tais como personagens, linguajar infantil, estímulo à curiosidade, brincadeiras, jogos, dentre outros[8], engendrando um mundo divertido, de cores e magia, que se funde com o próprio produto e torna-se potencialmente percebido como se parte dele fosse[9].
Esse direcionamento específico, considerando as características do nicho que se dispõe a seduzir, de modo a reforçar a probabilidade de atingi-lo, é um dos trunfos da publicidade. E, quando o destinatário da mensagem é o público infantil, os efeitos decorrentes de tais estratégias, são potencializados. Afinal, a criança, por ser mais frágil, é mais suscetível à sedução do que aqueles que já não se encontram nesse estágio da vida e tende a acreditar, com mais facilidade, na magia extraída das mensagens publicitárias[10].
Considerando-se o panorama acima delineado – ainda que de forma breve, tendo em vista as limitações formais deste texto -, cotejando-o com as reflexões trazidas no texto elaborado anteriormente para essa coluna[11], questiona-se: Como se posiciona o direito (básico) à informação em tal contexto? Aliás, é possível que exista Direito à informação nesse universo particular? Ou, dito de outro modo: a criança, sabidamente mais frágil do que o adulto, é minimamente atingida e influenciada pelas informações, esclarecimentos, recomendações, advertências (nem sempre adequadamente) veiculadas acerca dos refrigerantes, biscoitos recheados altamente calóricos, sorvetes, doces em geral, a elas apresentados em contextos lúdicos, mágicos, com personagens, desenhos, cores – focando, aqui, apenas alguns exemplos extraídos da publicidade de alimentos?
Partindo-se da premissa de que crianças são seres em iminente desenvolvimento, incapazes, inclusive, de compreender o caráter persuasivo da publicidade, chega-se, talvez, a outro aspecto cuja análise leva à conclusão de que a utilização elementos infantis para atrair crianças ao consumo ofende o direito brasileiro: a constatação de que o direito à informação - e a sua concretização, representada por uma série de deveres impostos aos fornecedores, para que não descurem de iluminar, esclarecer, advertir, apoiando a escolha racional do consumidor - resulta absolutamente inócuo em um cenário no qual o público atingido não dispõe de capacidade para apreender adequadamente o conteúdo informativo do que lhe é ofertado e, assim, utilizá-lo como critério para sua discricionariedade.
Se é razoável afirmar que a adequação do anúncio, sob a ótica mercadológica, demanda que seu conteúdo se aproxime muito mais da ludicidade do que do fornecimento de informações, também mostra-se pertinente admitir que essa adequação exige distância da racionalidade potencialmente apta a inibir o consumo. É nesse cenário que o direito à informação assume uma especial relevância, porque possui, dentre suas facetas, a preocupação com a escolha racional do consumidor, possuindo o condão de mitigar o potencial persuasivo da publicidade.
Em relação à criança, contudo, aparentemente, tal preocupação não se revela prioridade.
O público infantil, de um lado, é destinatário dos elementos lúdicos especialmente pincelados por estratégias marketing capazes de dialogar com a criança e seduzi-la para o consumo, engendrando linguajar meticulosamente construído para ser perfeitamente compreendido por essa parcela da população, bombardeada diuturnamente pela magia e o encantamento que acompanham os anúncios publicitários. De outro, contudo, pode-se concluir, não é adequadamente (ou, sequer, minimamente) atingido pela tutela derivada do direito à informação, eis que os elementos informativos – com suas letras miúdas e sua função pragmática, sem o mesmo destaque e sem serem cobertas pela magia e ludicidade da publicidade - provavelmente, não serão apreendidos por esse público, sobre o qual não terá, tampouco, o condão de mitigar os efeitos persuasivos da publicidade.
À criança, assim, é destinada, com absoluta certeza, apenas a ilusão (e a sedução!) publicitária. Livre para desenvolver-se, a publicidade atinge-lhes, sem preocupar-se com os desagradáveis empecilhos potencialmente trazidos pelas amarras da racionalidade.
Nunca é demais ressaltar, contudo, que desde a Constituição Federal de 1988, o público infantil é destinatário de proteção denominada integral, a qual deve ser assegurada com absoluta prioridade. E que, ademais, o estágio de iminente desenvolvimento em que essa parcela da população se encontra – e as vulnerabilidades intrínsecas a essa condição – encontra-se mencionado no art. 6º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual exige que sua interpretação deve observar os interesses das crianças a partir da perspectiva de que são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. As crianças, portanto, foram distinguidas com direitos próprios, atentos às suas vulnerabilidades – aspectos que devem ser o ponto de partida para qualquer análise de práticas que lhes sejam potencialmente prejudiciais.
Sob a ótica aqui brevemente apresentada, portanto, pode-se, talvez, concluir, que a incompatibilidade da publicidade direcionada às crianças com a tutela especial com que foram distinguidas revela-se, também, na incompatibilidade intrínseca e inafastável que a prática apresenta com a tutela oriunda do direito básico à informação.
Notas e Referências
BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.
CATALAN, Marcos. O crédito consignado no Brasil: decifra-me ou te devoro. In: MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SCHWARTZ, Germano André Doederlein. O direito da sociedade: anuário, v.2. Canoas: Ed. Unilasalle, p.111-134, 2015.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2006.
KOTLER, Philip; ARMSTRONG, Gary. Fundamentos de marketing. 11.ed. Trad. Astrid Mues Zepeda. México: Pearson Educación, 2013.
INSTITUTO ALANA. Caderno legislativo: publicidade Infantil, análise dos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, 2016. Disponível em: http://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2014/02/caderno_legislativo.pdf. Acesso em: 20 dez. 2016.
LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole. 2007.
PITOL, Yasmine Uequed. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de sua (in)conformidade com o direito brasileiro. 2017. 160 f. Dissertação (mestrado em Direito) – Universidade La Salle, Canoas, 2017.
PITOL, Yasmine Uequed. Uma breve reflexão sobre a sedução publicitária, o direcionamento de seus encantos ao público infantil e o direito brasileiro. Empório do Direito, 2017. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/uma-breve-reflexao-sobre-a-seducao-publicitaria-o-direcionamento-de-seus-encantos-ao-publico-infantil-e-o-direito-brasileiro-por-yasmine-pitol>.
PITOL, Yasmine Uequed. A dificuldade de efetivar o direito à informação em meio ao império da publicidade: alguns apontamentos. Empório do Direito, 2018. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-dificuldade-de-efetivar-o-direito-a-informacao-em-meio-ao-imperio-da-publicidade-alguns-apontamentos>.
[1] CATALAN, Marcos. O crédito consignado no Brasil: decifra-me ou te devoro. In: MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SCHWARTZ, Germano André Doederlein. O direito da sociedade: anuário, v.2. Canoas: Ed. Unilasalle, p.111-134, 2015, p.111-112.
[2] PITOL, Yasmine Uequed. A dificuldade de efetivar o direito à informação em meio ao império da publicidade: alguns apontamentos. Empório do Direito, 2018. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/a-dificuldade-de-efetivar-o-direito-a-informacao-em-meio-ao-imperio-da-publicidade-alguns-apontamentos>
[3] Não por acaso, portanto, resulta que, na dinâmica vigente, ““[...] os indivíduos sequer têm condições de avaliar a razoabilidade de suas pretensões, distinguindo-as dos desejos desmesurados ou meramente utópicos” (LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole. 2007, p.8-9).”
[4] Inclusive porque o Mercado de Consumo, para a consecução de sua dominação, transforma qualquer espaço em espaço publicitário. (BARBER, Benjamin. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole cidadãos. Trad. Bruno Casoti. Rio de Janeiro: Record, 2009.).
[5] Conforme abordado em texto anteriormente elaborado para esta coluna (PITOL, Yasmine Uequed. Uma breve reflexão sobre a sedução publicitária, o direcionamento de seus encantos ao público infantil e o direito brasileiro. Empório do Direito, 2017. Disponível em: < https://emporiododireito.com.br/leitura/uma-breve-reflexao-sobre-a-seducao-publicitaria-o-direcionamento-de-seus-encantos-ao-publico-infantil-e-o-direito-brasileiro-por-yasmine-pitol>.
[6] A segmentação do mercado de consumo exige da publicidade essa atenção às características que distinguem os nichos consumidores, a fim de que os anúncios sejam elaborados de acordo com as peculiaridades do público que pretende atingir, conforme explica Lipovetsky (LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.).
[7] As diferenças existentes entre crianças e adultos influem nas estratégias utilizadas, as quais fazem uso de linguagens distintas para cada nicho, de acordo com suas características, conforme o exemplo de Kotler e Armstrong: “Algumas empresas utilizam a segmentação por idade e estágio do ciclo de vida, oferecendo diferentes produtos ou usando diferentes abordagens de marketing para diferentes idades e fases do ciclo de vida”.(KOTLER, Philip; ARMSTRONG, Gary. Fundamentos de marketing. 11.ed. Trad. Astrid Mues Zepeda. México: Pearson Educación, 2013. p.166, tradução nossa).
[8] Esse assunto é esmiuçadamente abordado em minha dissertação de mestrado: PITOL, Yasmine Uequed. A publicidade infantil na sociedade de consumo: uma análise empírica da publicidade e de sua (in)conformidade com o direito brasileiro. 2017. 160 f. Dissertação (mestrado em Direito) – Universidade La Salle, Canoas, 2017.
[9] Mormente se considerado que a publicidade é “antes consumida do que destinada a dirigir o consumo” (BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. Trad. Zulmira Ribeiro Tavares. São Paulo: Perspectiva, 2006).
[10] Conforme documento elaborado pelo Instituto Alana: “Resta, então, explícita a condição duplamente peculiar da criança frente aos apelos publicitários: (i) ela é vulnerável devido ao seu processo inconcluso de formação física e psíquica e (ii) não entende a publicidade como tal, ou seja, seu caráter persuasivo. Diante disso, o público infantil se revela alvo de fácil convencimento, pois não consegue lidar com a alta complexidade das estratégias empregadas pela publicidade em paridade de condições” (INSTITUTO ALANA. Caderno legislativo: publicidade Infantil, análise dos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, 2016. Disponível em: http://criancaeconsumo.org.br/wp-content/uploads/2014/02/caderno_legislativo.pdf. Acesso em: 20 dez. 2016, p.21).
[11] Mencionado na nota de rodapé n.1.
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