ÉTICA, MORAL  E DESEJO EM TEMPOS SOMBRIOS  

12/10/2018

 

A noite desceu. Que noite!

Já não enxergo meus irmãos. 
E nem tão pouco os rumores que outrora me perturbavam. 

A noite desceu. Nas casas, nas ruas onde se combate, nos campos desfalecidos, a noite espalhou o medo e a total incompreensão. A noite caiu. Tremenda, sem esperança...

(...)

Aurora, entretanto eu te diviso, ainda tímida, inexperiente das luzes que vais ascender e dos bens que repartirás com todos os homens.

Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações, adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva noturna[1]

(...)

 

-Carlos Drummond de Andrade

 

Numa notícia de jornal eletrônico[2],  publicada em Aracaju, capital do Sergipe, o tema das fantasias de carnaval evoca uma importante questão no campo da filosofia e também da política, a saber, a distinção entre ética e moral.

Da celebração do carnaval ao momento presente, temos um período de polarização político-ideológica que chega ao seu clímax e nos vemos perplexos diante do irracionalismo, da intolerância e da recusa ao bom combate de ideias.

Segundo Marcondes (2007, p. 9), “a palavra ‘ética’ origina-se do termo grego ethos, que significa o conjunto de costumes, hábitos e valores de uma determinada sociedade ou cultura”. O autor explica que “os romanos o traduziram para o termo latino mos, moris, (que mantém o significado de ethos), dos quais provém moralis, que deu origem à palavra moral em português. Por isso, a depender do autor em questão, fica difícil empreender distinção entre um significante e outro.

Aranha e Martins (2009, p.214) sustentam que por moral deve se entender “o conjunto de regras que determinam o comportamento dos indivíduos em um grupo social”, ao passo que a ética é “a reflexão sobre as noções e princípios que fundamental a vida moral”. Numa certa tirinha de Calvin e Haroldo[3], podemos notar a presença da reflexão ética sobre o comportamento moral que se espera dos indivíduos numa sociedade compromissada com valores democráticos.

    Como o próprio texto indica, Calvin, de maneira inteligente e perspicaz, coloca-se um dilema, ou seja, ele assume-se como sujeito de suas escolhas: “Hoje, no colégio, tive que decidir se ia colar na prova ou não”. Assim, o que ele está nos dizendo é que a moral possui um caráter social e também pessoal. Ele nos coloca diante dois polos opostos: a moral social, de um lado; e o desejo de Calvin, na base de sua moral individualizada, de outro.

Se Calvin fosse alguém inclinado somente a reconhecer o caráter social da moral, ele renunciaria a sua condição de sujeito, sua autonomia e o seu desejo, sucumbindo diante da repressão e ao dogmatismo, simplesmente obedecendo sem maiores discussões a coação moral externa. Mas, não é o que ocorre, pois ele já admite a sua responsabilidade diante das escolhas que precisa fazer na vida: “tive que decidir” não vem precedido de nenhuma ordem externa para decidir se ia colar ou não.

Por outro lado, se Calvin não tivesse que fazer tal escolha e simplesmente desse livre curso aos seus impulsos para colar e obter êxito na prova, ele não teria tomado uma decisão realmente ética, fruto de sua escolha consciente, mas teria sucumbido ao império de seus caprichos pessoais.

Além disso, Calvin diz algo muito importante quando afirma que se decidisse colar, não estaria prejudicando a ninguém e que tal raciocínio poderia ser expressão de uma “racionalização”, que a nossa leitura de mundo permite identificar como um dos mecanismos de defesa do eu, no jogo de linguagem da psicanálise e amplamente utilizado por Freud em seus inúmeros textos[4].

A racionalização consiste na estratégia do Eu para se defender da severidade do Super-eu, principalmente em sujeitos de estrutura neurótica, já que o de estrutura perversa não sente culpa, diminuindo assim a angústia vivenciada pela quebra da norma “não colarás”!

Para um autor como Kant (1724-1804), Calvin não teria outra saída senão desistir de colar, já que esta prática não poderia ser um imperativo categórico, ou seja, uma máxima que pudesse ser elevada à condição de lei universal. Uma vez que colar na prova não pode ser um imperativo categórico, conforme o racionalismo ético kantiano, Calvin estrutura o seu dilema.

O dilema é um tipo de argumento em que duas saídas são oferecidas ao problema, mas em ambas, o resultado é o mesmo. E qual é este resultado ou efeito? A sensação de angústia pela falta, pela insatisfação. Assim, se ele decidir colar na prova ficará insatisfeito por saber que é indigno da nota eventualmente tirada; por outro lado, se não colar, ficará insatisfeito com o resultado insuficiente da prova. Em ambos os casos, ele perde. Daí por que ele escolhe entregar a prova em branco e justifica: “Bem, me parecia errado colar num exame de Ética”.  Ora, é esta disposição para perder que não se verifica naqueles que preferem tamponar a falta com qualquer coisa que não os faça experimentar a frustração de saber que não pode e não sabe tudo.

A charge de Calvin e Haroldo está relacionada com a notícia que escolhi para refletir sobre ética e moral pelo fato de que o homem contemporâneo ainda se mostra resistente ao exercício do autoconhecimento toda vez que evita refletir sobre si mesmo e sobre a sociedade da qual é parte constituinte. O próprio significante “malévola” nesse atual contexto de polarizações ideológicas e “delações premiadas” é bastante simbólico, pois somente as práticas alheias são consideradas malévolas, somente aquelas parecem ser imorais ou antiéticas para aqueles que se sentem credores de alguma compensação por tolerar e aceitar conviver com outros que não hesitam em quebrar as regras da vida social,  mormente os políticos cujo discurso é, quase sempre,  o de denúncia das velhas práticas da politicalha brasileiras.

De fato, desde cedo, em casa e na escola, somos tratados como malévolos quando entramos em desacordo com a moralidade social, ou virtuosos quando em conformidade com ela.

Marcondes (2007, p. 87) observa que, para Kant, “os deveres morais são válidos incondicionalmente”, é dizer, são ‘princípios que não admitem exceção”. No entanto, nem mesmo Kant foi este homem abstrato que age em conformidade com a razão todo o tempo. Por outro lado, contradizer-se, por ser inevitável, não faz de ninguém o pior dos seres. Não reconhecer nossas contradições e ambiguidades, é certo, nos desumaniza.

Ao discorrer sobre as fantasias usadas neste último carnaval num famoso evento carnavalesco da cidade de Aracaju, o Rasgadinho; o jornalista entrevista uma algumas mulheres, entre elas algumas crianças,  uma jovem mãe com suas filhas e uma professora que se fantasiou de Malévola, personagem interpretada pela atriz norte-americana Angelina Jolie, no filme que conta a história da Bela Adormecida, um clássico da literatura universal, sob um ponto de vista diferente do tradicional em que a dicotomia bem-mal está claramente estabelecida.

A bruxa má, com sua aparência assustadora é sempre a vilã responsável por todos os males causados às pessoas de bem. A professora destaca esta visão estereotipada da história quando observa: “A história da Malévola foi retratada no cinema e é uma personagem que por muito tempo só vimos associada ao lado ruim da história, mas ela tem o lado dela”.

É interessante notar que, de fato, não é a presença de uma fantasia de vilã no carnaval, o que chama a atenção nesta notícia, o que, de resto, é muito comum, mas o comentário da professora que acaba por “desbanalizar o banal”, expressão utilizada pelo filósofo paulista Paulo Guiraldelli Junior para definir o propósito da filosofia[5]. Na medida em que se abre a possibilidade de se pensar em razões ignoradas que relativizam a identidade de um vilão numa história de conteúdo moralizante já cristalizada no imaginário popular, aquilo que já estava estabelecido como verdade absoluta deixa de sê-lo.

A moral, não há negar, é um fenômeno histórico-cultural que varia de uma época para a outra num mesmo local, e varia de uma cultura para a outra sendo mais ou menos internalizada pelos indivíduos sem receber muita resistência, sendo certo que o grupo social no qual está inserido o indivíduo está sempre pronto a punir aqueles que ofendem a moral social, por isso dizemos que ela tem um caráter obrigatório. Daí porque as fantasias de carnaval chamam a atenção, pois fogem do que é comum e trivial, já que o carnaval é este “afrouxamento temporário” das regras morais impostas pela sociedade aos indivíduos.

A ética, por outro lado, entendida aqui como reflexão sobre a moral, exige razões para a ocorrência de determinadas condutas e sua avaliação como boas ou más, justas ou injustas. Se, no caso em tela, a professora não sublinhasse o caráter engessado de uma interpretação da história em que a Malévola é simplesmente o oposto da Bela Adormecida e não destacasse o “lado” em que a vilã se encontra, não teríamos parado para refletir nas razões pelas quais algo ou alguém chega a ser o que é. A pergunta pelo processo de constituição da identidade é, sem dúvida, uma questão que impressiona não apenas a filósofos, mas também a psicólogos e sociólogos, devido ao seu caráter complexo.

De qualquer modo, embora as definições de moral e ética variem tanto quanto variam os autores que tratam do tema, o fato é que ambos os significantes são distintos e possuem vários significados diferentes ao mesmo tempo em que são utilizados muitas vezes como sinônimos. Portanto, a importância da filosofia moral para discutir o problema ético se torna evidente.

Se, de um lado, a moral é importante para garantir uma certa estabilidade social, por outro, a moral pode prejudicar o indivíduo, tornando-o vítima do poder coercitivo do grupo. Neste sentido, passa a ser importante também distinguir entre o direito e a moral, os quais têm alguns pontos de convergência, como o caráter normativo e obrigatório, sem deixar de apresentar grandes diferenças, sobretudo, se considerarmos o direito democrático das sociedades contemporâneas onde o respeito às diferenças é fundamental.

A moral de um determinado grupo social pode levá-lo a agredir uma mulher fantasiada como um ser malévolo por ser considerada uma péssima influência para as crianças e jovens e, portanto, devido ao seu comportamento imoral. Nesse caso, o Direito positivo, com suas normas imperativas, vem ao socorro desta mulher a fim de protegê-la dos efeitos moralizadores de alguns que se dispõem a transgredir o direito em nome da moral.

Assim, do ponto de vista ético e jurídico, é reprovável (e criminosa) a conduta de um homem que difama uma mulher ou agride-a porque, de acordo com sua moral, uma mulher decente não se veste de determinada maneira em público, ainda que este se considere a pessoa mais virtuosa do mundo.

De qualquer modo, prefiro ainda pensar como o poeta paquistanês: “Em algum lugar entre o certo e o errado existe um jardim. Lá o encontrarei”![6]

 

 

NOTAS E REFERÊNCIAS

ACHA; Juan Antonio; PIVA; Sérgio Ibanor. Ética 1. Batatais, São Paulo: Claretiano,2013.

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Editora Moderna, 2009.

FREUD, Sigmund. O Eu, o Id, Autobiografia e outros textos. (1923-1925). Trad. Paulo César de Souza. Col. Obras completas, v. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

JUNIOR, Paulo Guiraldelli. A filosofia como desbanalização do banal. Disponível em: https://www.dailymotion.com/video/x770l9 Acesso em: 21/02/2018.

MARCONDES, Textos básicos de Ética: De Platão a Foucault. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

[1] Disponível em: https://lituraterre.com/2011/04/24/a-noite-dissolve-os-homens-por-drummond/ . Acesso em 06/10/2018.

[2] Disponível em: https://infonet.com.br/uncategorized/fantasias-chamam-a-atencao-no-rasgadinho/. Acesso em 06/10/2018.

[3] Disponível em: https://opiniaocentral.wordpress.com/2017/02/13/sabedoria-de-calvin-e-haroldo-qual-o-fundamento-da-etica/ Acesso em 05/05/2018.

[4] Por todos, O Eu e o Id, Autobiografia e outros textos (1923).

[5] JUNIOR, Paulo Guiraldelli. A filosofia como desbanalização do banal. Disponível em: https://www.dailymotion.com/video/x770l9 Acesso em: 14/02/2018.

[6] Disponível em: http://www.raph.com.br/tpr/livros/RumiADancaDaAlma_AmostraGratis.pdf. Acesso em 06/10/2018.

 

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