EVENTUAIS MODIFICAÇÕES NA LEI Nº 8.429/92 NÃO PODEM FERIR A PROBIDADE NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

07/09/2020

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 10.887/18[1] que buscar alterar dispositivos da Lei nº 8.429/92[2] que dispõe sobre as práticas de improbidade administrativa, mormente acerca das sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito, lesão ao erário e infração a princípios da Administração Pública. A referida lei representa um valioso instrumento na salvaguarda da moralidade administrativa e da ética na condução dos assuntos públicos pelos mais variados agentes, estejam eles no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na Administração Pública direta, indireta ou fundacional. Ligada ao denominado Direito Administrativo Sancionador, a Lei nº 8.429/92 buscar inibir e sancionar duramente a prática da corrupção nos diversos níveis administrativos, tanto no sentido de afastar da cena pública e penalizar duramente o agente ímprobo, como no aspecto de ressarcir a Administração Pública dos prejuízos que eventualmente tenha sofrido.

Desde a edição da LIA (Lei de Improbidade Administrativa) em 1992, a jurisprudência dos tribunais superiores, dos tribunais federais e dos tribunais dos estados pacificou várias questões referentes à aplicação da referida lei. Assim, com o objetivo de “modernizar” a Lei 8.429/92, incorporando em seu texto a jurisprudência assentada principalmente pelo Superior Tribunal de Justiça acerca da matéria, foi proposto no ano de 2018 o PL nº 10.887/18 que altera vários dispositivos da LIA. Tal projeto, apesar de receber algumas críticas pontuais, foi amplamente debatido na Comissão Especial sobre Improbidade Administrativa, tendo sido ouvidos, em inúmeras audiências públicas, integrantes do Poder Judiciário das mais variadas instâncias, membros do Ministério Público e da Advocacia Pública e outros estudiosos e profissionais que lidam, no dia a dia, com a Administração Pública e os assuntos a ela relacionados.

Todos os debates na Comissão Especial foram conduzidos com a finalidade de melhorar o texto do projeto, sendo que, no geral, o texto original do PL nº 10.887/18 preserva o espírito da Lei de Improbidade Administrativa. No sítio eletrônico da Câmara dos Deputados consta como último andamento do PL nº 10.887/18 um indeferimento de requerimento pela Mesa Diretora da Comissão na data de 03/12/2019. No entanto, está sendo  noticiado pela imprensa escrita[3] e por notas técnicas institucionais de órgãos como o Ministério Público Federal[4] que circularia entre os deputados integrantes da Comissão Especial um texto substitutivo que, para além de desfigurar o texto original do PL nº 10.887/18, abrandaria sobremaneira os mecanismos de que dispõe a LIA para o combate à corrupção na Administração Pública, tanto do ponto de vista do direito material, como no que diz respeito ao procedimento da ação civil de improbidade administrativa. Tal substitutivo ainda não foi incluído na movimentação oficial do PL nº 10.887/18 constante no sítio da Câmara dos Deputados.

As modificações propostas pelo ainda informal substitutivo seriam várias. Destaca-se aqui, do ponto de vista do direito material, a extinção da modalidade culposa de improbidade administrativa, mesmo se o agente agir com culpa grave. Os novos §§ 2º, 4º e 5º do artigo 1º e o artigo 10, caput, da LIA exigiriam que houvesse dolo na prática lesiva, ou seja, que houvesse a vontade livre e consciente na conduta ímproba. E pior: Esse dolo não seria o dolo geral, mas sim o específico, aquele que exige do agente o especial fim de causar um resultado ilícito. Se for aprovada tal redação, dificilmente os legitimados para a ação de improbidade administrativa conseguirão demonstrar o especial fim ilícito que levou o agente a cometer a ação ímproba. Assim será, visto que tais atos de improbidade ocorrem no escondido, sendo impossível penetrar na consciência do agente público infrator para demonstrar o dolo específico. Tal modificação contribuiria, sobremaneira, para a impunidade, e a tolerância quanto à prática de corrupção na Administração Pública.

Torna-se grave, ainda, a modificação que em tese seria proposta pelo substitutivo que, modificando radicalmente a redação do artigo 11 da Lei nº 8.429/92, extinguiria a modalidade de improbidade por violação aos princípios da Administração Pública. Essa grave modificação viria acompanhada de outras duas alterações que a ela estão ligadas: a) a exigência de dano efetivo, ou seja, que, em razão do ato de improbidade, a Administração experimente efetiva perda patrimonial para a configuração da improbidade (art. 10, caput e inciso VIII); b) que o terceiro beneficiário do ato de improbidade, para ser responsabilizado, tenha efetivamente praticado ato ímprobo em conjunto com o agente público. Tais questões, com todo respeito a quem pensa de maneira diversa, em nada contribuiriam para a integridade, honestidade e retidão nas práticas administrativas.

É de saltar aos olhos que várias condutas ilícitas praticadas por agentes públicos ferem a probidade administrativa mas, não necessariamente, conduzem a prejuízos ao erário. Um exemplo disso é o candidato aprovado em 2º lugar num concurso público que, sendo “amigo” do gestor administrativo, é nomeado para o cargo efetivo em detrimento do classificado em 1º lugar. Não há prejuízo material ao erário, mas há clara violação de princípio da Administração, visto que o agente frustrou a licitude de concurso público (art. 11, V, da LIA) ao desobedecer a ordem de classificação quando da nomeação. A Administração Pública deve ser construída sobre um firme alicerce. E esse alicerce é constituído pelos princípios administrativos. Não há probidade administrativa se a lei não zela pelo respeito aos princípios, sancionando os seus infratores mesmo que não haja um efetivo prejuízo em razão da prática desonesta. Exigir efetivo prejuízo ou que o terceiro beneficiário da prática de improbidade também tenha praticado a conduta em muito incentivará que os agentes públicos inescrupulosos realizem um sem número condutas que não condizem com o bem administrar.

Constaria ainda no substitutivo a previsão de que não seria considerado ato de improbidade qualquer ação ou omissão que decorresse de divergência de interpretação da lei que seja baseada em jurisprudência ou em doutrina e, o que é mais grave, mesmo que não estejam pacificadas e que não venham a prevalecer nas decisões de controle ou nos tribunais (§ 6º do art. 1º). Ora, tal previsão seria uma porta aberta para a chancela de inúmeras práticas ímprobas na Administração Pública. Bastaria que fosse escrito e publicado um artigo de ocasião para que ele servisse de excludente de ilicitude da prática do ato desonesto. Uma decisão judicial isolada e que não reflita o posicionamento majoritário da jurisprudência dos tribunais, mormente os superiores, poderia ser utilizada como “escora” da prática do ato ímprobo! Se aprovado tal dispositivo, uma decisão isolada de um juiz singular poderia servir de excludente de ilicitude mesmo diante de uma pacífica jurisprudência do STJ em sentido contrário.

Com relação às sanções pela prática de atos de improbidade administrativa, o texto substitutivo em nada contribuiria para a manutenção espírito da LIA no combate à corrupção na Administração Pública. No artigo 12, § 1º, estabeleceria o substitutivo que a sanção da perda da função pública atingiria, tão somente, o mandato, cargo, emprego ou função de mesma natureza do que praticado o ato de improbidade. Ou seja, se o agente público praticou o ato de improbidade enquanto prefeito, não perderá/será impedido de exercer a função pública de Governador. Se um policial civil praticar o ato de improbidade e, após, for aprovado num concurso público de juiz, não perderá a função pública na magistratura. Isso em nada contribuiria para a manutenção de quadros honestos na Administração Pública em todos os níveis dos Poderes de Estado. A redação do substitutivo para o § 4º do artigo 12 ainda imporia a limitação territorial da sanção de proibição de contratação com o Poder Público, limitando-se ao “território” do ente público lesado pelo ato. É inconcebível que um condenado por ato de improbidade administrativa no Município de Belo Horizonte/MG possa contratar com o Município de Uberlândia/MG e/ou de Montes Claros/MG. Ou o sujeito é ímprobo no país inteiro ou não é. A desonestidade não deixa de existir pela simples mudança de território.

Ainda tratando das sanções, seria destaque no informal substitutivo a previsão do ato de improbidade de menor potencial lesivo, passível de punição apenas por multa (art. 12, § 5º). Não se questiona que, a depender da infração, ela tenha resultado lesivo menor e mereça uma reprimenda mais branda. O que preocupa é a ausência de estipulação de critérios razoáveis pelo substitutivo para se definir o que seria um ato ímprobo “insignificante” para fins de penalização apenas com a multa civil. A nova redação que teria sido proposta para o artigo 12, caput, incisos I e II, da LIA ainda reduzia o valor da multa civil para o importe equivalente ao enriquecimento ilícito ou ao dano causado ao erário e reduziria o prazo mínimo de suspensão dos direitos políticos de 08 para 04 anos. Haveria, assim, nítida tentativa de abrandamento das sanções da Lei nº 8.429/92 o que, nem de longe, é desejável para a manutenção da probidade administrativa.

Já do ponto de vista processual, as modificações no procedimento da ação cível de improbidade administrativa que constariam no substitutivo não ajudariam em nada no que diz respeito à maior celeridade e efetividade da tutela jurisdicional, estando divorciadas das modernizações trazidas pelo Novo Código de Processo Civil que deseja um processo mais justo, célere e efetivo (arts. 4º e 6º do CPC/15).

Quanto à fase investigatória que antecede a propositura da ação civil de improbidade administrativa, a redação que teria sido proposta para o artigo 23, §§ 1º a 3º, buscaria estabelecer um prazo de 180 dias, prorrogável somente uma vez por igual período, para a conclusão do inquérito civil público. O substitutivo desconsideraria que as investigações preliminares a cargo do Ministério Público necessitam de tempo razoável para a coleta de documentos, oitiva dos investigados e de terceiros e a realização de outras diligências que, muitas vezes, devem vencer da burocracia administrativa que ainda existe no país.

Ora, o que se desejaria? Um inquérito civil bem instruído e embasado em provas concretas ou uma investigação deficiente que mal subsidie a propositura da ação civil? Os dispositivos ainda estabeleceriam que, após a instauração do ICP, o prazo prescricional permaneceria suspenso somente por 180 dias, voltando a correr após o decurso do prazo. Essa regra, combinada com o novo termo inicial do prazo prescricional de 05 anos, que passaria, conforme o substitutivo, a ser a data da ocorrência do fato (art. 23, caput), em muito concorreria para a impunidade das práticas de improbidade administrativa. Os atos de corrupção, no mais das vezes, não ocorrem às escâncaras, mas, sim, na clandestinidade. Assim, estabelecendo a data da ocorrência do fato como termo “a quo” do prazo prescricional e um curtíssimo prazo improrrogável de 180 dias de suspensão da prescrição em virtude da instauração do ICP, o texto substitutivo contribuiria para a prescrição da maioria dos atos de improbidade e, via de consequência, para a impunidade dos agentes públicos e terceiros ímprobos.

O substitutivo ainda acarretaria uma maior morosidade da ação de improbidade ao manter a dispensável defesa preliminar do réu (art. 17, § 7º) com a previsão de que este deverá ser notificado para, em 15 dias úteis, apresentar tal peça processual. Tal fase do procedimento é dispensável, visto que na admissão da ação civil de improbidade milita o princípio do “in dubio pro societate” e o réu terá a oportunidade de aduzir toda a sua matéria de defesa na contestação. Já falando da contestação, o texto alternativo proporia, ainda, o injustificado alongamento do prazo para a defesa que variaria de 30 a 60 dias a critério do juiz. Ora, somados os prazos da defesa preliminar e da contestação, as ações de improbidade administrativa caminhariam a passos lentos.

Quanto às decisões judiciais no âmbito da ação de improbidade administrativa, o texto substitutivo faria modificações que, salvo melhor juízo, em nada ajudariam no combate às práticas ímprobas na Administração Pública. O texto alternativo estabeleceria no artigo 17, § 8º, inciso I, alínea  “c”, que o juiz poderá rejeitar a inicial, mesmo antes da instrução processual, caso reste convencido da existência de dúvida fundada sobre a responsabilidade do agente. Acredita-se que tal solução violaria o devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/88) por cerceio ao direito à produção de prova, visto que retiraria do Ministério Público e dos demais legitimados para a ação civil a possibilidade de demonstrar, por todos os meios legais ou moralmente legítimos, a prática da improbidade. A fundada dúvida sobre a responsabilidade do agente só pode ser dirimida por meio de dilação probatória, não devendo haver antecipação de juízo de mérito nessa fase preliminar.

Ainda seria problemática a redação que teria sido proposta pelo substitutivo para o artigo 16 da LIA que trata da indisponibilidade liminar de bens dos réus da ação de improbidade. Atualmente, basta a demonstração da probabilidade da ocorrência do ato de improbidade e de sua autoria para o deferimento liminar da indisponibilidade, em típica tutela de evidência (art. 311 do CPC). No entanto, a proposta alternativa ao texto original do PL nº 10.887/18 tentaria emplacar a necessidade de demonstração do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo para a indisponibilidade de bens, transformando-a em tutela provisória de urgência (art. 300 do CPC). Demonstrar tais requisitos, no mais das vezes, é impossível ao autor da ação de improbidade em razão das peculiaridades da própria prática dos atos ímprobos e de suas consequências lesivas. A decretação de indisponibilidade dos bens dos réus é uma medida que visa garantir a eficácia da futura decisão judicial, mormente naquilo que diz respeito ao ressarcimento ao erário.

O texto substitutivo do PL nº 10.887/18 ainda proporia, no que tange à decisão judicial, medidas que, salvo melhor juízo, não ajudariam no efetivo zelo pela coisa pública: a) que a exemplo da sentença penal, a sentença cível produzida em outro processo que reconheça a inexistência do fato ou que negue a autoria geraria efeitos na ação de improbidade administrativa (art. 21, § 3º). Nada mais equivocado, eis que, ao contrário da jurisdição penal, onde há uma jurisdição exauriente por excelência, a jurisdição civil comum contenta-se com a mera verdade formal e não possui uma cognição tão plena como a realizada no juízo criminal. Não se afigura apropriado aproveitar os efeitos de uma sentença cível comum no âmbito de uma ação que lida com o Direito Administrativo Sancionador em matéria tão importante como é a improbidade administrativa. b) as sanções decorrentes da prática de ato de improbidade administrativa, como a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, as multas civis e o ressarcimento ao erário só poderiam ser executadas após o trânsito em julgado da condenação (art. 12, § 7º). Essa proposição impediria a execução provisória da condenação de pagar quantia.

O substitutivo ao texto original do PL nº 10.887/18 possuiria vários outros pontos, no mínimo, questionáveis. O que é importante ressaltar é que a Lei nº 8.429/92 é um dos  instrumentos mais importantes do microssistema de combate à corrupção do Direito Brasileiro. É uma lei que joga duro com práticas ímprobas e buscar retirar da cena pública os agentes que possuem condutas em desacordo com o honesto proceder perante a Administração Pública. Zelar pela máquina pública significa respeitar cada centavo depositado pelo cidadão pagador de tributo. E só se zela por algo se há meios eficazes de inibir e reprimir práticas desonestas que fomentam o enriquecimento ilícito, dilapidam o patrimônio público ou desrespeitam os princípios administrativos mais caros, mormente os do artigo 37, caput, da CF/88 e os que constam na LIA.

Espera-se que o texto substitutivo nem seja apresentado formalmente à Comissão Especial Sobre Improbidade Administrativa e que sejam mantidas as propostas originais do PL nº 10.887/18 com os melhoramentos sugeridos pelos juristas e demais expositores ouvidos nas audiências públicas já realizadas. A Lei nº 8.429/92, de fato, deve ser modificada para adaptação aos novos tempos e às novas práticas administrativas. Mas essa modificação não pode prejudicar o combate à corrupção e a proteção à probidade na Administração Pública.

 

 

Notas e Referências

[1]      BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n° 10.887, de 2018. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2184458>. Acesso em 04 set. 2020. 

[2] BRASIL. Lei 8.429, de 2 de junho de 1992. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm>. Acesso em: 04 set. 2020.

[3]      Revista Istoé. Promotores vêem ‘excludente de ilicitude intolerável’ em nova Lei de Improbidade. Edição nº 2643 04/09. Publicado em: 30 ago. 2020. Disponível em: <https://istoe.com.br/promotores-veem-excludente-de-ilicitude-intoleravel-em-nova-lei-de-improbidade/>. Acesso em: 04 set. 2020.

[4]      BRASIL. Ministério Público Federal. Nota técnica aponta retrocessos ao combate à corrupção em proposta em discussão na Câmara. Publicado em: 27 ago. 2020. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/nota-tecnica-aponta-retrocessos-ao-combate-a-corrupcao-em-proposta-em-discussao-na-camara>. Acesso em: 04 set. 2020.

 

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