Execução antecipada da pena sob o prisma do pêndulo e do dique

26/06/2016

Por Eric Cwajgenbaum - 26/06/2016

É nítido que, diante de momentos históricos específicos, há um movimento que oscila de forma pendular, tendo, de um lado o garantismo e, de outro, o punitivismo.

Como reflexo disto, ao longo da evolução legislativa e doutrinária, em que pese a existência de notáveis contribuições que perduram até hoje, tal como o Codigo do Processo Penal para o Districto Federal[1], é nítido que relevantes Juristas interpretaram nosso Código de Processo Penal – ainda vigente apesar de já reformado em questões pontuais – à partir de Constituições ainda muito distantes das Garantias Fundamentais.

Para exemplificar, interessante citar o notável Inocêncio Borges da Rosa, que, ao tratar dos Casos de Prisão[2], conceitua a formação da culpa à partir do diálogo entre o Código de Processo Penal e a então vigente Constituição:

A Constituição Federal (de 10 de novembro de 1937), no artigo 122 n.º 11 estatui que:

– a) à exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se sinão depois de pronuncia do indiciado;

– b) antes da pronuncia, a prisão só poderá efetuar-se nos casos determinados em Lei e mediante ordem escrita da autoridade competente;

– c) ninguem poderá ser conservado em prisão sem culpa formada;

– d) alguem poderá ser conservado em prisão, sem culpa formada, somente em virtude de Lei e na forma por ela regulada. 

Por sua vez, o art. 282 do Cod. do Processo preceitúa que:

– a) à exceção do flagrante delito, a prisão não poderá efetuar-se sinão depois de pronuncia;

– b) antes da pronuncia, a prisão só poderá efetuar-se somente nos casos determinados em Lei, e mediante ordem escrita da autoridade competente (prisão administrativa e prisão preventiva).

(...)

O art. 122 n.º 11 da Constituição Federal fala em “culpa formada’. Diz-se que a culpa já está formada quando, após a apresentação da denuncia ou da queixa, tem se procedido à instrução do processo, isto é, à comprovação da existência do fato criminoso, das suas circunstancia e da sua autoria ou coautoria. – A formação da culpa inicia-se coma denuncia ou queixa, e remata-se com a pronuncia. (grifos originais)

Quase um século se passou e, já sob a vigência da Constituição de 1988, a República Brasileira atravessou o escândalo do “mensalão” e logo depois – tempo que pode ser considerado como recente em termos históricos – foi confrontada com o escândalo do “petrolão”, dispensando, ambos, por sua notoriedade, maiores aprofundamentos.

Como consequência, o clamor popular vem impulsionando modificações legislativas – ainda em fase de projetos no Congresso – bem como, modificações na forma dos tribunais julgarem causas criminais como se a legislação já houvesse sofrido tais alterações.

Neste ambiente, é sabido que o Supremo Tribunal Federal revisitou a jurisprudência sedimentada sobre a Presunção de Inocência, que tem como reflexo direto o cumprimento antecipado da pena, de forma a dar ao artigo 5º, inciso LVII[3] da Constituição da República e artigo 283[4] do Código Processual Penal, interpretação diversa de seus textos literais.

Em que pese o enorme respeito que se deve prestar à mais alta Corte Brasileira, salta aos olhos que, além de atropelar conceitos sobre a Presunção de Inocência e o próprio conceito de culpa presentes nas normas pátrias e no Pacto de San José da Costa Rica[5] – recepcionado através do Decreto nº 678/92 – atropelou também a própria guarda da Constituição ao negar vigência ao artigo 283 sem declaração expressa de sua inconstitucionalidade.

Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, (...) (grifos nossos)

Diante da possibilidade da execução antecipada da pena se tornar regra, eis aqui a uma citação para reflexão, no tocante ao peso sobre os ombros dos Magistrados, quando a questão pendular das decisões judiciais atinge momentos de nítido desequilíbrio e se afastam das Garantias Fundamentais:

Há uma metáfora que me agrada particularmente. É a metáfora do dique, utilizada por Eugenio Raúl Zaffaroni a propósito da contenção do poder punitivo: “O direito penal deve programar o exercício do poder jurídico como um dique que contenha o estado de polícia impedindo que afogue o estado do direito. Entretanto, as águas do estado de polícia se encontram sempre em um nível superior de modo que ele tende a ultrapassar o dique por transbordamento. Para evitar isso, deve o dique dar passagem a uma quantidade controlada de poder punitivo, fazendo-o de modo selectivo, filtrando apenas a torrente menos irracional e reduzindo sua turbulência, mediante um complicado sistema de comportas que impeça a ruptura de qualquer uma delas e que, caso isto ocorra, disponha de outras que reassegurem a contenção”. Sempre que leio esta passagem, ocorre-me que o dique, como limite que é, não funciona sozinho. Ele é um mecanismo susceptível de agenciamento. De modo que a metáfora do dique é, em rigor, a metáfora do homem por detrás do dique, que o pode mover e que o pode fazer num sentido ou noutro, manifestando, nessa decisão, o lugar autoral que é o seu. O “dique” é metáfora jurídica, sim; transforma-se, enquanto “homem do dique”, em metáfora política. Eis o que o limite faz ao direito: diz-lhe a politicidade que ele carrega.[6] (grifamos)

Nos sistemas jurídicos de alguns outros países, o trânsito em julgado ocorre já na segunda instância, restando, para os tribunais superiores, recursos de natureza semelhantes ao revisional.

No Brasil, não, afinal, se nosso legislador assim quisesse, assim seria.

Aceitar o debate sob o eixo do momento da formação da culpa é como embarcar numa canoa que já está irremediavelmente afundando: dentro, o seu peso somente acelera o processo, fora, dá até para ajudar.


Notas e Referências:

[1] Decreto n. 16.751 de 31 de dezembro de 1924

Art. 545. A execução da sentença, impondo a pena de prisão, inicia-se logo que tenha passado em julgado, ordenando o juiz da execução, ao receber os autos, seja extrahida pelo escrivão carta de guia, que assignará, rubricando-a em toadas as suas folhas. (grifamos)

[2] ROSA, Inocêncio Borges da. Processo penal brasileiro, volume 2. Porto Alegre: Liv. do Globo – Barcelos, Beraso & Cia., 1942, páginas 219 a 221.

[3] LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[4] Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (grifamos)

[5] Artigo 8º - Garantias judiciais / 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.

[6] MARTINS, Rui Cunha. O Ponto Cego do Direito–The Brazilian Lessons. Rio de Janeiro:Lumen Juris, 2011.


Eric Cwajgenbaum. Eric Cwajgenbaum é Advogado Criminalista; Pós-graduado e especialista em Processo Penal e Garantias Fundamentais pela Academia Brasileira de Direito Constitucional; pós-graduado em Compliance pela Fundação Getúlio Vargas; pós-graduado em Direito Societário e Mercado de Capitais pela Fundação Getúlio Vargas; pós-graduado em Processo Penal Constitucional pela Fundação Getúlio Vargas.


Imagem Ilustrativa do Post: No one there // Foto de: Daniel Oines // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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