Estudar, para quê? (Parte 2)

22/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 22/03/2015

Los humanos hacen su propio cerebro pero no saben que  lo hacen.” 

                     Catherine Malabou

Na verdade, o saber, tal como se pratica hoje em dia, deixou de ser um “bíos theoretikós”, um mestre da vida, uma forma de como elegemos viver. E a separação ou dicotomia entre o que se “é” e o que se “faz”, entre o “estudar para saber” (“estudar como um fim”) e o “estudar para aprovar” (“estudar como um meio”), é a principal consequência dessa forma de alienação, a negação de realizar nosso ser “em situação”, o oposto de uma atividade autotélica[1].

Idealmente, não se estuda para outro, senão para si mesmo, para perceber, entender e viver melhor. Somos o resultado de nossos estudos e do que aprendemos, sua encarnação, sua consumação, seu corolário. Quando estudamos para saber, não somente interiorizamos os novos conhecimentos, fazemos nosso o que aprendemos e convertemos em familiares o estudado, senão que também alcançamos, ao final do processo, a excelência que transmite uma profunda satisfação pessoal de domínio e a confiança necessária em nossas próprias capacidades e possibilidades intelectuais: “Isso eu já sei!”.

Um indivíduo que se cultiva (a si mesmo) em uma área de conhecimento humano acaba assumindo por completo o controle de sua formação, além de adquirir uma espécie de autoconfiança e motivação que não demande nem prometa nada que não possa cumprir as exigências de cada dia. Em lugar de dedicar-se a aprender de memória o conteúdo do objeto estudado ou aceitar e contentar-se sem exame com as palavras do vizinho, interroga, pede razões, busca os conceitos, os fundamentos, os “porquês”, o “como” e o “para quê” das coisas. Revisa suas debilidades e dificuldades e as corrige até estar seguro de haver superado e compreendido completamente o assunto estudado. Estuda porque quer aprender para saber e com um compromisso de eficácia, nobreza e aperfeiçoamento pessoal (e não somente para superar, por exemplo, as provas de um concurso qualquer).

A tarefa que desenvolve (estudar) passa a ser uma práxis vital, uma forma de viver, uma ética pessoal. Aprende a desfrutar daquilo que faz e a lograr uma personalidade autotélica: de um indivíduo capaz de estabelecer suas próprias metas e cuja vontade e disposição faz com que a atividade de estudar valha a pena fazê-la por si mesma, se valore por si mesma, independentemente de suas consequências ou de qual seja o resultado desejado. É a plena convicção de estar desfrutando muito mais da atividade enquanto a realiza e aprendendo muito mais sobre o que estuda, do que quando o faz de forma desapaixonada e/ou descomprometida[2].

É deixar-se levar por uma corrente que concentra toda nossa atenção em um arrebato de energia harmônica, uma sensação de controle sobre nossas atividades e objetivos que eleva-nos por encima de nossas ansiedades e abulia, e em que tudo sucede de forma serena, equilibrada, sem problemas ou sacrifícios. É sentir entusiasmo por formar parte do “processo” daquilo que se está fazendo; de, por meio de sua instrução, definir-se e adquirir certos hábitos espirituais e certa visão da vida e do mundo (B. Russell).

Esta prática sólida e rigorosa de saber, que incide na orientação de nossas vidas, é o resultado da inefável sensação (i) de assumir o esforço, a dedicação e a perseverança como uma força positiva e construtiva, e não como uma enorme e pesada carga, e (ii) de pensar “siempre en cuán lejos hemos llegado, no en cuán lejos tenemos que ir” (W. Bligh). Um tipo de conhecimento que, transformando-nos, convertemos em “substância própria” (Epicteto).

Se um indivíduo, com toneladas de determinação, fortaleza mental e autêntica tenacidade, estuda realmente porque deseja aprender, se entende o que quer e quer o que faz, se tem esse objetivo que considera como próprio e ao que quer dedicar-se por si mesmo (e não somente por seu valor instrumental), então esse estudo/aprendizado passa a ser parte integral de sua personalidade, a ser sua própria pessoa, sem correr o risco de perder-se nos desvarios de uma mente vagabunda.

E todo o conhecimento adquirido - o qual, insisto, não é possível sem interesse, esforço, concentração e motivação -, uma vez incorporado dentro de um marco geral de valores pessoais, não somente não será olvidado ou descartado do horizonte de quem o possui, senão que seguramente afetará e influirá os mecanismos cerebrais que definem em essência quem somos e quem seremos.

Enfim, que a experiência de estudar para saber, recuperando velho lema dos humanistas florentinos da “Virtú vince fortuna”, praticando a tradição do cultivo de si mesmo, exercendo nossas melhores capacidades autotélicas e dando o melhor de nós mesmos para chegar a ser o melhor que podemos chegar a ser, é a maneira mais poderosa para lograr a “autonomia do espírito” (Kant) e para fazer com que o conhecimento obtido adquira um sentido verdadeiramente transcendente: não somente uma manifestação do que somos capazes de aprender e saber, senão de tudo aquilo que devemos esforçar-nos por chegar a aprender e saber.

Esta é a única forma de estudo que dinamiza, enobrece e enriquece o autoconhecimento, a firmeza do espírito, a integridade pessoal e o domínio de si mesmo, “que es donde reside verdaderamente la virtud (Montaigne). Este, e somente este, é o tipo de estudante que nunca volta à casa.


Notas e referências:

[1] Atividade ou ação autotélica é uma atividade livre, voluntária e não motivada por interesses de outra ordem ou forçada por uma circunstância, posição ou necessidade pessoal; uma atividade que traz a recompensa em si mesma, nos próprios meios ou no processo de sua execução; uma atividade que compensa a quem a realiza e que, por isso mesmo, proporciona inestimáveis retribuições internas. Um exemplo importante – ademais de clássico – é o do trabalho. O jovem Karl Marx condenava a alienação do trabalho sob os regimes econômicos de propriedade privada precisamente porque impediam que fosse uma atividade autotélica, quer dizer, “una actividad que tiene algún fin en sí misma. Al contrario: para el grueso de la población, trabajar significa sudor, lágrimas, y muchas veces, sangre” (A. Domènech).

[2] As pessoas que desfrutam daquilo que fazem, que não deixam de aprender e melhorar suas capacidades, que estão tão decididas a alcançar seus objetivos (por difíceis que sejam) e que são capazes de afrontar as adversidades e obstáculos com essa implicação e entusiasmo, são as que logram uma personalidade verdadeiramente autotélica: pessoas dedicadas a uma atividade que vale a pena fazê-la por si mesma, porque vivê-la é sua principal finalidade. Uma personalidade que permite um estado de concentração ou atenção sem esforço e tão profundo que perdem seu sentido de tempo e de si mesmos, e olvidam seus problemas. Este “fluir”, segundo M. Csikszentmihalyi, separa nitidamente as duas formas de esforço: a concentração em uma tarefa e o controle deliberado da atenção. Em um estado de fluir (próprio de uma personalidade autotélica), no qual se mantém a atenção concentrada em uma atividade que nos absorve, não se requer exercer qualquer tipo de autocontrole, pois se liberam espontaneamente os recursos (cognitivos e emocionais) precisos para a tarefa. E ainda que esse tipo de personalidade não garanta que tudo sairá bem, seguramente servirá para desfrutar muito mais da atividade enquanto a realizamos e para aprender muito mais sobre o que estudamos do que quando o fazemos de forma abnegada ou visando apenas o resultado. Há que aprender a deleitar do “processo”, posto que sem este não desenvolvemos a capacidade de introspecção para questionar e sair de nossa zona de comodidade, a capacidade de reflexão para processar a informação e transformá-la em conhecimento, para filtrar o que importa e o que não, para fazer nosso ou assimilar em nossa bagagem pessoal o que parece relevante, para fazer eleições, tomar decisões e atuar livremente em base a uns critérios sólidos. Resumindo, em nossos momentos de estudo há que tentar praticar essa capacidade de “ser” e “estar”, nada mais; ou, como diria Montaigne: “Quando bailo, bailo; quando durmo, durmo”.


 


 

 

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