ESTAMOS EM CRISE, ATÉ QUE CHEGUEMOS À GENUÍNA HUMANIZAÇÃO DO DIREITO    

20/10/2020

Coluna Justa Medida

Não é mais possível ignorar o Direito como Ciência Social Aplicada.

O Direito vai além da Teoria Pura do Direito apresentada por Hans Kelsen[1], que estabeleceu o positivismo jurídico ou juspositivismo, separando o direito da moral, para estudá-lo enquanto fenômeno.

Kelsen fundamenta a epistemologia do Direito numa teoria normativa, autônoma, sem interferência de valores axiológicos, políticos, filosóficos, religiosos ou místicos ou qualquer outra influência externa. Para Kelsen, a norma jurídica é o elemento impositivo, o objeto inquestionável, a fonte principal e primeira a dar legitimidade e validade ao ordenamento jurídico e por consequência ao próprio Direito,

A ciência do Direito constitui-se a partir de um sistema hierárquico de normas jurídicas, uma construção escalonada do ordenamento jurídico, onde a Constituição dos Estados é a norma fundamental que regulamenta a vida de toda a sociedade; ou seja, o jurista ao descrever a ordem jurídica e a magistratura ao aplicar a lei devem estar livres de qualquer influência, ou qualquer outra ciência. ou qualquer valor sobre o Direito.

Alguns questionamentos precisam ser pontuados a partir dessa Teoria: é possível reduzir o Direito a um conjunto de regras vigentes numa sociedade politicamente organizada? O Direito como ciência não está além de desenvolver demandas técnicas normativas ou um sistema de normas impostas para controle social e limitação de direitos dos indivíduos? A lei é suficiente para compreender toda a amplitude e alcance do Direito?

Embora a pesquisa e o ensino do Direito no Brasil ainda mantenham o foco principal nas disciplinas jurídicas tradicionais, muitos, ao responderem tais questionamentos, concluirão que a era do positivismo jurídico está superada, ou no mínimo, que ela está em crise.

Falemos, então, do pós positivismo jurídico, ou o não positivismo que buscou restabelecer o equilíbrio na relação entre Direito e Moral, passando a analisar o fenômeno jurídico também considerando princípios fundamentais e outras áreas do conhecimento[2].

O pós positivismo entende que tanto as regras como os princípios constituem as normas jurídicas e reconhece que o intérprete da norma também cria norma jurídica, fortalecendo assim a atuação do Judiciário, concedendo à magistratura maior força política e reconhecendo que sua atuação não está limitada a aplicação da lei e observância a vontade do legislador[3].

No pós positivismo jurídico, os operadores do Direito conseguem avaliar o sistema jurídico para que possam ir, como diz Luís Roberto Barroso[4], “além da legalidade estrita”. O Direito, então, se aproxima novamente da Ética e da Justiça.

Podemos então presumir que o Direito passou a compreender integralmente a necessidade de analisar a sociedade de forma sólida, a compreender as relações humanas seja no âmbito global como no regional e a vislumbrar a dimensão social do direito.

Na prática, no entanto, mais alguns questionamentos precisam ser apontados: o Direito verdadeiramente superou a mera subsunção do fato à norma e faz amplo uso de valores e princípios, dominando a hermenêutica? O Direito é praticado enquanto Ciência Social Aplicada, que prioriza uma formação humanística?

Se a resposta segue sendo negativa, então pode-se afirmar que o positivismo jurídico não está consolidado, ou que também está em crise.

Ainda que superada a premissa de que o Direito não é feito de leis isoladas e desconexas da realidade, os operadores do Direito ainda não recebem, desde a formação de base, uma real capacitação para olhar para esta ciência com uma lente de aumento mais humanizada.

Mesmo considerando inegável que o Direito permite novas interpretações ao ordenamento jurídico que refletem na aplicação das leis já existentes e, que se encontra em constante diálogo com outras áreas de conhecimento, o pós positivismo não tem conseguido de maneira eficiente a concretização plena da visão humanística do Direito.

Para a plena humanização do Direito, não é mais possível seguirmos ignorando que o Direito é uma Ciência Social Aplicada, e como tal, exige dos operadores do Direito uma abordagem mais crítica aos aspectos sociais das diversas realidades humanas e o sistema que rege a sociedade[5].

O Direito enquanto Ciência Social Aplicada deve buscar ter efetividade prática para impactar positivamente a vida de toda a comunidade, de modo a adotar também um caráter não só humano ou humanizado, mas também ético, justo, sensível, crítico, reflexivo e que, acima de tudo, entenda a importância de adaptar-se às demandas sociais, políticas e econômicas de cada nação para que se seja um instrumento eficaz na mudança e melhoria do ambiente social.

É o Direito como Ciência Social aplicada, interseccionando-se com ciências como a Sociologia, Filosofia, Psicologia e olhando para outras epistemologias que permitirá que a comunidade jurídica comece a trilhar um caminho que a conduza a real humanização do Direito.

Um caminho que deve ser trilhado durante toda a formação acadêmica dos futuros operadores de Direito dedicando às outras ciências a mesma importância, foco e profundidade reservados às matérias jurídicas tradicionais e que siga sendo trilhado ao longo de toda a sua trajetória profissional.

Um caminho em que os operadores de Direito não sejam potencializadores dos problemas sociais apresentados na esfera jurídica, mas onde se reconheçam com parte do problema e assumam a sua responsabilidade para concretização da função social do próprio Direito.

É o Direito, enquanto Ciência Social aplicada, que pode nos conduzir a um caminho que priorize a visão científica humanista da justiça e do próprio Direito, no qual as soluções para os conflitos apresentados pela sociedade são fundadas na dignidade humana, na equidade e na proteção da coletividade de modo a permitir que o Direito seja genuinamente um transformador das relações sociais, da dinâmica entre pessoas na sociedade, na forma como se relacionam umas com as outras, com a sua cultura ou com as organizações.

Até que isso ocorra, o Direito está em crise!

 

Notas e Referências

[1] Freitas, Viviane de Andrade. Aspectos Fundamentais da Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen. Disponível em https://jus.com.br/artigos/49444/aspectos-fundamentais-da-teoria-pura-do-direito-de-hans-kelsen#:~:text=A%20Teoria%20Pura%20do%20Direito,entre%20ser%20e%20dever%2Dser Acesso em 14 outubro 2020.

[2] MELO, Lilian Jordeline Ferreira de e MOTA, Marlton Fontes. O pós-positiviismo, o ativismo judicial e a humanização do direito. Disponível em https://jus.com.br/artigos/35995/o-pos-positivismo-o-ativismo-judicial-e-a-humanizacao-do-direito. Acesso em 15 de fevereiro de 2020.

[3] BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella e FERNANDES, Ricardo Vieira de Carvalho. Do positivismo ao pós-positivismo jurídico: O atual paradigma jusfilosófico constitucional. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242864/000910796.pdf?sequence=1 Acesso em 14 out 2020.

[4] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo.  2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

[5] AGUIAR, Julio Cesar de. Análise Comportamental do Direito: Fundamentos para uma Abordagem do Direito como Ciência Comportamental Aplicada. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/88943/226188.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em 15 outubro 2020.

 

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