Eu quero seu DNA: os limites da investigação criminal

02/02/2016

 Por Alexandre Morais da Rosa e Rômulo de Andrade Moreira - 02/02/2016

Suponhamos o seguinte caso: no decorrer de uma investigação policial, a autoridade solicita ao Juiz de Direito que determine a identificação criminal do indiciado, sob o fundamento de que tal providência seria essencial às investigações policiais, nos termos do art. 3º, IV da Lei nº. 12.037/2009.

No pedido, o Delegado de Polícia requer, outrossim, que a identificação criminal seja feita mediante a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético, como permitido no parágrafo único do referido dispositivo legal.

Ouvida a defesa, ad cautelam, o advogado do indiciado contestou o requerimento/representação da autoridade policial, argumentando que o indiciado já estava civilmente identificado com carteira de identidade, carteira de trabalho e passaporte, em conformidade com o art. 2º., I, II e IV da mesma lei, invocando, ademais, o art. 5º, LVIII ("o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei") e LXIII ("o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado"), bem como o art. 8º, 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e o art. 14º., 3, g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York.

Conclusos os autos do procedimento investigatório, o Juiz de Direito proferiu decisão determinando a realização compulsória da identificação do perfil genético, mediante extração de DNA - ácido desoxirribonucleico –, por técnica adequada e indolor (como determina a lei), devendo os respectivos dados ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal, no termos do art. 9º-A da Lei nº. 7.210/84 (Lei de Execução Penal).

Intimada a defesa da decisão, o advogado peticionou ao Delegado de Polícia e ao Juiz de Direito informando que o seu cliente não iria se submeter à realização da coleta do material, tendo em vista o princípio nemo tenetur se detegere, segundo o qual, "ninguém é obrigado a se descobrir" ou "nada a temer por se deter".

Pergunta-se: o que fazer? Compele-se o sujeito a se submeter à coleta ou respeita-se o seu direito de não autoincriminação? No primeiro caso, como se cumprirá a determinação judicial? E se houver resistência física? Será chamada a força policial? O indiciado será imobilizado e conduzido à força para o local da coleta? Mas, a lei não exige que não haja dor? Como imobilizar sem dor?

Pois bem.

A questão posta passa pela análise do referido princípio consubstanciado na expressão nemo tenetur se detegere, traduzido no Direito anglo-americano pelo privilege against self-incrimination, do qual decorre, aliás, o direito ao silêncio, afirmado por Carrara, em seu Programa, ao também reconhecer que o acusado tinha o "direito de calar e que não lhe poderia advir qualquer prejuízo na recusa a responder, e muito menos constituir isso uma nova circunstância agravante."[1]

Esse princípio encontra-se expresso, por exemplo, no art. 24, 2 da Constituição Espanhola, afirmando-se que "todas las personas tienen derecho (...) a no declarar contra sí mesmos, a no confesarse culpables y a la presunción de inocencia." (grifamos).[2]

Comentando este dispositivo, J. Alberto Sanz Díaz-Palacios, observa que as três expressões "designan idéntica garantía jurídica, y que ésta incluye el derecho a no confesarse culpable y, como una modalidad cualificada de la misma, el derecho al silencio." E, referindo-se às lições de Díez-Picazo Giménez, afirma que "el derecho a no declarar contra sí mesmo  y a no confesarse culpable no sólo se ejercita negándose a responder total ou parcialmente a los requerimientos de los poderes públicos, sino también faltando a la verdad."

Cita, também, decisões do Tribunal Constitucional Espanhol, "en el Fundamento Jurídico 6º. de su Sentencia 197/1995, de 21 de deciembre", na qual foi expressamente declarado que ninguém, "en ningún caso pueda ser forzado o inducido bajo constricción o compulsión alguna, a declarar contra sí mesmo o a confesarse culpable (SSTC 36/1983, fundamento jurídico 2º.; 127/1992, fundamento jurídico 2º.)." Em outra decisão, o mesmo Tribunal, "en su Sentencia 161/1997, de 2 de octubre; el Fundamento Jurídico 5º. de la misma establece: (...); esta carga no se puede trocar fácticamente haciendo recaer en el imputado la obligación de aportar elementos de prueba que supongan una autoincriminación."[3]

Evidentemente, no caso das intervenções corporais e, mais especialmente, para efeito de identificação criminal via extração de material biológico como permite a nossa legislação e a de outros países (Itália e Alemanha, por exemplo), a situação não é fácil de ser resolvida (e está longe de ser um ponto pacífico na doutrina e na jurisprudência), tendo em vista as disposições acima referidas, sejam os artigos da Constituição da República, bem como os dispositivos dos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos que subscrevemos e estão incorporados ao nosso ordenamento jurídico como normas supralegais.

Obviamente que não estamos entre aqueles que fazem de uma cláusula constitucional (ou convencional) sobre direitos e garantias fundamentais uma leitura restritiva, verdadeira tabula rasa, muito pelo contrário![4] Aqui, deve prevalecer sempre, ainda mais em Processo Penal, uma leitura em que se garanta aos respectivos dispositivos a máxima proteção aos acusados em geral e a máxima efetividade, mesmo porque, “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê”, conforme lição de Canotilho.[5]

Sendo assim, entendemos que o direito ao silêncio, declarado em nossa Constituição, e o de não se declarar culpado, previsto em ambos os Documentos Internacionais, desobrigam o indiciado ou o acusado, compulsoriamente, a submeterem-se a coleta de material biológico para efeitos de identificação criminal (ou por qualquer outro método, fotográfico ou datiloscópico), sendo nulos "los posteriores análisis genéticos que se pratiquen sobre dicho material", "cuando se estime que la extracción u obtención del material celular necesario para la práctica de la huella genética há vulnerado algún derecho fundamental (integridad física, intimidad, etc.)."[6]

A propósito, analisando o Direito Comparado, Benjamim Silva Rodrigues, rechaçou todas as argumentações em contrário ao nosso entendimento, "já que não se vê como alguém que é alvo de uma ingerência corporal não está a contribuir para a sua auto-incriminação, sobretudo se a prova, a final, apenas vier a assentar em tal meio de prova que, de outro modo - sem tal colheita coerciva ou mediante consentimento do visado - não existiria. Do que se grata é de se colocar ´a falar o corpo` quando o titular desse corpo o pretende ´calar`, ao não falar, seja com palavras ou com informação retirada do seu silente e não colaborante corpo." Este autor português afirma estar, como nós, ao "lado daquela doutrina que exige, quer ao nível dos exames de ADN, quer ao nível dos exames de alcoolemia - com recolha de sangue - a colaboração activa do visado e a advertência de que lhe assiste a faculdade de não colaborar sob pena de lesão do princípio  da plenitude das garantias de defesa, nomeadamente ao nível do direito à não-autoincriminação em virtude do que se crisma de privilege against self-incrimination e do princípio da presunção de inocência."[7]

Vejamos esta decisão do Supremo Tribunal Federal, ainda que se trate de decisão proferida em uma causa cível, mas com muito mais razão válida para o processo penal, por razões óbvias, proferida no Habeas Corpus nº. 71373/RS: "Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, "debaixo de vara", para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos." (Relator para o acórdão, Ministro Marco Aurélio).

Portanto, para finalizar, entendemos que a previsão infraconstitucional da possibilidade de intervenção corporal no direito brasileiro para fins de identificação criminal ou mesmo para fins de execução da pena, esbarra de forma impermeável no dispositivo constitucional que declara o direito ao silêncio e nos Pactos Internacionais que proíbem o direito de não autoincriminação, nada obstante estarmos cientes, como sempre estivemos, "que las opiniones consagradas por la prática de los tribunales y transmitidas con la veneranda autoridad de los magistrados, son las más difíciles y espinosas de remover, y no puedo lisonjearme de que vaya a reformarse de golpe en nuestros días todo el amasijo de opiniones que gobiernan la jurisprudencia criminal. Todos los que tienen parte en ella creen que es indispensable para la seguridad pública mantener la práctica vigente: su opinión, sea verdadera o falsa, no prejuzga acerca de la pureza del fin que les mueve."[8]

O drible investigatório, todavia, pode ser realizado mediante as famosas e ilegais conduções coercitivas (analisadas aqui), já que o investigado/acusado estará, mesmo que por certo tempo, sob a tutela estatal, dentro de repartição pública, momento em que eventuais fios de cabelo, saliva, excrementos, suor, etc., poderão ser captados pelo Estado. Todavia, manipulada dessa forma, a obtenção será um ardil fraudulento, espécie de doping[9], pelo qual se fraudará a investigação.


Notas e Referências:

[1] CARRARA, Francesco, Programa do Curso de Direito Criminal, Parte Geral, Volume II, Campinas: LZN Editora, 2002, p. 413 (nota de rodapé nº. 194).

[2] "Durante o julgamento, concluiu que os juízes não tinham o direito de julgá-lo e declarou isso. Quando os juízes discordaram dele e continuaram a julgá-lo, Simonson resolveu que não ia responder e calou-se diante de todas as suas perguntas." (Ressurreição, TOLSTÓI, São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 358).

[3] DÍAZ-PALACIOS, J.Alberto Sanz, Derecho a no autoinculparse y delitos contra la hacienda pública, Madrid: Editorial Colex: 2004, páginas 53 e 54.

[4] "Há um princípio de direito natural que se sobrepõe a todos os métodos e sistemas de repressão penal: é o do domínio, pelo homem, do sagrado e indevassável recinto da consciência. A violação desse direito, seja a que pretexto for, é sempre atentado repugnante." (NEVES, Serrano, O Direito de Calar, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 11). Segundo ele, o livro era "uma calorosa mensagem de esperança dirigida aos mártires da truculência policial e do exagerado arbítrio judicial." (p. 11). Segundo este autor, tem o indiciado "irrecusável direito ao silêncio. Sua sujeição, portanto, pelas autoridades, a pesquisas de laboratório, à fadiga, à arapuca das cartas fraudadas, ao instrumental e à farmacopeia policialesca ad eruendam veritatem é comportamento dos mais condenáveis, até mesmo fora dos domínios do direito penal." (p. 41).

[5] CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra: Almedina, 6ª. ed., 2002, p. 1.210.

[6] GURIDI, José Francisco Etxeberría, Los análisis de ADN y sua aplicación al proceso penal, Granada: Editorial Comares, 2000, p. 313.

[7] RODRIGUES, Benjamim Silva, Da Prova Penal, Tomo I - A Prova Científica: Exames, Análises ou Perícias de ADN?, Coimbra: Rei dos Livros, 2010, páginas 277 e 278.

[8] VERRI, Pietro, Observaciones sobre la tortura, Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1997, p. 129.

[9] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015.


Alexandre Morais da Rosa. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com / Facebook aqui


Rômulo de Andrade Moreira. Rômulo de Andrade Moreira é Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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