Estatuto da Criança e do Adolescente - 30 anos – os desafios continuam

28/07/2020

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann

O Estatuto da Criança e do Adolescente completa neste ano de 2020 trinta anos[1]!!! Oportuno recordarmos que o Estatuto da Criança e do Adolescente constitui uma das primeiras legislações que surgiu pós um longo período histórico, o do golpe civil militar, que resultou em uma ditadura, que se estendeu por mais de 20 anos. O Ato Institucional n. 4, de 9 de abril de 1964, que ratificou “Revolução Brasileira de 31 de março de 1964” e, em especial, o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, conhecido como AI 5, o qual sustou direitos políticos, obstou garantias, sufocou toda e qualquer possibilidade de manifestação/mobilização, sob o véu de uma suposta legalidade.

Em termos normativos na área da criança e do adolescente, a ditadura militar teve a sua vigência com os dois Códigos de Menores, o de 1927, conhecido como Código Mello Mattos e, praticamente já nos últimos anos do período ditatorial, como ainda um último respiro, o Código de Menores de 1979.

Sinteticamente, o Código de Menores de 1979 foi o propagador de um modelo tão intenso: o da Doutrina da Situação Irregular, que revogado em 1990, ainda está, infelizmente, presente no vocabulário de muitas pessoas, em especial, juízes, promotores, delgados, professores e também da mídia.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi “escrito” como fruto de uma grande mobilização social que, com a abertura política do país, torna ainda mais claro que o sistema menorista vigente, em sua essência repressivo, era explicitamente violador dos direitos humanos da criança e do adolescente. Deste modo, o advento da Lei n. 8.069/1990 significou para o Direito da Criança e do Adolescente uma verdadeira revolução, ao adotar a Doutrina da Proteção Integral.

Segundo essa Doutrina toda criança e adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento, estão a necessitar de uma proteção especializada, diferenciada e integral.

O Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe este primeiro e pioneiro conteúdo, qual seja, a universalização de Direitos: todas as pessoas com menos de 18 anos de idade devem ser contempladas por esta norma. Sendo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que o difere do Convenção sobre Direitos da Criança, de 1989[2], estabelece uma distinção cronológica (não de direitos) entre criança – pessoas de até 12 anos de idade incompletos e o adolescente, entre 12 e 18 anos incompletos.                         

A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, dispõe em seu art. 227, em sua escrita original, caput:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão[3].

Como percebemos, a atual Constituição Federal tem essa nova base doutrinária, a qual implica que, fundamentalmente, as crianças e adolescentes brasileiros passam a ser sujeitos de direitos. Nesse sentido, o sujeito de direitos seria o indivíduo apreendido do ordenamento jurídico com possibilidades de, efetivamente, ser um sujeito-cidadão.

A construção de um novo ordenamento jurídico que se ocupasse de forma comprometida com os direitos da criança e do adolescente era de caráter imprescindível, pois havia uma necessidade fundamental, de que passassem da condição de menores, de semicidadãos para a de cidadãos e mais, trouxe a grande possibilidade de construirmos o paradigma de sujeitos, em oposição a ideologia e de toda uma práxis que coisificava a infância.

O Estatuto da Criança e do Adolescente tem a relevante função, ao regulamentar o texto constitucional, de fazer com que este último não se constitua em letra morta. Contudo, a simples existência de leis que proclamem os direitos sociais, por si só não conseguem mudar as estruturas, antes há que se conjugar aos direitos uma política social eficaz, que de fato assegure materialmente os direitos já positivados.

Elemento caracterizador da horizontalidade que constitui a essência dessa lei, trata-se da descentralização e, por conseguinte, da participação. O Estatuto apreende prontamente esta perspectiva e assim, este instrumento jurídico, depois de dedicar-se em seu Livro I a construção, descrição, concepção dos direitos fundamentais, ocupa-se no Livro II, antes de mais nada, da Política de Atendimento.

A implementação deste primeiro elemento - a descentralização - deve resultar numa melhor divisão de tarefas, de empenhos, entre a União, os Estados e os Municípios, no cumprimento dos direitos, em especial, dos sociais. No que tange à participação, esta importa na atuação sempre progressiva e constante da sociedade em todos os campos de ação. Portanto, é necessária a construção de uma cidadania organizada, isto é, a própria sociedade a mobilizar-se. Eis aí o porquê do grande estímulo que o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, dá às associações, na formulação, reivindicação e controle das políticas públicas. As associações, ONGs, grêmios, enfim, todos os mecanismos caracterizadores de um movimento social, pautados na compreensão mais moderna de cidadania, qual seja, a da efetiva participação de cada cidadão, têm lugar de destaque na edificação do Direito da Criança e do Adolescente, enfim, o ser sujeito se consolida, pois não se trata de “aguardar” paternalisticamente a ação do Estado, antes constitui-se num processo de mão dupla: reivindicar e construir.

Assim, o pensar a atuação política na nesta área, deve dar-se nas três esferas que compõem a federação brasileira: o CONANDA (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), o(s)  CEDECA(s) (Conselho Estadual do Direitos da Criança e do Adolescente – presentes em cada Estado) e o (s) CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – presentes em cada município). Na esfera do atendimento direto, tem-se os Conselhos Tutelares, que devem estar em todos os municípios, integrando o sistema de garantia de direitos[4].

Merece destaque outra relevante questão presente na Lei 8.069/1990, que diz respeito a possibilidade dos direitos da criança e do adolescente serem demandados em juízo, na demanda dos

Dentre as inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente podemos destacar, justamente, na possibilidade de cobrar do Estado – “Estado no banco dos réus”[5] - através, por exemplo, da interposição de uma Ação Civil Pública, o cumprimento de determinados direitos como o acesso à escola, a um sistema de saúde, a um programa especial para portadores de doenças físicas e mentais, etc., previstos na Constituição Federal e regulamentados pela Lei 8.069/1990. Enfim, o Poder Público passou a ser demandado em razão de suas seculares omissões. Na nossa concepção, toda ação junto ao Poder Judiciário, visando à garantia dos direitos e interesses individuais, difusos e coletivos, representa uma evolução do processo civilizatório. Eis que se evidencia que não mais é suficiente que os ordenamentos jurídicos proclamem direitos, tornando imprescindível antes que os mesmos sejam concretizados.

O acesso à Justiça se coloca como um dos direitos humanos, isto é, consiste num caminho ou numa possibilidade de que os direitos existentes a nível formal, de fato, venham a ter eficácia plena no mundo dos fatos.

Diante dessas colocações acerca da interposição de demandas que visam resguardar os interesses afetos à criança e ao adolescente, o tema conduz também a uma reflexão de que tal acesso constitui um avanço na construção da cidadania em dois planos: o primeiro, no sentido de que torna mais explícitos os direitos da criança e do adolescente, possibilitando à sociedade uma maior conscientização no que tange ao seu papel de contínua reivindicação dos seus direitos e interesses. Em segundo lugar, o próprio Poder Judiciário passa ser encarado como um instrumento de expansão dessa cidadania, pois suas sentenças, se deferidoras dos direitos pleiteados, ensejarão, para a sua eficácia, determinadas realizações por parte do Poder Executivo, notadamente no campo social.

A questão do acesso à Justiça, o qual não pode ser entendido como mera capacidade de ingressar em juízo, tem em seu fundamento a necessidade de uma maior politização por parte das camadas populares. Nesse sentido, o entendimento de que toda pessoa humana é sujeito de direitos faz-se imprescindível na formulação do conceito de cidadania, isto é, como a condição que identifica os direitos e garantias dos indivíduos, os quais já satisfeitos em suas necessidades humanas básicas, tenham condições, quer enquanto indivíduos singularmente considerados, quer enquanto organizados em grupos, de participarem efetivamente nos destinos da sociedade e da vida política do país. Segundo tal perceoção, as inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente devem gradativamente revolucionar o modo da família, da sociedade e do Estado de encararem as questões relativas à infância e juventude brasileira.

Enfim, apreende-se que todos os dispositivos presentes no texto constitucional bem como na legislação ordinária (sobretudo a Lei 8.069/1990) pretendem a consolidação de um novo modelo social que priorize o desenvolvimento sadio de nossas crianças e adolescentes. Todavia, a tão difícil realidade que estamos vivendo aponta, infelizmente, um modelo societário no mais das vezes desumano e distante dos ideais da fraternidade, da solidariedade, do efetivo compromisso com o outro, e assim, somos levados a questionar: como desenvolver a personalidade da criança, as suas aptidões e todo o seu potencial físico e mental? Como suscitar nas crianças e adolescentes o respeito aos direitos humanos, às liberdades fundamentais, ao meio ambiente, ou mesmo, como fomentar ou imbuir na criança e no adolescente o respeito aos seus pais, a sua própria identidade cultural, idioma, valores, se tudo isso lhes é negado?

A grande meta está em acreditar no ser humano, pois, afinal, que sociedade queremos neste século XXI? Para tanto é necessário consumirmos energias em propostas, em projetos com força transformante da ordem social, que, infelizmente, até o momento, privilegia alguns em detrimento de tantos. Uma nova ordem social - pacífica, solidária, justa - eis o grande desafio que nos é imposto no nosso hoje, para não nos ausentarmos da condição de cidadãos de nosso tempo.

 Como os pássaros, que cuidam de seus filhos ao fazer um ninho no alto das árvores e nas montanhas, longe de predadores, ameaças e perigos, e mais perto de Deus, deveríamos cuidar de nossos filhos como um bem sagrado, promover o respeito a seus direitos e protegê-los. (Zilda Arns, 12 jan.2010) [6]

 

Notas e Referências

ARNS, Zilda. Discurso Haiti, Zilda Arns. Disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/s/14012010/48/manchetes-ultimo-discurso-zilda-arns-defendeu.html.  Acesso em: 13 jul. 2020.

VERONESE, Josiane Rose Petry; MOTA, Moacyr.  A tutela jurisdicional dos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Ltr, 1998.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança – 30 anos. Salvador, JusPodivm, 2019.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito Penal Juvenil e responsabilização estatutária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Interesses difusos da criança e do adolescente. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

VERONESE, Josiane Rose Petry (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[1] Cf. VERONESE, Josiane Rose Petry (org.). Estatuto da Criança e do Adolescente – 30 anos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

[2] Cf. VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança – 30 anos. Salvador, JusPodivm, 2019.

[3] A nova redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010, agregou a expressão jovem.

[4] Recorde-se que também a execução de medidas socioeducativas a serem cumpridas por adolescente autor de ato infracional, as de meio aberto, são da responsabilidade dos municípios, reforçada esta concepção com a a Lei do Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo. Somente a internação e semi-liberdade, que são da responsabilidade do Estado.

[5] Cf. VERONESE, Josiane Rose Petry; MOTA, Moacyr.  A tutela jurisdicional dos direitos da criança e do adolescente. São Paulo: Ltr, 1998; VERONESE, Josiane Rose Petry.Interesses difusos da criança e do adolescente. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.

[6] Trecho do seu último discurso junto ao povo do Haiti, em 12 janeiro de 2010, momentos antes de sua morte, ocasionada por um terremoto que atingiu o país. BRASIL. Em último discurso, Zilda Arns defendeu proteção à infância. Disponível em: http://br.noticias.yahoo.com/s/14012010/48/manchetes-ultimo-discurso-zilda-arns-defendeu.html.  Acesso em: 13 jul. 2020.

 

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