EXECUÇÃO DO SALDO REMANESCENTE EM AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO DE VEÍCULOS    

01/09/2020

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

A alienação fiduciária em garantia constitui importante mecanismo de garantia de contratos no qual há transferência da propriedade fiduciária de determinado bem, alvo da garantia, de titularidade do devedor ao credor. Com a constituição da propriedade fiduciária, assinala-se o desdobramento da posse: o devedor (“fiduciante”) conserva a posse direta, enquanto o credor (“fiduciário”) conserva a variante indireta[1].

A propriedade fiduciária é uma modalidade da “propriedade resolúvel”. Ora, estando afeta à garantia de uma operação de crédito, extinguir-se-á – sem necessidade de novo negócio jurídico – em decorrência do adimplemento do contrato de financiamento. Ou seja, com o adimplemento da condição resolutiva – quitação do débito –, o bem torna à titularidade do devedor. Do contrário, com a inadimplência, consolida-se a propriedade em mãos do credor, o qual deverá proceder à sua alienação para quitar o débito, uma vez que a nossa legislação veda o pacto comissório (CC, art. 1.365)[2].

Nota-se, portanto, que a efetividade dessa garantia, em relação às demais garantias, em especial as reais, está atrelada ao fato de que o bem dado em garantia tem sua propriedade imediatamente transferida para o credor no momento inicial da contratação, reduzindo-se o risco de frustração das expectativas de retorno em caso de inadimplemento. Isso porque o credor, na qualidade de proprietário, está incutido de poderes necessários para execução da garantia, conferindo, assim, agilidade à recuperação do crédito.

Tendo em vista que não é lícito ao credor ficar com a coisa alienada em garantia, pois vedado o pacto comissório, em caso de inadimplemento, ao credor abre-se a oportunidade de alienar o bem afetado a terceiros – “judicial ou extrajudicialmente” (cf. art. 2º do Dec-Lei nº 911/69).

Para tanto, deverá lançar mão de prévia “busca e apreensão” do bem (art. 3º do Dec-Lei nº 911/69) – sendo indispensável a evidência da “mora”, produzida via “notificação” que dispensa indicação do montante do débito (Súmulas 72 e 245 do STJ).

Executada a busca e apreensão “liminar” (diante da prova do inadimplemento), em 5 (cinco) dias a propriedade plena e a posse pertencerão ao “fiduciário” (ou a terceiro por este indicado) – salvo pagamento da integralidade da dívida pelo devedor (art. 3º, §§ 1º e 2º do Dec-Lei nº 911/69).

Apreendido o bem, prioriza-se o pagamento do crédito inadimplido e de seus acessórios (cf. § 1º do art. 2º do Dec-Lei nº 911/69), entre os quais são expressamente enquadradas as “despesas de cobrança”.

De acordo com o que dispõe o artigo 1.366 do Código Civil, uma vez apreendida e vendida a coisa, se o produto da alienação não bastar para o pagamento da dívida e das despesas de cobrança, o devedor continuará obrigado pelo saldo restante.

Assim, a presente disposição prestigia a vedação ao “enriquecimento sem causa” por parte do devedor (“fiduciante”), pois ele não se desvincula pela “simples” alienação (a terceiros) do bem afetado; sendo insuficiente ao completo resgate da dívida, remanescerá sua responsabilidade pelo saldo[3].

Para dirimir a problemática do saldo remanescente do bem apreendido de vendido pelo credor em ação de busca e apreensão, o Superior Tribunal de Justiça, em maio de 2009, editou o enunciado de súmula nº 384 que afirma o seguinte: “Cabe ação monitória para haver saldo remanescente oriundo de venda extrajudicial de bem alienado fiduciamente em garantia[4].

Analisando as razões que deram origem à referida súmula, verifica-se que os Ministros da Corte Superior asseveram não ser possível que o credor continue cobrando o saldo remanescente do contrato por meio da via executiva, pois o título carece de liquidez, haja vista que o devedor não teve conhecimento da venda extrajudicial realizada pelo fiduciário, de modo que o quantum debeatur não pode ser apurado de maneira unilateral[5].

Acontece que a supramencionada súmula foi editada antes da vigência da Lei Federal nº 13.043/2014, que deu nova redação ao artigo 2º do Decreto-Lei nº 911/1969, determinando que o credor preste contas ao devedor, nos próprios autos, sobre o bem vendido a terceiro de maneira extrajudicial[6].

A prestação de contas é homologada por decisão judicial, com natureza jurídica de sentença, reconhecendo o saldo apurado na prestação em favor de quem de direito. Se o saldo for positivo, deverá ser devolvido ao antes devedor fiduciante. Se o saldo for negativo, poderá o até então credor fiduciário dar início ao cumprimento de sentença para cobrar do devedor o saldo remanescente à quitação do contrato de financiamento.

Assim, com essa imposição legal de prestação de contas nos próprios autos, não há mais que se falar em ausência de liquidez do contrato após a venda extrajudicial do bem, pois obrigado ao credor fiduciário prestar contas ao devedor, dentro do mesmo procedimento da ação de busca e apreensão.

Neste sentido, é a lição de Hélio do Valle Pereira:

A prestação de contas será particularmente importante nas relações entre fiduciante e fiduciário, tanto mais em respeito à apuração de saldo devedor subsequente à venda do bem objeto da garantia fiduciária (...). No entanto, pode o fiduciário adiantar-se, prestando contas e, reconhecido saldo em seu favor, prosseguir por meio de execução por título judicial (quanto à decisão que reconhecer o quantum em seu favor constituído) (grifo nosso)[7].

Como se pode depreender dos ensinamentos do supramencionado autor, deve o credor prestar as contas e requerer, se o caso, o cumprimento de sentença com a intimação do devedor para pagamento voluntário do saldo remanescente.

Paulo Restiffe Neto, referência nacional sobre o tema posto em debate, comunga do mesmo entendimento. Vejamos:

Se a cobrança executiva se fizer depois da apreensão e venda do objeto da garantia fiduciária, não poderá abranger os coobrigados, mas tão-somente o devedor fiduciante e, assim mesmo, se a venda tiver sido judicial, com apuração também judicial do saldo a que se refere o § 5º do art. 66 da Lei n. 4.728, de 1965. É que bem pode resultar saldo em favor do devedor fiduciante, que passa a credor, com direito à restituição do excesso. Só este fato basta para retirar a liquidez do saldo, em favor de uma ou de outra parte, apurado extrajudicial e unilateralmente pelo fiduciário. Através de ação ordinária (ou de rito sumaríssimo de cobrança ou de ação de prestação de contas é que se poderá obter título executório (judicial) pelo saldo fixado em sentença, comportando regular execução nos próprios autos, como de direito (grifo nosso)[8].

Além disso, com a edição do Código de Processo Civil de 2015, as normas procedimentais passaram a ser orientadas de forma expressa pelos valores e normas fundamentais da constituição, conforme art. 1º do CPC/15, entre os quais está o dever de entregar às partes a solução integral da controvérsia (art. 4º do CPC/15 e art. 5º, LXXVIII, CF/88), indo na contramão do vetor hermenêutico do processo civil atual a interpretação de que, depois de apreendido o bem em ação de busca e apreensão e prestadas as contas, deveria o credor mover outra ação autônoma para cobrar eventual saldo remanescente. Isso é tão irracional quanto seria irracional se exigir que o devedor movesse ação própria para cobrar eventual saldo que lhe tivesse restado da venda extrajudicial feita pelo credor.

Diante de tudo que foi exposto, podemos concluir que é possível sim, mediante cumprimento da sentença que julga a prestação de contas, a cobrança do saldo devedor ali apurado, por uma parte ou pela outra.

 

Notas e Referências

[1]A origem da “propriedade fiduciária” no Brasil se prende ao art. 66 da Lei Fed. nº 4.728/65 (Lei do Mercado de Capitais), objeto de regulamentação – sobretudo quanto ao aspecto processual – pelo Dec-Lei nº 911/69 (alterados, ambos, pela Lei Fed. nº 10.931/04 e Lei Fed. nº 13.043/2014). Antes mesmo da regência da garantia fiduciária por meio da Lei Fed. nº 4.728/65 (Lei do Mercado de Capitais), Pontes de Miranda já doutrinava: “Se o comerciante que precisa de numerário para pagar ao credor aliena algum armazém e fica na posse imediata, explorando-o, em nome próprio, com a permissão do credor, não há que se pensar em penhor. O que se perfaz, aí, é transmissão fiduciária, com aquisição imediata de tudo quanto entre no armazém, como provisão nova... Há "fiducia cum creditore', com transmissão da plena propriedade” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado, Ed. Borsoi, 1961, 3ª ed., vol. XX, págs. 410/411.

[2] A diferença entre “propriedade fiduciária” e “propriedade resolúvel” é bem pontual. Como observa, Marta Borsoi: “(...) a resolução da propriedade (resolúvel) se dá por vontade das partes (que preveem o implemento de determinada condição ou fixação de certo prazo), enquanto naquela (propriedade fiduciária) a resolução só ocorre nos termos previstos pela lei. E ainda, na propriedade resolúvel, o proprietário possui todas as faculdades atribuídas à propriedade plena, que encontra-se limitada tão só pela condição resolutiva. Já na propriedade fiduciária, enquanto perdurar a obrigação principal de que é acessória a garantia, o fiduciário não possui todas as faculdades inerentes à propriedade, inclusive não podendo se apropriar do bem no caso de inadimplemento da obrigação, uma vez que está obrigado a proceder a venda da coisa para satisfação do seu crédito”. BORSOI, MARTA. A Alienação Fiduciária em Garantia no Direito Brasileiro. Estudos do Instituto do Conhecimento AB n.º 3. Ed. Almedina, 2015. Disponível em < https://books.google.com.br/books >.

[3] Por óbvio que tal disposição deve ser conjugada com o “parágrafo único” do artigo 1.365 do CC, pois se houve aceitação do direito oferecido em “dação em pagamento”, nada mais pode ser exigido do devedor – face à extinção da obrigação.

[4] A vagueza do enunciado da súmula 384 do STJ é tamanha, que ela suscita dúvidas até mesmo sobre a sua aplicabilidade nos contratos de alienação fiduciária de bens imóveis. Sobre o tema, confira-se o posicionamento dos autores Alexandre Ferreira de Assumpção Alves e Márcia Carla Pereira Ribeiro: “Pela análise das quatro decisões precedentes para edição da Súmula 384 evidencia-se que, não obstante essa conter em seu texto a expressão “bem alienado fiduciariamente em garantia”, sem dispor de maneira clara se se trata de bem móvel ou imóvel, todos os precedentes se referem a vendas extrajudiciais de bens móveis. A discussão travada no STJ que levou à edição da Súmula 384 se deu em virtude da iliquidez do título após a venda extrajudicial da garantia (veículos). Em havendo alienação extrajudicial do bem móvel, ainda que haja saldo remanescente, o STJ entendeu que esse saldo não pode ser executado de pronto. Isto porque, não é válido que o valor do débito seja unilateralmente declarado pelo fiduciário, sem que haja por parte do fiduciante reconhecimento do valor exato da dívida, depois de descontado o valor obtido na venda do bem alienado e, se for o caso, com a oportunidade para o segundo de apontar erros no cálculo apresentado pelo primeiro. Ao contrário, na alienação fiduciária de imóveis, a lei especial determina expressamente o perdão do saldo remanescente existente depois da venda do imóvel e o procedimento de cobrança é diverso da alienação fiduciária de bens móveis”. ALVES, Alexandre Ferreira da Assumpção, RIBEIRO, Márcia Carla Pereira Ribeiro. In: EFEITOS DA EXONERAÇÃO DO DEVEDOR DO SALDO REMANESCENTE NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA COM A ADVENTO DA LEI Nº 10.931/2004. vol. 02, n°. 55, Curitiba, 2019. pp. 296 – 327.

[5] Neste sentido, confira-se o voto do Ministro Relator Athos Carneiro, ao proferir o voto no REsp n. 2.432 (QUARTA TURMA, julgado em 13/11/1990, DJ 17/12/1990): “Ora, admitida tal possibilidade legal, de o credor vender o bem pelo preço que melhor lhe aprouver, sem que o devedor possa pretender sequer uma prévia avaliação judicial ou extrajudicial, parece-nos necessário, embora tão respeitáveis opiniões em contrário, igualmente admitir a contrapartida: o saldo remanescente em favor do credor perde sua liquidez, restando o contrato, ou o título cambiário a ele vinculado,  descaracterizado como título executivo. Necessário é ponderar que, salvante exceções expressamente previstas em lei (como os créditos fiscais), o título executivo provém da prévia e expressa anuência do devedor quanto ao an e ao quantum debeatur. Vale ressaltar que o próprio Decreto-Lei n. 911 dispõe que se o preço da venda não for suficiente ao pagamento do crédito e despesas, “O devedor continuará pessoalmente obrigado a pagar o saldo devedor apurado”, mas não refere que tal saldo possa ser cobrado pela via executiva”.

[6] Além desta importante alteração, a referida Lei nº 13.043/2014 trouxe outras importantes modificações no procedimento da busca e apreensão de bens alienados fiduciariamente, visando maior celeridade e efetividade na persecução e satisfação do crédito. A aludida norma permitiu, por exemplo, a conversão da ação de busca e apreensão em processo de execução (quando não localizado o bem ou quanto este não estiver na posse do devedor), a possibilidade do credor instaurar o pedido de busca na comarca na qual foi localizado o bem, independente de carta precatória, a possibilidade do juiz deferir o bloqueio de circulação do bem perante o Registro Nacional de Veículos Automotores, o que evita a dilapidação do bem, etc.

[7] PEREIRA, Hélio Valle. A nova Alienação Fiduciária em garantia. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008 pgs. 181/182.

[8] RESTIFFE NETO, Paulo. Da Garantia. Garantia Fiduciária. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1976. f. 593.

 

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