Esboço para aplicação da fenomenologia existencial como paradigma filosófico dos direitos da personalidade

03/03/2018

“…que quando estou a ponto de perder o juízo, todo o tumulto interior se me apazigua com a visão de uma criatura como aquela, que percorre o círculo estreito de sua existência em ditoso abandono e encontra cada dia o necessário…”

Goethe[1]

 O mundo (é) meu porque está infestado por possíveis, e a consciência de cada um desses possíveis é um possível (de) si que eu sou; esses possíveis, enquanto tais, é que conferem ao mundo sua unidade e seu sentido de mundo.

Sartre[2]

 1 – Problemática / Introdução. 

Esta digressão ensaística circunscreve-se sobre uma possibilidade especulativa da compreensão paradigmática da fundamentação filosófica dos denominados direitos da personalidade que hoje deita fundamento sobre a ética-metafísica kantiana. A problemática se revela no momento em que outra escola filosófica, por seus fundamentos e irradiações, mostra-se apta a servir de fundamento e justificativa para a existência dos direitos da personalidade.

É senso comum, fundamento padrão, paradigma irrefutável, inquestionável, dogma no âmbito da ciência jurídica que o fulcro filosófico para a existência dos direitos da personalidade é a ética-metafísica kantiana.

Os direitos da personalidade, dentro da ciência jurídica, são um plexo de direitos diretamente vinculados à dimensão imaterial do ser humano, compondo uma senda do Direito Civil tanto em sua dogmática como em sua positivação legal, onde os referidos direitos mimetizam-se com a vinculação direta à ideia de dignidade da pessoa-humana.

A ética kantiana é inteiramente baseada nas noções de razão e dever, na capacidade do indivíduo dominar suas paixões e interesses próprios além de descobrir, dentro de si, a lei moral que deve orientar sua conduta desaguando no ideal do imperativo categórico. Essa ética, assente sobre o postulado da dignidade da pessoa-humana expressa-se pela seguinte passagem: 

A necessidade prática de agir segundo esse princípio, isto é, o dever, não parte de sentimentos, impulsos e inclinações, mas sim unicamente da relação dos seres racionais entre si, relação esta em que a vontade de um ser racional tem de ser considerada sempre e simultaneamente como legisladora, porque de outra forma não poderia ser pensada como fim em si mesma. A razão relaciona então cada máxima da vontade concebida como legisladora universal com todas as outras vontades e com todas as ações para conosco mesmos, e isto não em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer vantagem futura, mas em virtude da ideia da dignidade de um ser racional que não obedece a outra lei senão àquela que ele mesmo simultaneamente dá. No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade.[3] 

Toda a construção teórica funda-se na parte final da passagem acima destacada.

A questão é: Kant tem razão exclusiva? E aqui não estamos defendendo a não razão de Kant mas sim sua não razão “exclusiva”.

Senão vejamos, como justificar os seguintes exemplos:

a) A abolição da escravatura; b) A luta pelos direitos das mulheres; c) O pleno exercício da liberdade de expressão.

Pois bem, respectivamente, toda pessoa negra, toda mulher, todo cidadão que compõe a sociedade é um ser humano, logo detentor de uma racionalidade legisladora que desemboca na ideia de imperativo categórico, então por que pelo simples fato dessas pessoas serem humanas e racionais a historiografia não registra o resguardo respectivo de sua liberdade atávica, sua igualdade de gênero e a possibilidade de expressar-se como lhe convém? Qual teria sido a necessidade de movimentos escravocratas, lutas pelo direito ao voto e participação social e o fim da censura?

A partir deste questionamento demonstra-se que os direitos que engendram garantias decorrem de algo mais que uma unção metafísica de que se tem porque se é, mas que se tem porque se busca.

Tal problemática tem um reflexo direto na definição da natureza filosófico-jurídica dos direitos da personalidade. A doutrina divide-se em duas grandes correntes: a do direito natural e a do positivismo jurídico. A corrente do direito natural prega que os direitos da personalidade existem por serem inerentes à condição do homem enquanto ser racional, já a corrente positivista prega que tais direitos só existem porque decorrem de uma garantia do Estado ao homem, e se o Estado garante é porque é um anseio do cidadão.

É nesse contexto que levantamos a hipótese em demonstrar de como a Fenomenologia Existencial especificamente tendo como referenciais teóricos Heidegger e Sartre respondem de forma complementar a razão ontológica dos direitos da personalidade.[4] 

2 – Fundamentação da Hipótese

2.1 – Direitos da Personalidade: Aspectos Gerais 

O código civil de 2002 veio à tona num momento de efervescência renovatória do direito civil brasileiro com o fito de reger as transformações da modernidade líquida.

O momento era propício, o direito privado reformulava-se, mudavam-se (sucediam-se) os paradigmas, da despatrimonialização à repersonalização com ênfase em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade, tanto em sua dimensão física quanto psíquica.     

Dentre os muitos conceitos trazidos pela doutrina civilista sobre os direitos da personalidade, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald lecionam: 

Consideram-se, assim, direitos da personalidade aqueles direitos subjetivos reconhecidos à pessoa, tomada em si mesma e em suas necessárias projeções sociais Enfim, são direitos reservados ao desenvolvimento da pessoa-humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe empresta segura e avançada tutela[5] 

2.2 – Natureza filosófico-jurídica dos direitos da personalidade 

Quanto a natureza filosófico-jurídica existe uma discussão doutrinária se se trata de um direito natural ou um direito positivo. Os que o veem como um direito natural argumentam pela condição ínsita à pessoa-humana enquanto corolário do princípio da dignidade humana. Os que o veem como norma positivada argumentam que a inexistência do tipo normativo torna o direito da personalidade irrealizável, uma vez que não haveria previsão no ordenamento jurídico. 

2.3 – Premissas filosóficas postas 

Kant acreditava que o que faz de nós seres humanos, ao contrário dos animais, é o fato de pensarmos reflexivamente sobre nossas escolhas. E a ideia proeminente do pensamento kantiano para chegarmos à noção de dignidade dá-se pela compreensão da capacidade do homem identificar dentro de si a conduta correta a ser seguida. A ideia é fundamentar a prática moral não na experiência mas numa lei aprioristicamente inerente à racionalidade humana, essa lei se denomina imperativo categórico. Isso quer dizer que só deveríamos fazer aquilo que fizesse sentido para todos (comunidade) na mesma situação, isso significa que não deveríamos usar os outros, mas tratá-los com respeito, reconhecendo a autonomia das pessoas e sua capacidade como indivíduos de tomar por conta própria, decisões pensadas.[6] Todo o homem é um fim em si mesmo, um sistema particular capaz de autogovernar a si próprio[7]

2.4 – Premissas filosóficas propostas 

Dentro da problematização levantada propomos a utilização dos fundamentos da fenomenologia existencial como paradigma filosófico complementar à natureza filosófico-jurídica dos direitos da personalidade.

Para o desenvolvimento desta hipótese é necessário estipularmos pontos de inflexão e roteiro investigativo prévio.

Antes de mais nada é necessário salientarmos o que tratamos como fenomenologia existencial e porque teremos como referencial teórico Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre.

Existencialismo ou Fenomenologia Existencial? Na obra “O existencialismo é um humanismo” Sartre elenca Heidegger como um existencialista[8] mas tal assertiva foi de pronto rechaçada pelo mestre alemão em sua obra “Carta sobre o humanismo” em que fez considerações sobre a conferência sartreana[9]

O ponto é, ainda que Heidegger refute a designação de existencialista sua filosofia de cunho existencial aurida da fenomenologia de Husserl como que num evento em cadeia influenciou substanciosamente o pensamento de Sartre. Ambos devem à fenomenologia husserliana o desenvolvimento de seus trabalhos.

Heidegger encara a fenomenologia antes como um meio que nos conduz à evidência das coisas, facultando-nos uma apreensão das mesmas, uma via de acesso que resguardaria o modo com que as coisas se mostram, tal como são.

Ou como prefere Heidegger – “as coisas em si mesmas.”[10]

Heidegger busca, por uma desconstrução, o ser do ente para uma compreensão do ser-aí enquanto um ser-no-mundo através do fenômeno – o que se revela, o que se mostra em si mesmo, pois a compreensão do fenômeno depende de como ele se mostra e de como ele aparece.[11]

Daí exsurge a necessidade de uma ontologia fundamental, uma releitura do ser, essa essência perene que permite o ente.

O ser, o ente, a compreensão, a desconstrução ontológica, a realização do ser-aí(dasein) enquanto ser-no-mundo.

Ao existir, o ser-aí define o que ele é, e os muitos momentos deste modo de ser se mostram à análise do ser-aí como existenciais. Existenciais são estruturas ontológicas tão somente engendradas na dinâmica da existência, são portanto, componentes ontológico-existenciais do ente que somos.[12]

Ser é condição de possibilidade, é condição para realização do ser-aí enquanto um existente.

A essência do ser-aí reside em sua existência. Por isto, as características que podem ser explicitadas junto a esse ente nunca são “propriedades” presentes à vista de um ente presente à vista que possui tal ou tal “aparência”, mas sempre modos de ser que lhe são possíveis apenas isto. Deste modo, o termo “ser-aí”, com o qual designamos esse ente.[13]

Todos esses conceitos da filosofia de Heidegger são importantes para as proposições que serão desenvolvidas pela ação existencialista de Sartre. A ideia da noção ontológica do ser por uma desconstrução do dado e a compreensão de si para existência é consciência necessária como ponto de partida para uma ação do homem, quase como um estopim; um ponto de partida necessário.

E Sartre demonstrará bem isso quando do trato da ação do homem para sua realização no mundo.

O homem é fundamentalmente desejo de ser,[14] nada mais que o conjunto de seus atos[15] e o existencialismo uma moral de ação e compromisso.[16]

E é justamente esse desejo de ser em ação que sustenta a viabilidade da hipótese aqui traçada, demonstrando que não basta nascer homem para que se garanta seus direitos da personalidade mas que compreenda e se faça homem para que se lute pela implementação positivada dos direitos da personalidade.

Afinal, toda realidade humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser. [17] Um contínuo “lançar-se para”.

E essa consciência do homem moderno é a única base a partir da qual é possível garantir realmente o ultrapassamento da ipseidade e, com isso, a possibilidade de uma existência livre[18]

 3 – Conclusões 

Dentro do engendramento argumentativo desenvolvido até aqui, chegamos às seguintes conclusões especulativas:

1 – Ainda que contrário a sedimentado conceito dogmático, a ética-metafísica kantianana não serve de exclusivo fundamento à natureza filosófico-juridica dos direitos da personalidade.

2 – O agir humano no tempo e no espaço tem significativa importância para a origem de tutelas normativo-positivas dos denominados direitos da personalidade.

3 – Se dogmaticamente os direitos da personalidade reservam-se ao desenvolvimento da pessoa-humana, em que se convertem as projeções físicas, psíquicas e intelectuais do seu titular, individualizando-o de modo a lhe emprestar segura e avançada tutela, é imperioso destacar que a compreensão fenomenológico-existencial põe verniz à ideia da noção ontológica do ser por uma desconstrução do dado e a compreensão de si para existência como consciência necessária e ponto de partida para uma ação do homem para sua realização no mundo.

4 – Por fim, restou demonstrado como a Fenomenologia Existencial, especificamente tendo como referenciais teóricos Heidegger e Sartre, responde de forma complementar como paradigma fundante à razão ontológica da natureza filosófico-jurídica dos direitos da personalidade 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 

BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.331.

CAMILO, Carlos Eduardo Nicoletti(Coord.). Comentários ao código civil: artigo por artigo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2009. 1021 p.

CASANOVA. Marco Antônio. Compreender Heidegger. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012. p. 89.

CRUZ, Danilo Nascimento. Tutela dos direitos da personalidade: aspectos materiais e processuais. Artigo inédito.

GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. 2ª ed. Petrópolis, 2012. p. 135.

GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre, RS: L&PM. 2017. p. 29.

HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2014. p. 67-68.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes. 2015. 141 p.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret. 2011. 140 p.

MÉSZÁROS, István. A obra de Sartre – busca da liberdade e desafio da história. São Paulo: Boitempo. 2012. 334 p.

NUNES, Benedito. Heidegger & ser e tempo. Rio de Jenairo: Zahar. 2002. 45 p.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso. 2013. p.17.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 23ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2013. p. 692.

TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 2ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 86.

WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. Porto Alegre: L&PM, 2012, p.117.

 

[1]      GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. Porto Alegre, RS: L&PM. 2017. p. 29.

[2]      SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 23ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2013. p. 157.

[3]      KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret. 2011. p. 65.

[4]      A título informativo, a doutrina faz a seguinte classificação dos Direitos da Personalidade: i) Dentre os que tratam da integridade física temos: a) o direito à vida, b) direito aos alimentos, c) direito ao próprio corpo e às partes separadas do corpo(vivo), d) direito ao corpo alheio às suas partes separadas(falecido); ii) Dentre os que tratam da integridade intelectual temos: a) direito à liberdade de pensamento, b) direitos autorais de ciências, artes, literatura; iii) Dentre os que tratam da integridade moral temos: a) o direito a honra, b) direito à imagem, c) direito à identidade pessoal, familiar e social, d) direito à liberdade civil, política e religiosa, e) direito ao recato, f) direito ao sigilo pessoal, doméstico e profissional. Por todos: CAMILO, Carlos Eduardo Nicoletti(Coord.). Comentários ao código civil: artigo por artigo. 2ª ed. São Paulo: RT, 2009. p. 122.

       Uma segunda classificação dá-se no plano conceitual, ao demonstrar que direitos humanos, direitos fundamentais e direitos da personalidade são mesma coisa diferençando apenas o plano em que personalidade humana se manifesta. A expressão direitos humanos é utilizada no plano internacional; direitos fundamentais é o termo normalmente usado para designar direitos positivados em cartas constitucionais já os direitos da personalidade são empregados em alusão aos atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas. Nesse sentido: CRUZ, Danilo Nascimento. Tutela dos direitos da personalidade: aspectos materiais e processuais. Artigo inédito.

[5]      TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. 2ª ed. São Paulo: Método, 2012, p. 86.

[6]      WARBURTON, Nigel. Uma breve história da filosofia. Porto Alegre: L&PM, 2012, p.117.

[7]      BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012, p.331.

[8]      SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso. 2013. p.17.

[9]      SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso. 2013. p.62.

[10]    HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2014. p. 67-68.

[11]    HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2014. p. 67-68.

[12]    KAHLMEYER-MERTENS, Roberto S. 10 lições sobre Heidegger. Petrópolis, RJ: Vozes. 2015. 141 p.

[13]    HEIDEGGER, Martin apud CASANOVA. Marco Antônio. Compreender Heidegger. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2012. p. 89.

[14]    SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 23ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2013. p. 692.

[15]    SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso. 2013. p. 30.

[16]    SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes de Bolso. 2013. p. 33.

[17]    SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. 23ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 2013. p. 750.

[18]    GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva. 2ª ed. Petrópolis, 2012. p. 135.

 

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