EXCEÇÃO DE INSEGURIDADE. A Suspensão da Prestação no Interesse do Credor em caso de Alteração da Solvabilidade

27/03/2020

Coluna O Novo Processo Civil Brasileiro / Coordenador Gilberto Bruschi

Os empresários sentem-se inseguros em relações negociais de grande vulto e de longa duração pela eventualidade de sobrevir uma situação de duvidosa solvabilidade da parte oposta, o que não é incomum, e supor ter que continuar a realizar a sua prestação até o vencimento do contrato, com o receio de caracterizar descumprimento e ser responsabilizado por isso, e, ainda, sem ter a certeza ou a garantia de que, ainda que realize a sua prestação, receberá o pactuado.

Na realidade, o empresário não quer ter de arcar com o risco do empreendimento e ser onerado pela situação econômico-financeira da outra parte.

Esse receio, e como se verifica a seguir, não se justifica, uma vez que existe solução jurídica para isso.

Os contratos bilaterais caracterizam-se, essencialmente, pela existência de divergentes obrigações (ou prestações) entre as partes.

Tomando-se o exemplo do contrato de compra e venda, a obrigação do vendedor é a de entregar o bem, enquanto a do comprador é a de pagar o preço combinado. Como se nota, há prestações divergentes, antagônicas mesmo. E é esse o espírito dos contratos bilaterais (ou sinalagmáticos).

Acontece, todavia, que a situação econômico-financeira de uma das partes envolvidas num contrato bilateral, ainda mais se de médio ou longo prazo, pode alterar-se e importar a redução de sua capacidade patrimonial, o que pode comprometer ou tornar duvidosa a solvabilidade da entrega da prestação a qual se obrigou.

Observe-se que não se cuida de evento que implique o vencimento antecipado da obrigação, permitindo ao credor cobrar a dívida antes do respectivo, o que pode ocorrer, em geral, nas situações seguintes (art. 333, do CC): (i) falência do devedor ou de concurso de credores, (ii) penhora dos bens empenhados ou hipotecados em execução movida por outro credor e (iii) cessarem ou tornarem-se insuficientes as garantias do débito, fidejussórias ou reais, e o devedor, intimado, não reforçá-las; e, se houver oferta de garantia, nas hipóteses seguintes (art. 1.425, do CC): (i) deterioração ou depreciação do bem dado em segurança, desfalcando a garantia, e o devedor, intimado, não a reforçar ou substituir, (ii) devedor cair em insolvência ou falir, (iii) não pagamento pontual das prestações conforme estipulado, (iv) perecimento do bem dado em garantia e não ser substituído e (v) desapropriação do bem dado em garantia. Não é disso que se cuida aqui.

Por conta disso, a parte inocente, em determinadas circunstâncias, pode suspender a prestação que lhe cabe em negócios jurídicos, sem que isso implique a liquidação antecipada do contrato ou enseje-lhe algum risco.

O art. 477, do CC, autorizando isso, dispõe que:

“Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la”.

Assim, o credor pode recusar-se a cumprir a prestação que lhe incumbe se houver a diminuição da capacidade patrimonial da outra parte e isso comprometer ou tornar duvidosa a possibilidade de cumprimento de sua prestação.

É a denominada exceção de inseguridade.

PONTES DE MIRANDA[1] escreve que a exceção de inseguridade não objetiva o vencimento antecipado por inadimplemento nem a possibilidade de exigir-se caução, mas sim de permitir que a parte inocente retarde o cumprimento de sua prestação.

O Enunciado 438, da V Jornada de Direito Civil do STJ, estabelece:

“A exceção de inseguridade, prevista no art. 477, também pode ser oposta à parte cuja conduta põe, manifestamente em risco, a execução do programa contratual”.

A jurisprudência também acolhe esse entendimento.

O STJ já decidiu:

“DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. CONTRATO DE FORNECIMENTO DE MATÉRIA-PRIMA. REDUÇÃO DO VOLUME. PROBLEMAS DE PRODUÇÃO. ILICITUDE. INEXISTÊNCIA. RISCO DO EMPREENDIMENTO. INADIMPLEMENTO PRETÉRITO DA CONTRATANTE. REDUÇÃO DO VOLUME DOS PRODUTOS, DOS PRAZOS DE PAGAMENTO E DO CRÉDITO. CABIMENTO. PROVIDÊNCIA CONSENTÂNEA COM A PRINCIPIOLOGIA DA EXCEÇÃO DE INSEGURIDADE. DANO HIPOTÉTICO.

CONDENAÇÃO. DESCABIMENTO.

1. O cerne da controvérsia consiste em investigar a possível ilicitude praticada pela ora recorrente no tocante à limitação do fornecimento de matéria-prima à recorrida, limitação essa acompanhada de redução de seu crédito e diminuição dos prazos de pagamento, tudo isso após cerca de um ano do início da relação negocial, a qual, essencialmente, se manteve de forma verbal.

2. Ficou claro da moldura fática dos autos que as partes firmaram contrato em meados de 1996 e que em agosto de 1997 houve uma redução do volume de produtos fornecidos pela recorrente à recorrida, tudo isso em razão de problemas operacionais, sendo que havia acordo verbal de fornecimento em volume superior. Com efeito, não se trata de relação contratual de longa duração, na qual os costumes comerciais têm aptidão de gerar a legítima expectativa em um contratante de que o outro se comportará de forma previsível.

3. Em boa verdade, em se tratando de problemas de produção, tem-se situação absolutamente previsível para ambos os contratantes, de modo que a redução no fornecimento de produtos, nessa situação, não revela nenhuma conduta ilícita por parte do fornecedor. A controvérsia comercial subjacente aos autos insere-se no risco do empreendimento, o qual não pode ser transferido de um contratante para o outro, notadamente em contratos ainda em fase de amadurecimento, como no caso.

4. Quanto à redução do fornecimento e do crédito posteriormente ao inadimplemento da recorrida, outra providência não se esperava da recorrente. Não se pode impor a um dos contratantes que mantenha as condições avençadas verbalmente quando, de fato, a relação de confiabilidade entre as partes se alterou. Era lícito, portanto, que a contratada reduzisse o volume de produto fornecido e modificasse as condições de crédito e de pagamento, diante do inadimplemento pretérito da contratante, precavendo-se de prejuízo maior.

5. ‘Mutatis mutandis’, tal providência é consentânea com a principiologia do que no direito privado ficou consagrado como exceção de inseguridade, prevista hoje no art. 477 do Código Civil (correspondente ao art. 1.092 do CC/1916 e, em parte, ao que dispunha o art. 198 do Código Comercial). ‘A exceção de inseguridade, prevista no art. 477, também pode ser oposta à parte cuja conduta põe, manifestamente em risco, a execução do programa contratual’ (Enunciado 438 da V Jornada de Direito Civil CJF/STJ).

6. Assim, no caso de inadimplemento do contratante - circunstância que sugere, realmente, alteração de solvabilidade de uma das partes -, se era lícito ao outro reter sua prestação, era-lhe igualmente lícito reduzir o volume dos produtos vendidos, dos prazos de pagamento e do crédito, na esteira do adágio de que quem pode o mais pode o menos.

7. De resto, em ação de responsabilidade civil subjetiva, é incumbência do autor, ainda no processo de conhecimento, demonstrar a ocorrência do dano, a conduta ilícita da ré e o nexo de causalidade entre a ação/omissão e o resultado lesivo, relegando-se à fase de liquidação apenas o ‘quantum debeatur’. A despeito de o julgador poder valer-se de seu livre convencimento motivado, descabe condenar o réu à indenização por um dano hipotético, sem a comprovação da existência do prejuízo e do nexo de causalidade.

8. Recurso especial provido” (STJ, 4.ª T., REsp 1.279.188/SP, rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, j. em 16/04/2015, DJe de 18/06/2015).

O TJSP, por seu turno, também já decidiu:

“PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. EXCEÇÃO DO CONTRATO NÃO CUMPRIDO. RECUSA NO ADIMPLEMENTO SOB ALEGAÇÃO DE FUTURO INADIMPLEMENTO DA PARTE CONTRÁRIA. IMPOSSIBILIDADE.

A boa-fé objetiva há de estar presente em todas as fases negociais, ou seja, antes, durante e depois da formalização da avença e é imposta a ambas as partes.

Não atende a esse princípio o inadimplemento do contrato ao argumento de que a parte não cumprirá a sua obrigação, cujo momento ainda não foi atingido, sem a presença dos requisitos do art. 477 do Código Civil” (TJSP, 10.ª Câm. Direito Privado, Apel. 1004950-13.2015.8.26.0292, rel. Des. RONNIE HERBERT BARROS SOARES, j. em 15/03/2016).

E também:

“RECURSO. Apelação. Razões recursais que se prestaram a impugnar a sentença. Recurso conhecido. CONTRATO. Compromisso de compra e venda de unidade autônoma. Legalidade da cláusula de tolerância. Atraso na entrega das chaves verificado. Hipótese em que se revelou legítima a retenção das chaves por não ter satisfeito a autora a prestação maior do preço na data de vencimento. Exceção do contrato não cumprido. Art. 477 do Código Civil. Ausência, ademais, de demonstração da obrigação da ré de fornecedor determinada documentação para obtenção do financiamento. Lucros cessantes, entretanto, verificados no período entre a obtenção do financiamento e a entrega das chaves. Danos presumidos. Indenização devida. Dano moral. Indenização indevida. Mero descumprimento contratual que não acarreta dano moral. Comissão de corretagem e taxa de assessoria imobiliária. Pedido de devolução. Prescrição trienal. Inteligência do art. 206, § 3.º, IV, do Código Civil. Recurso especial repetitivo (tema 938/STJ). Recurso provido em parte” (TJSP, 1.ª Câm. Direito Privado, Apel. 1094641-32.2015.8.26.0100, rel. Des. LUIZ ANTONIO DE GODOY, j. em 03/05/2018).

E ainda:

“ARRENDAMENTO RURAL. Ação de rescisão contratual c/c despejo e cobrança. Tutela de urgência parcialmente concedida, para o fim de determinar que a ré arque previamente com as suas obrigações monetárias para que possa retirar e comercializar a cana-de-açúcar. Exceção de inseguridade. Aplicabilidade. Exegese do art. 477 do Código Civil. Risco de dano irreparável ou de difícil reparação. Existência, ainda, de prova inequívoca acerca da probabilidade do direito alegado. Presença dos requisitos dispostos no art. 300 do CPC. Decisão mantida. Recurso não provido” (TJSP, 31.ª Câm. Direito Privado, AI 2186544-04.2019.8.26.0000, rel. Des. JOSÉ AUGUSTO GENOFRE, j. em 1.º/10/2019).

E o TJRS, igualmente, orienta-se no sentido seguinte:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE SOJA. TUTELA DE URGÊNCIA.

Caso em que a compradora encontra-se em recuperação judicial, sendo razoável o temor do vendedor de não receber o valor devido, na hipótese de entregar o produto. Aplicação do art. 477 do Código Civil. Precedentes desta Corte. Recurso provido. Unânime” (TJRS, 12.ª Câm. Cível, AI 0094223-76.2016.8.21.7000 (70068840297), rel. Des. PEDRO LUIZ POZZA, j. em: 16/06/2016).

E também:

“APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. COMPRA E VENDA DE SOJA. PAGAMENTO FUTURO. COMPRADORA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXCEÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO. ART. 477 DO CÓDIGO CIVIL. INEXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. PRELIMINAR CONTRARRECURSAL.

1. A apelação conterá as razões do pedido de reforma, na forma do art. 1.010, III, do Código de Processo Civil. Impugnação específica e adequada do conteúdo da sentença recorrida. Cumprimento do requisito de contraponto com a decisão, necessário ao conhecimento do recurso.

2. Inépcia da inicial executiva e do pedido de consignação em pagamento não verificados, pois as pretensões, em abstrato, não têm sua higidez atingida em razão do decurso do tempo após o ajuizamento da demanda judicial, inexistindo qualquer irregularidade formal.

3. O pedido de recuperação judicial e a existência da notícia de protestos e inscrições em cadastros de inadimplentes são motivos razoáveis para a oposição da exceção de cumprimento do contrato na forma do art. 477 do Código Civil, justificando-se o temor do vendedor da soja nos contratos de compra e venda com pagamento futuro e a recusa à entrega da mercadoria sem o pagamento antecipado ou o oferecimento de garantia. Preliminar contrarrecursal afastada. Apelação cível provida” (TJRS, 19.ª Câm. Cível, Apel. 0318363-25.2018.8.21.7000 (70079531513), rel. Des. MYLENE MARIA MICHEL, j. em 21/02/2019).

Em conclusão, não se pode impor a um dos contratantes que mantenha as condições avençadas inicialmente quando houver alteração da solvabilidade do outro contratante, autorizando-lhe, assim, ou reduzir a sua prestação, no caso de ser ela na forma continuada, ou até mesmo retê-la integralmente.

Cabe à parte inocente, porém, numa relação bilateral e em que houve a diminuição do patrimônio do outro contratante, e que isso compromete ou torna duvidosa a sua prestação, tomar a iniciativa e resguardar-se dessa situação, a fim de evitar a caracterização de seu descumprimento contratual e as consequências que daí advêm.

 

Notas e Referências

[1] Tratado de Direito Privado, 3.ª ed., Borsoi, Rio de Janeiro, 1971, p. 109.

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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