Estado de inocência versus Presunção de inocência (ou de não-culpabilidade): quando a hermenêutica é utilizada para mitigar direitos fundamentais    

02/08/2019

Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont

A intenção de constitucionalizar princípios de direitos humanos é dar direitos e garantias aos indivíduos de tal monta a evitar qualquer oportunismo político e arbitrário por parte do Estado na busca de mitigá-los.

Grandes momentos históricos dão exemplos de que é bem mais prático – do ponto de vista utilitarista – violar liberdades individuais para respostas de curto prazo do que planejamentos duradouros.

O princípio constitucional do estado de inocência (muito conhecido por presunção de inocência), é princípio relativamente novo. Relatos dão conta que se seus defensores mais ferrenhos apareceram durante o século XVII com Voltaire e no século XVIII com Beccaria. (ALCALA, 2005)

No século XX, com o advento da Segunda Guerra Mundial e os horrores presenciados por toda a humanidade, o princípio da presunção de inocência ganhou o status de direito humano na Declaração Universal dos Direitos Humanos e novamente reforçado no Pacto de San Jose da Costa Rica.

Essa evolução histórica e as mais recentes positivações deste princípio não se deu a ermo. Várias vezes flexibilizado ao longo da história, foi uma grande vitória contra períodos obscuros e inquisitoriais e hoje deve assegurar ao indivíduo sua essência de pessoa inocente até sentença penal condenatória transitada em julgado. Ele impede que o Estado aplique qualquer sanção penal antes de esgotado o devido processo legal e todas as possibilidades de recurso.

Este princípio pode ser considerado como (um dos) princípio(s) norteador(es) do Processo Penal, pois, não raro, o acusado é absolvido em processos criminais, principalmente em grau recursal.

Este princípio constitucional, por si só não careceria de maiores debates teóricos semânticos e/ou hermenêuticos, pois está disposto de forma cristalina e inteligível em vários ordenamentos jurídicos e para qualquer cidadão entender de pronto.

No entanto, ante momentos sociais e políticos no contexto nacional, novamente, visando permitir maior punição estatal, este princípio vem sendo mitigado de maneira sutil e onde é mais sensível ao entendimento de todos: na interpretação hermenêutica.

Mais conhecido como princípio da Presunção de Inocência (mas também chamado de Presunção de Não-Culpabilidade), o estado de inocência é noção de direito humano fundamental que foi construído ao longo dos séculos e passou por vários momentos históricos.

Segundo Aury Lopes Júnior (2015, p. 91), este princípio foi seriamente atacado e chegou a ser invertido durante o período da Idade Média. Na inquisição, que se iniciou no século XIII e perdurou até o início do século XIX, qualquer situação que ensejasse em dúvida ou em falta de provas para o acusado, este seria considerado culpado. Apesar de fortes críticas de pensadores influentes como Voltaire e Beccaria, tal cenário somente começou a sofrer modificações em 1789 na Declaração dos Direitos do Homem. No entanto, foi novamente atacado nos regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo.

            No contexto nacional, o princípio da presunção de inocência veio consagrado no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88), em conformidade com o movimento internacional, e expôs de maneira expressa: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL, 1988).

            Na realidade brasileira, a incorporação de direitos e garantias fundamentais elencados no art. 5º da CR/88 e o princípio sob análise demonstram conveniente preocupação com a redemocratização nacional e a preocupação política em evitar que o Estado cometa abusos e arbitrariedades há muitos elencados na história mundial (GONÇALVES, 2009).

            No sentido contrário à utilização da máquina estatal como instrumento de opressão e punitivismo desenfreado, o novo modelo constitucional trouxe salutar preocupação com a preservação da dignidade do indivíduo sob a mira da investigação ou do processo penal, bem como da preservação da sua liberdade (Costa, 2009, p. 7).

            Muito estudado, o até então muito difundido e conhecido princípio da presunção de inocência ganhou próprio campo de discussão teórica acerca da semântica dessa nomenclatura.

Não obstante, conforme discorre Pereira Neto (2011, p. 102), passou-se a surgir correntes que propuseram que hermeneuticamente à CR/88 a nomenclatura adequada ao princípio seria o de estado de inocência. Autores como Paulo Rangel, Amilton Bueno de Carvalho, Eugênio Pacelli de Oliveira, entre outros, demonstraram que a inocência seria pressuposto inerente do indivíduo, seu estado natural, pois seria justamente este princípio que imporia ao Estado a obrigação de observar direitos e garantias fundamentais.

Apesar de utilizar a nomenclatura presunção de inocência, mas reforçando este entendimento, para Aury Lopes Júnior (2015) o princípio do estado de inocência é um dever de tratamento imposto ao estado, uma vez que o acusado é inocente. Nas palavras do autor: “a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele” (LOPES JR., 2015, p. 93).

            Ainda sobre o impasse teórico acerca da nomenclatura do princípio em escopo, Costa (2009) aponta que o impasse acerca se presunção de inocência ou presunção de não-culpabilidade merece destaque, pois o princípio, além de integrar o Título II da CR/88 (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), dependendo da linha teórica adotada, levará, inclusive, ao precedente da execução provisória da pena.

            Acerca da corrente que defende o princípio da presunção de inocência, define a autora:

Essa corrente doutrinária defende que pelo fato de o réu não poder ser considerado culpado até o trânsito em julgado da condenação deverá ser, consequentemente, visto como inocente. Seria, então, inconcebível a antecipação, em desfavor do acusado, de qualquer efeito de sentença penal condenatória ainda recorrível. Por conseguinte, entendem que qualquer norma que antecipe um ou mais efeitos da condenação recorrível seria contrária à Constituição, posto que se deve presumir a inocência e não a culpa.

Logo, para esses doutrinadores, a execução provisória da pena, seja privativa de liberdade ou não, se mostraria inconstitucional, uma vez que não se poderia antecipar o cumprimento da reprimenda de um acusado tido pela Constituição como inocente. (DA COSTA, 2009, p. 8)

            Por outro lado, para os teóricos que defendem interpretação diferente, incluindo alteração da nomenclatura, fez surgir outro viés principiológico. Assim continuou a autora:

Por outro lado, o STF e STJ entendiam ser possível interpretar mais restritamente o artigo ora em estudo, isto é, como presunção de não-culpabilidade. O fato de a Lei Maior anunciar que o réu não pode ser declarado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória não significa que ele seja inocente. Logo, seria admissível a imposição de certos efeitos decorrentes de uma condenação recorrível, desde que não perpassassem pelo reconhecimento expresso e antecipado da culpa. No entanto, destaca-se que o mencionado princípio não alcançaria as prisões provisórias, tendo em vista seu caráter cautelar.

Desse modo, entendiam que a execução provisória, seja da pena privativa de liberdade, seja da restritiva de direitos, era juridicamente possível, haja vista que a garantia de não-culpabilidade proibiria apenas a antecipação de um dos efeitos da sentença condenatória recorrível, qual seja, o reconhecimento expresso de culpa. Tal entendimento foi sumulado nos Enunciados 716 e 717 do STF (DA COSTA, 2009, p. 8).

 

            Em outras palavras, conforme apontou Leopércio (2007), a jurisprudência deu nova roupagem ao princípio da presunção de inocência, denominando-o de presunção de não-culpabilidade, a fim de delimitar o momento exato da formação de culpa do acusado. Nas palavras da autora: “Argumenta-se que não se trata de afirmar, a priori, a inocência do réu, pois, se assim fosse, não haveria lugar em nosso ordenamento jurídico para sua prisão cautelar, a qual sequer depende da existência de ação criminal”. (LEOPÉRCIO, 2007, p. 10)

Este embate teórico demonstra, no mínimo, uma tendência de alguns teóricos e de parte do Poder Judiciário em interpretar (e flexibilizar) o princípio do estado de inocência conforme se almejaria discutir a questão da aplicabilidade das sanções penais, cujo objetivo pode ser interpretado no sentido de permitir a flexibilização dos limites do poder punitivo estatal, indo na contramão dos melhores avanços sociais adquiridos.

            Princípio chave do Processo Penal, o Estado de Inocência é um dos principais alvos da arbitrariedade estatal. Inclusive, o próprio debate teórico acerca de sua hermenêutica, a fim de estabelecer marco temporal para a formação de culpa diverso do trânsito em julgado da decisão demonstrou que, ao final, o objetivo era flexibilizar o referido princípio.

            Tanto foi assim que, como grande exemplo recente, o próprio STF proferiu decisão temerária em 2016 e autorizou a execução antecipada da pena, justamente mitigando o princípio aqui abordado. Muito criticado, inclusive pelo viés político da decisão, o entendimento proferido no Habeas Corpus nº 126.292/SP violou o princípio do estado de inocência expresso de maneira cristaliza no art. 5º, LVII, da CR/88. Foram, inclusive, contra próprio entendimento do Tribunal tomado poucos anos antes, em 2009, o que reforça as críticas que as interpretações são dadas conforme o viés político do julgador.

 

 

Notas e Referências

ALCALA, Humberto Nogueira. Consideraciones sobre el derecho fundamental a la presunción de inocencia. Ius et Praxis, Talca , v. 11, n. 1, p. 221-241, 2005. Disponível em <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-00122005000100008&lng=es&nrm=iso>. Acesso em  24  jul.  2019.  http://dx.doi.org/10.4067/S0718-00122005000100008.

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