O Supremo Tribunal Federal está na iminência de pautar para julgamento o mérito das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nos 43 e 44, cujo objeto é o preconizado no artigo 283 do Código de Processo Penal[1], segundo o qual “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (destacou-se).
O aludido dispositivo teve redação dada pela Lei n° 12.403/11 e reproduz o disposto no artigo 5°, inciso LVII da Constituição Federal, de modo que foi aprovado pelo Parlamento, após consolidação do entendimento (prevalente de 2009 a 2016)[2] de que o trânsito em julgado da condenação era o marco inicial de cumprimento da pena.
No hodierno, como é consabido, não mais sobressai tal entendimento. Nesse sentido, diversos foram os argumentos utilizados para relativizar (ainda mais) a regra do estado de inocência. Naturalmente, a comunidade jurídica voltou a centrar-se na discussão sobre a (i)legitimidade da denominada execução provisória da pena.
O presente texto não tem como escopo analisar qualquer caso específico, tampouco refutar todos os argumentos utilizados pelo Pretório Excelso (o que seria impossível nesses limites), mas sim ilidir algumas opiniões[3] que se omitem, diante daqueles que seriam os principais argumentos para se admitir a execução antecipada da reprimenda: A suposta impossibilidade de rediscutir fatos e provas nos Tribunais Superiores e o excesso de recursos disponíveis.
Inicialmente é preciso estabelecer ao leitor que a Constituição Federal insculpiu em seu artigo 5°, inciso LVII a garantia da presunção de inocência ao dispor que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.
Em síntese, a teleologia do dispositivo não foi proibir a prisão de modo absoluto (afinal, tudo é relativo – diria Einstein -). Isso porque, havendo flagrante ou sendo a prisão imprescindível à garantia da ordem pública, econômica ou para assegurar a salutar tramitação do processo, sem prejuízo das demais exigências legais, é possível que a autoridade judiciária determine a prisão de alguém.
Em verdade, quis o constituinte delimitar que o marco para a formação de culpa é o trânsito em julgado da decisão condenatória, aqui entendido como o único sentido desse conceito jurídico: a passagem da sentença de mutável para imutável, ou simplesmente quando não cabe mais recurso.
Isso bem posto, percebe-se que não há falar numa divisão entre trânsito em julgado fático e jurídico, sob o argumento que alguns utilizam de que a ausência de efeito suspensivo dos Recursos Extraordinários (aos Tribunais Superiores), somada à vedação de (re)discutir os fatos nesses Tribunais seria permissivo à execução antecipada da pena.
Além de totalmente infundada - porquanto essa divisão não encontra supedâneo na lei ou na doutrina processual - é também um acinte à técnica jurídica. Explico: Ainda que admitíssemos a cisão do conceito de trânsito em julgado (em fático e jurídico), os Tribunais Superiores podem (e não raramente o fazem) absolver um réu penal em razão de matéria eminentemente jurídica.
Basta raciocinarmos um caso de furto em que se operou a prescrição e esta só foi reconhecida no STJ ou STF, ou mesmo hipótese em que se elidiu o crime em razão de aplicação de outro princípio comezinho no direito penal: o da insignificância. Ora, em ambas as hipóteses o indivíduo seria posto em liberdade, incontinenti, pelo reconhecimento de matéria jurídica.
Desse modo, salta aos olhos que eventual prisão anterior se traduziria em verdadeiro constrangimento ilegal, dada a impossibilidade de se cumprir pena por fato penal prescrito ou insignificante.
Alguém poderia argumentar que esses casos são excepcionais, o que não se concorda. De qualquer sorte, um dos principais atributos dos direitos fundamentais (e aqui está a presunção de inocência) é o seu papel contramajoritário, o que significa serem trunfos contra a maioria.
Nessa condição, não cabe ponderar direitos fundamentais com direitos de densidade larga, como a segurança pública, sob pena de sempre suprimir as garantias individuais.
Não é outro o entendimento da doutrina[4]:
Argumento recorrente em matéria penal é o de que os direitos individuais devem ceder (e, portanto, serem sacrificados) frente à “supremacia” do interesse público. É uma manipulação discursiva que faz um maniqueísmo grosseiro (senão interesseiro) para legitimar e pretender justificar o abuso de poder. Inicialmente, há que se compreender que tal reducionismo (público e privado) está completamente superado pela complexidade das relações sociais, que não comportam mais essa dualidade cartesiana. (LOPES JR., 2011, p. 11).
Noutras palavras, não cabe utilizar subterfúgio da impunidade ou a segurança pública, para diminuir o âmbito de incidência dos direitos fundamentais, conquistados a duras penas.
Para além disso, vale sempre lembrar dos ensinamentos da obra Direito e Razão[5], a respeito da opção democrática de se estatuir a garantia da presunção de inocência no texto constitucional:
Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado.... Toda vez que um imputado inocente tem razão de temer um juiz, quer dizer que isto está fora da lógica do Estado de direito: o medo e mesmo só a desconfiança ou a não segurança do inocente assinalam a falência da função mesma da jurisdição penal e a ruptura dos valores políticos que a legitimam. (FERRAJOLI, 2002, p. 439).
Dito de outro modo, ainda que fossem poucos os exemplos de absolvição nos Tribunais Superiores em razão de fundamentos jurídicos, o fato de uma pessoa ter cumprido pena sem possibilidade de condenação já contraria os interesses de qualquer Estado que se pretenda democrático.
Dizer que são poucos os casos de absolvição nos Tribunais Superiores, portanto, é argumento que não se sustenta e é, como diria o Professor Aury Lopes Jr., “grosseiro – senão interesseiro”. Já pensaram se o Judiciário relativiza o conceito de trânsito em julgado em desfavor da Administração Pública para deferir um benefício previdenciário? Evidente que a resposta só pode ser negativa, porque vige a seguinte lógica: para reduzir direitos individuais é lícito estender a interpretação jurídica como quiser, mas para ampliá-los, jamais...
Por derradeiro, o frágil argumento do excesso de recursos que enseja a morosidade da justiça, contradiz os relatórios do próprio Conselho Nacional de Justiça[6], que apontam certa Autarquia Federal (com reexame necessário, prazo em dobro e diversas prerrogativas) como a maior litigante do Brasil. Recorrem, pois, mesmo quando o direito individual dos cidadãos é inequívoco.
É contra esse pensamento que se insurge o texto, fazendo coro àqueles que militam na cruzada em prol da presunção de inocência.
Notas e referências
[1] http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4986065 Acesso em 21 de abr de 2018
[2] HC 84078-7/MG
[3] Dentre outros – Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/inverdade-historica-22548724 - Acesso em 03 de abr de 2018
[4] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2011.
[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. Tradução de Ana Paula Zomer, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes, 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
[6] 100 maiores litigantes” Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf. Acesso em 21 de abr de 2018.
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