Estado de Exceção Cautelar: o elo de Jakobs e Dinamarco no trato punitivo da “garantia da ordem pública”

19/05/2016

Por Rodrigo de Paula Garcia Caixeta - 19/05/2016

INTRODUÇÃO 

Mesmo em países de maturidade democrática, o estudo do tema das prisões cautelares já enseja sérias dificuldades, pois exige que se logre discernir, do uno ato de restrição da liberdade, as inconfundíveis funções do punir e do acautelar. No Brasil, todavia, o desafio é ainda maior, porquanto o êxito na repartição teórica das categorias prisionais tende, com muita força, a “morrer na praia forense”: expressivos segmentos da Magistratura e Ministério Público brasileiros, por adesão a pragmaticismos de toda ordem, têm sustentado teses frontalmente refratárias a direitos fundamentais, a despeito do perfil garantidor que lhes atribui a Constituição de 1988.

É nesse panorama – digamos, pouco amigável - que se ofertam os resultados de uma pesquisa que busca ressaltar, frente às pulsões político-morais, a força normativa do Texto Constitucional, especialmente no terreno fértil a arbitrariedades que é o Sistema Cautelar de Persecução Penal. Definindo-se os contornos paradigmáticos de legitimação da prisão cautelar, contribui, assim, na resistência, no avesso do discurso midiático hegemônico, que vem motivando a instrumentação da “garantia da ordem pública” como escusa via de antecipação de pena, logo por aqueles que, em suas cerimônias de posse nos cargos públicos mais suntuosos do Estado, juram amor à Constituição que os emprega.

1. O ELO DE JAKOBS E DINAMARCO - UMA EXCRESCÊNCIA POSITIVISTA: APONTAMENTOS PARA A PRESERVAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA 

Ao se colocar a necessidade de submeter a Prisão Cautelar à constitucionalidade vigente, convém tecer algum comentário sobre o pressuposto deste empenho – a força normativa da Constituição -, especialmente para explicitar os porquês de sua sistemática desconsideração pela jurisprudência brasileira, sobretudo em matéria processual-penal.

Com efeito, a partir da definição da Constituição como fonte normativa superior[1], tema caro ao constitucionalismo garantista[2], uma monumental “revolução copernicana” restou deflagrada na Teoria do Direito e, por consectário inexorável, como lembra Lenio Streck, na hermenêutica jurídica[3].

Inobstante, na práxis jurídica brasileira, por vezes é ressuscitada a noção oitocentista de Constituição como singelo marco delegatório[4], ignorando-se que a Lei Maior de 88 fez-se detentora de coerção jurídica permanente. Daí, leis substancialmente inconstitucionais ainda são invocadas como se fossem a fonte jurígena exclusiva, numa estratégico retorno ao positivismo de teor jus-legalista, nos moldes do velho Estado Liberal[5].

Nessa ordem, lampeja um senso hermenêutico segundo o qual a lei seria válida como norma jurídica tanto que emanasse do Poder Legislativo, independentemente do seu conteúdo. Tendo a existência formal da lei por suficiente ao pronunciamento do direito, o positivismo legal-exegético traduz-se, conforme a lição de Streck (2005), na síntese “vigência é validade”; o que, por certo, incute grave risco à efetividade dos direitos fundamentais - vide o fetiche condenatório subjacente ao “atual” CPP[6], estranho à inclinação absolutória que deve marcar o sistema penal, face ao princípio constitucional da presunção de inocência.

Todavia, não só de exegetismo sofre o Direito de terra brasilis. A par da lógica “vigência é validade”, povoa o imaginário coletivo de juristas outro antiquado viés paradigmático, de cunho socializante, que apenas incrementa a “blindagem positivista contra a Constituição” (STRECK, 2005). Por este recorte,

[...] postulados ético-morais ganham vinculatividade jurídica e passam a ser objeto de definição pelos juízes constitucionais, que nem sempre dispõem, para essa tarefa, de critérios de fundamentação objetivos, preestabelecidos no próprio sistema jurídico (MENDES; BRANCO, ob cit., p. 62).

Nessa trilha, ensina André Cordeiro Leal que ganha realce a “adoção de argumentos externos ao direito” (LEAL, 2008, p. 26), o qual estaria sujeito à intrusão de elementos axiológicos colhidos no substrato social (ética, moral, economia, política), numa particular noção de tutela jurisdicional, anunciada sob a égide do Estado Social[7] (LEAL, ob cit., p. 26-27). A decisão judicial, neste paradigma, prescinde das diretrizes preestabelecidas pelos instrumentos jurídicos emanados das instituições legislativas, já que “A justiça da decisão estaria (...) na capacidade do juiz sintetizar e realizar, pela interpretação oportunizada pelo chamado ‘caso concreto’, valores pressupostamente vigentes nas sociedades [...].” (LEAL, ob cit., p. 25).

Tais cogitações reúnem-se no que Streck nomina “positivismo normativista” – que também atende pelo nome de “neoconstitucionalismo”[8]: o que antes se apresentava como loas à força normativa da Constituição, a repugnar a tradicional languidez do direito constitucional brasileiro, hoje se mostra aberto a teses paradigmaticamente indecorosas[9], todas convergentes a que a concretização do direito seja “ato maiêutico do juiz”, na crítica de Rosemiro Pereira Leal (LEAL, 2010, p. 58). Um positivismo, portanto, de grave subjetivismo hermenêutico, pois pensado para um intérprete que quer ser a Lei! Emancipado da fusão exegética entre texto e norma, reivindica o poder de dizer a-norma-sem-texto[10], numa patente “erosão da normatividade” (BONAVIDES, ob cit., p. 136) das instituições jurídicas.

Destarte, ascende-se o juiz - de “boca da lei” - ao soberano agambemiano, construtor ad dc das fronteiras da legalidade (AGAMBEM, 2010, passim). Assim, em nome de uma certa “Constituição real” – o retrato das “convicções nacionais” de um povo (BÜLOW apud LEAL, 2008, p. 29) -, assevera-se que as garantias processuais-penais podem ser “excepcionadas”, a fim de que a persecução penal ofereça os “resultados esperados pela sociedade”.

Nesse sentido, ao que nos parece, o axioma simbólico do positivismo exegético (“vigência é validade”) não enseja tanta perplexidade, diante do maior grau de obscuridade que atravessa essa renovada tentativa de inviabilizar o direito democrático; desta vez, pela “canalização judicial” (leia-se a ambiguidade) das difusas e vacilantes “axiologias dominantes” - em que, escandalosamente, “vigência nem sempre é vigência”; é que a “exceção soberana”[11] voltada a realizar qualquer “utilidade comum” não tardaria a ser aclamada.

Desta feita, reduz-se ao nada o substrato principiológico do Processo Penal, sem prejuízo de que Juízes da Ordem Pública continuem a dormir o “sono dos justos”, diria Alexandre Morais da Rosa (2013, p. 81), já que, a serviço do “bem”, poderiam “tirar do processo” – mero instrumento da magistratura salvadora do direito (LEAL, ob cit., p. 60) – a resposta alinhada a um ou outro “escopo metajurídico” (DINAMARCO, 2003, passim), aspirado socialmente e captado pela intuição judicial.

A propósito, são incisivas as premissas do “Pai” da instrumentalidade brasileira, Cândido Rangel Dinamarco, in verbis:

Imbuído dos valores dominantes, o juiz é um intérprete qualificado e legitimado a buscar um deles, a descobrir-lhes o significado e a julgar os casos concretos na conformidade dos resultados dessa busca e interpretação. (...) Por isso é que, quando os juízes e tribunais interpretam a Constituição ou a lei, eles somente canalizam a vontade dominante, ou seja, a síntese das opções axiológicas da nação. O comado concreto que emitem constitui mera revelação do preexistente, sem nada acrescer ao mundo jurídico além da certeza (DINAMARCO, 2003, p. 48 – grifo nosso).

Por certo, Dinamarco fez escola no foro criminal. Na trilha da sua instrumentalidade, ganham ênfase e coercibilidade as várias posturas sociológicas de Defesa Social, que, sedentas por exceção, já se arvoram como “vontade dominante”. Assim é o sedutor “Direito Penal do Inimigo[12], baseado no fomento de um ‘perigosismo generalizado’ impregnado no imaginário coletivo que demanda, assim, por segurança” (ROSA, ob cit., p. 72):

Abre-se o caminho para que Jakobs, fundamentado retoricamente no contrato social, possa defender que o “inimigo” seria aquele que rompeu com as regras contraídas, justificando a visão de não-membro e, por via de consequência, a intervenção penal busca evitar os perigos que ele representa, podendo, assim, o Estado restringir para o “inimigo” as normas – garantias – conferidas ao cidadão. (ROSA, ob cit., p. 72).

Nesse sentido, nada obstaria o uso “excepcional” da cautelaridade para veicular propósitos punitivos. Aliás, tendo em conta as notórias soluções populares em matéria de criminalidade - unívocas no menosprezo às garantias processuais -, dar vazão a Jakobs pelo “instrumento processual” seria a missão de todo decisor criminal em um “Estado Democrático de Direito”, no qual, segundo Dinamarco, “o juiz é constantemente conclamado a exercer sua sensibilidade ao valor do justo e do socialmente legítimo” (DINAMARCO apud LEAL, 2008, p. 30).

Sem dúvida que, atualmente, em relação às bases jurídicas definidoras de um Estado Democrático de Direito, não mais se toleram conjecturas deste jaez[13]. No atual paradigma, protagonizado por uma Constituição de normatividade permanente, só se reputa genuinamente jurídico o discurso que: (1) resulte de hermenêutica dialógica e “isomênica” (LEAL, 2013, passam), atribuindo-se, na conjectura de Leal, “direito igual de interpretação” às partes e ao juiz; e que (2) reflita a Constituição nos limites linguísticos de seu Texto, excluindo-se, pois, referentes sociológicos[14].

Em democracia, a norma floresce como extrato interpretativo derivado dos textos legais hierarquicamente relacionados. Destarte, à luz do Texto Constitucional - imune a critérios tardios de justiça -, toda lei oferece a teste sua pretensão de “validade”; compreendida a validade, pós Ferrajoli, como o atributo condicionante da exigibilidade jurídica da dicção legal, se reconhecida a sua compatibilidade material com a Constituição.

Com isso, e em vista do caráter jurídico-fundamental das garantias processuais, afetas, em última análise, à dimensão jurídica da pessoa humana (art. 1º, III, CF) no Constitucionalismo Democrático; mostra-se fora de perspectiva o chamado “Direito Penal do Inimigo”[15], a não ser que se consinta em obscurecer o direito democrático pelo manto medieval da “mentalidade inquisitória” (ROSA, ob. cit., p. 135) objetificante do imputado, a arruinar a paradigmática conquista humana do devido processo constitucional (LEAL, 2013, passim).

Em matéria penal e processual-penal, por inexorável o cumprimento da Constituição, impõe-se negar aplicação às “pretensões normativas sem norma” (por inconstitucionalidade), derivadas, seja da lei, da ordem de interesses sociais, ou até de ambas! - a exemplo da sincrética “garantia da ordem pública”, que, ao estilo de um “bando soberano” (AGAMBEM, ob. cit., passim), de lei provém, mas nada diz, para que, no seu vazio, difusos interesses se anunciem.

2. PRISÃO CAUTELAR: BASES LEGITIMADORAS E ANOMALIAS JURISPRUDENCIAIS PELA “ORDEM PÚPLICA” 

O advento da Lei 12.403/2011 implicou importante restruturação do sistema normativo de prisões e demais medidas cautelares. Para bem compreendê-lo, cumpre precisar, de partida, no que consiste a cautelaridade, como perfil funcional (o “objeto”) de uma específica tutela jurídica[16].

Face ao “dever de tratamento” (LOPES JR, 2013, p. 614) derivado do princípio da inocência (art. 5º, LVII, CF), a atribuição de incumbência punitiva à prisão extemporânea é manifestamente inconstitucional. Todavia, o aprisionamento do inocente resta autorizado, em âmbito constitucional, desde que em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de juízo competente (art. 5º, LXI, CF)[17].

Desta feita, a autoria especializada reivindica que a prisão medial (entre o flagrante e a pena) tenha caráter jurídico-cautelar; e que as bases teóricas da cautelaridade penal sejam colhidas, mesmo, da tecnologia processual-civilista[18]. Por lá, como é cediço, destaca-se a noção de cautelar como “instrumento do instrumento”, na emblemática construção de Calamandrei[19], do que se conclui que a tutela cautelar, na instância penal, deve traduzir-se, exclusivamente, como arrimo da persecução penal, para, assim, restar justificada constitucionalmente[20].

Nesse passo, andou bem o legislador: nos termos do art. 282 do CPP, constituem fundamento das medidas cautelares a garantia da aplicação da lei penal; e a conveniência da investigação ou da instrução criminal[21].

Mas não é aleatório o fator de abalo institucional que legitima a prisão cautelar. À luz do postulado da proporcionalidade[22] – no viés de um “garantismo negativo” (STRECK; OLIVEIRA, 2012, p. 35) que preserve a liberdade contra os excessos estatais -, a faticidade atrativa da medida tem que ser obra do imputado – e isso é de extrema relevância, embora corriqueiramente negligenciado: por se tratar de restrição à liberdade ambulatorial, a cautelaridade só se justifica se o risco à atividade persecutória decorrer de conduta fraudulenta do sujeito passivo, a exprimir que seja ele, em liberdade, o óbice à lisura da instrução ou ao vindouro exercício legítimo do ius puniendi.

Trata-se o periculum libertatis (LOPES JR., ob cit., p. 726), portanto, de inferente lógico-jurídico da proporcionalidade[23], com o que se afirma como único fundamento cautelar-penal compatível com a Constituição; em que pese a massiva adesão jurisprudencial ao embuste da “dinâmica da urgência” (LOPES JR., ob cit., p. 625), como se de periculum in mora se tratasse, numa equivocada assimilação do fundamento cautelar da teoria de Calamandrei[24].

Ademais, convém trazer à baila, no tocante à proporcionalidade, outro destacado derivado lógico, a regra da excepcionalidade, pois que atua, em função de sua inspiração qualitativa, como implacável fiscal da cautelaridade - eventualmente perdida no demagógico pretexto cautelar da “garantia da ordem pública”. É marcante a opção textual por conceber o cárcere cautelar (“Prisão Preventiva”) como ultima ratio do sistema (art. 282, §§ 4º e 6º, CPP), atribuindo-se-lhe, assim, a nota da “excepcionalidade[25].

Todavia, a despeito de seus propósitos declarados, a nova lei acaba por contribuir para a banalização da prisão preventiva, na medida em que contempla um gancho argumentativo de linhagem nazista (LOPES JR., ob cit., p. 660); uma (in)expressiva “escuridão semântica” – onde vaga o indiscernível – a espera das certeiras luzes do juiz bülowiano[26]: nos termos do art. 312 do CPP, “a prisão preventiva poderá (?) ser decretada como garantia daordem pública’ ”. É o mais profundo cancro de degeneração do sistema cautelar brasileiro, ante a indisfarçável afinidade punitiva dos argumentos “embasados” no dito conceito, o qual vigora-mas-não-significa[27] justamente para propiciar a intrusão “soberana” de qualquer coisa que se revele útil às ambições ideológicos da autoridade.

Daí, sem censurar a conduta do imputado frente à persecução penal (periculum libertatis), fala-se em “intranquilidade social”, “descrédito no Judiciário”, “estímulo à delinquência”, “sensação de impunidade” – e tudo mais que se abasteça da diarreia semântica da “ordem pública” (LOPES JR, ob cit., p. 659-666) -, para se obter uma sumária segregação do sujeito, em situações que, no máximo, sinalizariam um periculum in mora – que, frise-se, não é fundamento para a cautelaridade penal.

Nesses casos, é ululante que a prisão preventiva é volvida a funcionar como modo pontual de retração da criminalidade, numa espécie de “exemplaridade” (SANGUINÉ apud LOPES JR., ob cit., p. 661) que oscila entre as teorias penológicas da prevenção negativa e positiva[28].

Vale dizer: diante do “clamor público” gerado por um “crime grave”, quer-se debelar a “sensação de impunidade” punindo! Para tanto, ou se mantém um retórico discurso “cautelar”, ou mesmo, sem qualquer pudor, forja-se, contra o “tempo-inimigo”, a unitária categoria da “prisão-cautelar-penal”, a reboque de mais um mantra da instrumentalidade metajurídica: “distinguir por quê?”[29].

Assim, seria mesmo o “letárgico” tempo procedimental da cognição criminal o fator legitimante da prisão “a título cautelar”; para negar a pecha de ineficiente, o Estado deveria reagir ao crime de imediato, ministrando, à aterrorizada população, uma anestésica justiça “sem-tempo”[30].

Todavia, Aury Lopes Jr. destaca a inconstitucionalidade no abandono do sentido técnico da cautelaridade processual, que resulta, na seara penal, em convolar a prisão preventiva em medida supletiva de função própria da Administração Governativa:

“Obviamente que a prisão preventiva para garantia da ordem pública não é cautelar, pois não tutela o processo, sendo, portanto, flagrantemente inconstitucional, até porque, nessa matéria, é imprescindível a estrita observância ao princípio da legalidade e da taxatividade. Considerando a natureza dos direitos limitados (liberdade e presunção de inocência), é absolutamente inadmissível uma interpretação extensiva (in malan partem) que amplie o conceito de cautelar até o ponto de transformá-la em medida de segurança pública” (LOPES JR, Aury, ob. cit., p. 662).

Ou seja, perverte-se a prisão preventiva, de medida cautelar a via de antecipação “silenciosa” de tutela punitiva. Mas o silêncio passa ao grito, com a amplificação compreensiva que aqui se credita à regra da excepcionalidade da prisão cautelar, pois, conforme o prelúdio de linhas atrás, a sua inspiração é qualitativa: como fruto do postulado da proporcionalidade, a regra da excepcionalidade da preventiva exige um preliminar confronto da adequação e necessidade da prisão, em paralelo às cautelares menos gravosas. Ora, uma atividade intelectiva deste tipo cobra sua lógica de uma condição inexorável: a unidade do fim em análise; julga-se uma ação “adequada” e “necessária” em função do objetivo perseguido, de modo que só é honesta a comparação entre cautelares se ambas comungarem da mesma finalidade, qual seja a segurança da persecução penal. Caso contrário, atribuindo-se função antecipatória de pena à prisão preventiva –-, viola-se (não “apenas” a presunção de inocência) também o ajuste lógico do sistema legal, uma vez que as medidas propriamente cautelares (art. 319 e 320, CPP) não poderiam ser aplicadas jamais – em afronta aos §§ 4º e 6º do art. 282 -, por absoluta inadequação![31]

Portanto, a excepcionalidade da prisão preventiva, antes do aspecto estatístico-quantitativo da comparação entre cautelares, exprime o aspecto lógico-qualitativo da prisão, como medida cautelar (não punitiva, por definição), tal como as não prisionais. Assim, além de inconstitucional, ante a “manifesta incompatibilidade, reconhecida pela doutrina mais atenta, entre o princípio da presunção de inocência (...) e a finalidade de prevenção e defesa social” (FERRAJOLI, 2002, p. 131); o incontornável veio punitivo da “garantia da ordem pública” afronta a globalidade do regime cautelar, donde se vê que a reserva de objeto cautelar da prisão preventiva, como garantia ao “resultado do processo” (ROSA, ob cit., p. 139), é a única conclusão logicamente possível[32]. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto, de se ver que juízos criminais brasileiros têm ignorado a incumbência, estruturante da função judicante, de proceder ao controle de constitucionalidade das leis. “Aplica-se”, em afronta ao núcleo fundante do Processo Penal democrático, um dispositivo legal de origem nazista – quiçá porque o desejo do intérprete é, mesmo, fazer-se na lei. Na vigência sem significado da “garantida da ordem pública”, o soberano agambemiano, forte em Jakobs e Dinamarco, logra suspender o direito fundamental de presunção de inocência, em nome de razões absolutamente estranhas à cautelaridade, mas plasmadas no corpo social como “vontade dominante”: contra o “inimigo”, a antecipação de tutela penal!

No entanto, é preciso reafirmar que os Direitos Fundamentais não se sujeitam à discricionariedade do intérprete, com o que devem ser contidas as posturas que visem a corromper o Direito Democrático por “saidinhas” pragmáticas de toda ordem. Exige-se, do Ministério Público e da Magistratura, uma assunção destemida do digno papel contramajoritário, próprio das instituições jurídicas, reservando-se ao Parlamento a função de instância-de-primazia-das-vontades-contingenciais-da-população.

Nesse sentido, impõe-se reconhecer a inconstitucionalidade da hipótese de prisão preventiva para “garantia da ordem pública”, incompatível que é com a dignidade da pessoa humana traduzida no estado jurídico de inocência. Será mais um salto no sentido de transpor a fase “gráfica”[33] de democracia que ainda nos caracteriza.


Notas e Referências:

[1] Sobre a perspectiva histórica da atribuição de valor normativo à Constituição, ver: MENDES; BRANCO (2013, p. 39-53).

[2] Como sistematização de princípios que têm em vista a contenção jurídica do poder (FERRAJOLI, 2002, passim), o garantismo de Ferrajoli é uma teoria do direito que condiciona a legitimidade democrática das ações à observância dos direitos fundamentais (ROSA, 2013, p. 34). Ou seja, promove-se a subalternização da lei e de todo agente público – em especial, os juízes – ao domínio dos enunciados constitucionais. Ressalta-se, aqui, como uma das “frentes” do constitucionalismo garantista: “(...) a ratificação do lugar de garante do magistrado numa democracia mediante a sujeição do juiz à lei, não mais pela mera legalidade, mas da (sic) estrita legalidade, na qual a validade da norma (princípio e regra) deve guardar pertinência material e formal com a Constituição da República” (ROSA, ob cit., p. 33).

[3] Segundo Lenio Streck, “(...) ocorre uma verdadeira revolução copernicana (Jorge Miranda) quando o novo constitucionalismo supera o Positivismo. (...) Pode-se dizer que a superação do velho constitucionalismo (...) ocorre em três frentes: primeiro, pela teoria das fontes, uma vez que a lei já não é única fonte, aparecendo a própria Constituição como autoaplicativa; a segunda ocorre com a substancial alteração da teoria da norma, em face do aparecimento dos princípios, problemática que tem relação com a própria teoria das fontes; a terceira frente dá-se no plano da interpretação. (STRECK, A revolução copernicana do (neo)constitucionalismo e a (baixa) compreensão do fenômeno no Brasil, 2005).

[4] Em face de contingências históricas (MENDES; BRANCO, ob cit., p. 45), à afirmação do Estado Liberal burguês foi bastante conceber a Constituição como mero marco delegatório: normativo para a transição paradigmática, mas sem força intercorrente, pois que destituída de regência em face do Poder Legislativo instituído, em prol do qual se programa o desfalecimento do poder constituinte no instaurar do novo Estado.

[5] Como “postura científica” (STRECK, Aplicar a “Letra da Lei” é uma Atitude Positivista?, 2010) o positivismo é conservação; concebe o “objeto de estudo” como um sempre-é irredutível: algo (im)positivo, um dado insolúvel, imutável, só passível de análise ou contato conceitual, não de superação. Ao conceber a Constituição como esteio de um “direito público do liberalismo” (BONAVIDES, 2005, p. 41), o constitucionalismo liberal serviu-se do nascente positivismo para garantir, em prol dos interesses escudados no Parlamento burguês, a otimização da eficácia de um direito-legal-livre-de-Constituição; a tanto, tomou a lei como o dado positivo, o “fato” da Ciência Jurídica, a matéria total e irreprimível da experiência normativa.

[6] Em que pese as reformas pontuais dos últimos anos, especialmente pelas Leis 11.690/2008, 11.719/2008 e 12.403/2011; é vergonhoso que ainda convivamos com um Código de Processo Penal orgulhosamente alicerçado no truculento ideário inquisitorial. Ao arrepio da Constituição de 88, deixam-se ver os espúrios desígnios do CPP em sua Exposição de Motivos: “De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo penal [...], impunha-se o seu ajustamento ao objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus [...] um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa [...] Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social.” (BRASIL, 2012a, p. 581). Fica clara a aversão à presunção de inocência: “[...] É restringida a aplicação do in dubio pro reo.” (BRASIL, 2012a, p. 581).

[7] Trata-se de aderir às bases lançadas por Jhering, em sua Jurisprudência dos Interesses (fim do século XIX e início do XX), que é a matiz teórica precursora do Movimento do Direito Livre, na Alemanha, pelo que o juiz estaria autorizado a privilegiar, em detrimento da lei, o que seria “útil para sociedade ou para os grupos sociais vitoriosos” (CHAMON JÚNIOR apud LEAL, 2008 p. 47), num paradigma atravessado, segundo Arnaud e Dulce, por um “positivismo não normativo”, afeito à “sociologização do pensamento jurídico” (ARNAUD e DULCE apud LEAL, ob cit., p. 47).

[8] “Desse modo, fica claro que o neoconstitucionalismo representa, apenas, a superação – no plano teórico-interpretativo – do paleo-juspositivismo (como bem lembra Luigi Ferrajoli), na medida em que nada mais faz do que afirmar as críticas antiformalistas deduzidas pelos partidários da escola do direito livre, da jurisprudência dos interesses e daquilo que é a versão mais contemporânea desta última, da jurisprudência dos valores” (STRECK, Contra o Neoconstitucionalismo, 2011).

[9] “[...] passadas mais de duas décadas da Constituição de 1988, e levando em conta as especificidades do direito brasileiro, é necessário reconhecer que as características desse neoconstitucionalismo acabaram por provocar condições patológicas, que, em nosso contexto atual, acabam por contribuir para a corrupção do próprio texto da Constituição. Observe-se que, escandalosamente, sob a bandeira “neoconstitucionalista”, defende-se, ao mesmo tempo, um direito constitucional da efetividade; um direito assombrado por uma vulgata da ponderação de valores; uma concretização ad hoc da Constituição e uma pretensa constitucionalização do ordenamento a partir de jargões vazios de conteúdo e que reproduzem o prefixo neo em diversas ocasiões, tais quais: neoprocessualismo (sic) e neopositivismo (sic). Tudo porque, ao fim e ao cabo, acreditou-se ser a jurisdição responsável pela incorporação dos “verdadeiros valores”. (STRECK, 2011).

[10] No paradigma do Estado Social, em que a “coesão social” seria garantida por uma espécie de comunhão de bases axiológicas por indivíduos historicamente situados (LEAL, 2008, p. 84), “o sentido normativo se desloca do texto e adere a realidades pré-jurídicas ou mesmo à intuição do juiz acerca desta realidade”, a privilegiar os “escopos metajurídicos que a jurisdição deveria perseguir para que se chegasse à paz social” (LEAL, ob cit., p. 84).

[11] “Na exceção soberana trata-se, na verdade, não tanto de controlar ou neutralizar o excesso, quanto, antes de tudo, de criar e definir o próprio espaço no qual a ordem jurídico-política pode ter valor” (AGAMBEM, ob cit., p. 25). Para Morais da Rosa, “Agambem aponta que o poder encontra-se na ‘exceção’, a saber, na possibilidade que se exclua a regra de aplicação geral e se promova, para o caso, uma outra solução, apartada dos Princípios da Legalidade e da Igualdade. (...) instaura-se o processo penal de exceção, cujo fundamento de conter as mazelas sociais e brindar os privilegiados consumidores com segurança, encontra antecedente histórico nas ditaduras. (...) O Direito de Exceção, em nome do bem dos acusados, e antes da Sociedade, suspende as garantias processuais, previstas na Constituição da República e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, por entender que elas são um entrava à redenção moral do infrator e à Segurança Coletiva”. (ROSA, ob cit., p 3-4).

[12] “Jakobs, Günther; Cancio Meliá, Manuel. Derecho penal del enemigo. Madrid: Civitas, 2003, p. 47: “Quien no presta uma seguridade cognitiva sufiente de um comportamiento personal, no sólo no puede esperar ser tratado aún como persona, sino que el Estado no debe tratarlo ya como persona, ya que de lo contrario vulneraría el derecho a la segurida de las demás personas. (...) “Quien por principio se conduce de modo desviado no oferece garantia de um comportamiento personal; por ello, no puede ser tratado como ciudadano, sino debe ser combatido como enemigo. Esta guerra tiene lugar con um legítimo derecho de los ciudadanos, en su derecho a la seguridad; pero a diferencia de la pena, no es derecho tambíen respecto del que es penado; por el contratio, el enemigo es excluído”. (ROSA, ob cit., p. 72).

[13] A concretização de um verdadeiro Estado de Direito Democrático requer que se estabeleçam as condições teóricas para a enunciação democrática do direito, o que implica recusar toda postura que aposte na ascendência estrutural do juiz no procedimento, seja como intérprete qualificado de uma lei fatal, seja como aspirante de valores supostamente compartilhados em sociedade. A propósito, cumpre dizer que a força jurígena da ordem axiológica é sepultada pela instituição constitucional de um Direito Democrático, pois, a partir de então, conforme ensina André Leal, “não se pode afirmar a existência de bases axiológicas convergentes em sociedade secularizadas e descentradas” (LEAL, ob cit., p. 27). Habermas bem observa que a “(...) ‘crise do Estado Social’ residia na ‘insensibilidade’ das burocracias estatais emergentes com relação a limitações impostas à autodeterminação de seus clientes – uma fraqueza do paradigma do Estado Social simétrica à da ‘cegueira social’ do direito formal burguês” (HABERMAS apud LEAL, ob cit.p. 143).

[14] Ao se romper o determinismo legalista do primeiro positivismo, o texto deixou de garantir, per si, a implantação da norma, mas a norma continua a depender de texto, pois, como ressalta Rosemiro Leal (2010, p. 56), “a voz do juiz, na Sociedade Jurídico-Política de Direito Democrático, há de ser legífona e não autófona.”.

[15] “A distinção entre inimigo e cidadão (...) é dada a priori, e, como tal, não se sustenta, pois categoriza, por qualidades etiquetadas socialmente, o grau que o sujeito pode usufruir na sociedade. Apresenta-se como uma tarifação da cidadania, a qual exclui, de antemão, todos os que se apresentam, de alguma maneira, envolvidos pelo sistema de controle social. Desde o batizado do sistema, com novos sentidos da velha “periculosidade” da Escola Positiva, surgem tarifações onde a dignidade da pessoa humana não tolera” (ROSA, ob cit., p. 73 – grifo nosso).

[16] “A resposta nos conduz ainda a sua finalidade e delimita, naturalmente, seu campo de incidência, pois a prisão cautelar é ilegítima quando afastada de seu objeto e finalidade, deixando de ser cautelar” (LOPES JR., 2013, p. 659).

[17] Mas o que, de fato, “fundamenta” esta espécie de prisão - decretada judicialmente, mas sem escopo punitivo (declarado)? A Constituição não diz. Tão prolixa em questões secundárias, é pesaroso que tenha submetido à “loteria judicial” (STRECK) o desate de matéria tão relevante, afeta a direitos fundamentais.

[18] Tal empréstimo é bem vindo, pois não ofende a presunção de inocência, como de resto ocorre pela imposição, ao Processo Penal, de institutos jurídicos que não lhes são próprios. Sobre os problemas da compreensão do Processo Penal a partir de uma “teoria geral do processo”, Cf. LOPES JR, ob cit., p. 283 et seq.

[19] “Se todos os provimentos jurisdicionais são instrumentos do direito material que através deles se atua, nos provimentos cautelares encontra-se uma instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada, por assim dizer, ao quadrado: esses são de fato, infalivelmente, um meio predisposto para melhor resultado do provimento definitivo, que, por sua vez, é um meio para a atuação do direito (material); são, portanto, em relação à finalidade última da atividade jurisdicional, instrumentos do instrumento” (CALAMANDREI apud LOPES JR, ob cit., p. 714).

[20] “Com efeito, nenhuma atividade regular do exercício do Poder Público pode ser descurada ou ter subestimada a sua utilidade, sobretudo quando se tratar de funções típicas do Estado, que vem a ser precisamente a atuação do Poder Judiciário. Quaisquer condutas que tendam a impedir ou a embaraçar a sua atuação dever ser coartadas. (...) quando houver risco, concreto e efetivo, ao regular andamento do processo, por ato imputável ao acusado, o Estado poderá adotar medidas tendentes a superar tais obstáculos, ainda que com o recurso à sua inerente coercibilidade”. (OLIVEIRA, 2013, p. 498)

[21] De passagem (dados os limites deste trabalho), cumpre referir que a autorização legal do uso de medidas cautelares para impedir a “reiteração criminosa” (art. 282, I, CPC) deve ser problematizada. Sob este argumento, a prisão preventiva, como observa Aury Lopes Jr., estaria “(...) atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros.” (LOPES JR, ob cit., p. 664). Por outro lado, supondo-se válida a previsão (o que se tolera só para argumentar), no Brasil, as prisões preventivas têm sido decretadas pela mera invocação do “risco de reiteração criminosa” - sem um suporte fático sério, a reboque, portanto, de uma absurda presunção de “periculosidade”! No limite, seria exigível o apontamento de uma tendência objetiva dos agentes à criminalidade; o “risco de reiteração criminosa” só poderia ser validamente aferido de condutas, de circunstâncias reais, como movimentos de preparação, no limiar inaugural do iter criminis; ausente qualquer indício de gestação real de delito, a prisão cautelar não se sustenta, porque se equilibra em presunção pessoal, personalística de “periculosidade”, como quis a defasada teoria lombrosiana.

[22] Ainda que destituída de menção textual na Constituição, a proporcionalidade é imanente ao sistema normativo, como consectário do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV) e da dignidade da pessoa humana, a qual não tolera restrições de liberdade sem estrita necessidade (leia-se, sem motivo constitucional). Sendo baliza lógico-jurídica de parametrização das ações estatais, avulta-se como inafastável crivo hermenêutico aferidor do respeito concreto aos direitos fundamentais.

[23] Se a persecução penal enfrenta riscos, a Constituição exige que se debelem as suas causas – é a função cautelar; todavia, a imposição de medidas restritivas ao imputado só recebe justificação lógico-jurídica (proporcionalidade, como proibição do excesso – Übermassverbot (STRECK; OLIVERIA, ob cit., p. 23)) se o fator de abalo institucional for uma conduta do agente em liberdade – é o fundamento cautelar.

[24] No Processo Penal, a adoção da teoria de Calamandrei deve se restringir às suas cogitações sobre o objeto cautelar (“instrumento do instrumento”), ressalvada, pois, a sua noção de fundamento (periculum in mora). Trata-se de uma “(...) equivocada valoração do perigo decorrente da demora no sistema cautelar penal. Para CALAMANDREI, o periculum in mora é visto como o risco derivado do atraso inerente ao tempo que deve transcorrer até que recaia uma sentença definitiva no processo. (...) Aqui [no processo penal] o fator determinante não é o tempo, mas a situação de perigo criada pela conduta do imputado (LOPES JR., ob cit., p. 616).

[25] A prisão preventiva só tem lugar se as medidas mais sutis revelarem-se débeis, por inadequação ou insuficiência; deve-se, pois, privilegiar as cautelares não prisionais, deixando a prisão preventiva para casos extremos, de maior risco à efetividade legítima da persecução penal.

[26] Em obra imprescindível para a crítica democrática à tradicional condução do direito pelo exclusivismo judicial na jurisdição, André Cordeiro Leal realça os traços do “nacional-socialismo” na teoria processual do alemão Oskar von Bülow, que disseminou mundo a fora, por seu La teoria de las excepciones processales y los pressupouestos processales, lançado, na língua matriz do autor, em 1868, as modernas bases teóricas de um “juiz-füher”, situado na “borda legal” (LEAL, ob cit., p. 33) para afirmar ou negar a própria normatividade do direito: “Então, quando acontece, várias vezes, das decisões dos juízes contrariarem o sentido e a vontade da lei, isso deve ser aceito tranquilamente, como um destino inevitável (...). Mesmo a decisão contrária à lei possui força de lei. (...) Com isso, não se quer dizer outra coisa do que o juiz ser autorizado pelo Estado a realizar determinações jurídicas, as quais não estão contidas no direito legislado, mas sim encontradas pelos juízes, por eles criadas, escolhidas e desejadas!” (BÜLOW apud LEAL, ob cit., p. 61).

[27] “Vigência sem significado (Geltung ohne Bedeutung): nada melhor do que esta fórmula (...) define o bando do qual o nosso tempo não consegue encontrar saída. Qual é, de fato, a estrutura do bando soberano, senão aquela de uma lei que vigora, mas não significa? Por toda parte sobre a terra os homens vivem hoje sob o bando de uma lei e de uma tradição que se mantém unicamente como “ponto zero” do seu conteúdo, incluindo-os em uma pura relação de abandono.” (AGAMBEM, ob cit., p. 57).

[28] Evidente, nesses casos de prisão preventiva “sob pena de estímulo à delinquência”, o apego precoce à teoria da prevenção geral negativa: confere-se à prisão medial (cautelar) o objeto da prisão final (pena), qual seja o de “(...) dissuadir os possíveis delinquentes da prática de delitos futuros através da ameaça de pena, ou predicando com o exemplo do castigo eficaz” (BITTENCOURT, 2013, p. 143). Ademais, a súplica por uma resposta estatal imediata - que preserve a confiança da sociedade nas instituições jurídicas - flerta com as linhas da teoria preventiva positiva, que vê na pena (e agora na prisão cautelar) “uma mensagem dirigida a toda coletividade social, em prol da ‘internalização e fortalecimento dos valores plasmados nas normas jurídico-penais na consciência dos cidadãos’, (...) com o objetivo de oferecer estabilidade ao ordenamento jurídico” (BITTENCOURT, ob cit., p. 147). Por outro lado, se baseada na suposto “periculosidade” do imputado, a preventiva realça o escopo penal de prevenção especial negativa, como antecipação de medida tendente a “neutralizar os incorrigíveis” (BITTENCOURT, ob cit., p. 153), o que, indiretamente, cumpre por inclinar o juízo penal à hipótese da culpa, pois a prevenção especial negativa supõe-se apta em face “[d]aquele indivíduo que delinquiu, para fazer com que não volte a transgredir as normas jurídico-penais” (BITTENCOURT, ob cit., p. 154 – grifos nossos), com claros prejuízos à presunção de inocência.

[29] A se considerar as elucubrações do próprio Dinamarco sobre as tutelas cíveis de urgência, a par da difundida adesão à “teoria geral do processo”; é possível antever o elo “teórico” desta alarmante tendência para a dogmática processual-penal, que se abriria à gravíssima sumarização do juízo de punibilidade: “Bem analisado o Código de Processo Civil, e submetido seu novo art. 273 a uma interpretação sistemática no contexto da disciplina das medidas urgentes, não é tão importante a busca da precisa distinção entre cautelares e antecipações. A realidade sobre as quais todos esses dispositivos operam é o tempo como fator de corrosão de direitos, à qual se associa o empenho em oferecer meios de combate à força corrosiva do tempo-inimigo”. (DINAMARCO apud LEAL, 2008, p. 26 – grifo nosso).

[30] Parece-nos que a “virtude punitiva” da prisão cautelar ensaia sua legitimidade na equivocada noção, detectada por André Cordeiro Leal no discurso instrumentalista, de que “o tempo é inimigo da jurisdição e do Direito”: arguiu-se “a necessidade de se atribuir ao juiz poderes ampliados que assegurem uma certa flexibilização do ordenamento jurídico para que se obtenha decisões rápidas e justas. (...) os autores da escola instrumentalista do processo defendem que os tempos procedimentais devem ser reduzidos ou mesmo suprimidos, permitindo-se que o juiz tome decisões que chamaríamos ‘sem-tempo’ (intuitivas). O que esses autores fazem, no final das contas, é desconsiderar, de forma absoluta, o fato de que a discursividade e a possibilidade do levantamento das pretensões de validade não dispensam o tempo do pensar (previamente teorizado e, portanto, ele mesmo discursivamente acertado)” (LEAL, ob cit., p. 24-25).

[31] Veja-se que todas as medidas cautelares diversas da prisão (art. 319, CPP) restaram expressamente vinculadas quanto ao seu fundamento, o qual, em última análise, consubstancia o fim (da medida) cerne do juízo de proporcionalidade. Observa Pacelli que “Por todas elas o legislador quem esclarece a finalidade da providência, cabendo ao juiz o exame de sua pertinência e necessidade (OLIVEIRA, ob cit., p. 521)”. No geral, elas estão referidas, ou à conveniência da instrução, ou ao risco de fuga, razão porque a cautelaridade da prisão preventiva deve envolver, exclusivamente, tais fundamentos, não se podendo, portanto, apelar aos argumentos da “ordem pública”, sob pena de violação da excepcionalidade qualificativa da prisão.

[32] Todavia, é comum, pelos foros nacionais, decretar-se a prisão preventiva mediante uma argumentação que apenas simula que a prisão se justifica pelo crivo da proporcionalidade. No geral, afirma-se oportuno o encarceramento precoce para “garantia da ordem pública”, porque as medidas cautelares (art. 319, CPP) seriam “inadequadas”. Nada é mais óbvio. Uma fraude hermenêutica; uso retórico da Lei! Como acima se expôs, é impossível reputar “adequadas” as cautelares diversas, se a finalidade atribuída à prisão preventiva for estranha ao objeto próprio das medidas cautelares. E, quanto se viu, a “garantia da ordem pública” bebe de teorias penológicas, tendo, pois, motivação estritamente punitiva, sem qualquer potência protetiva da persecução penal.

[33] Com esta paráfrase, rendo homenagens a meu dileto mestre Rosemiro Pereira Leal, incansável promotor teórico do direito democrático. Entre suas variadas críticas, eis uma que me é especialmente inspiradora: “A Ciência Jurídica, como conquista teórica pós-moderna da humanidade, em bases de múltiplos sistemas de explicação do direito, equivale uma permanente conspiração da consciência dos povos contra o absolutismo das idéias jurídicas formadas em teorias destituídas de problematicidade e com propósitos de manutenção dos privilégios dominantes pelo eufemismo da igualdade formal de direitos e defesa gráfica de direitos humanos” (LEAL, 2010, p. 6).

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Rodrigo de Paula Garcia Caixeta. Rodrigo de Paula Garcia Caixeta é Bacharel em Direito (PUC-Minas, 2013); Especialista em Direito Processual Penal (Anhanguera, 2015); Membro do INPEJ - Instituto Popperiano de Estudos Jurídicos, fundado e presidido pelo Prof. Dr. Rosemiro Pereira Leal; Advogado em Belo Horizonte.. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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