Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 9)  

19/10/2018

 

“La razón es y sólo debe ser la esclava de las pasiones, y nunca puede pretender otro oficio que el de servirlas y obedecerlas.” David Hume

A teoria da mente do outro é uma teoria tácita da natureza humana que procede da experiência que temos acerca de nós mesmos. Vejamos brevemente em que consiste no que se refere à avaliação das ações alheias.

Trata-se de um conjunto no qual intervém desejos, crenças e ações. Atribuímos aos demais um comportamento que obedece aos objetivos que mantêm — os desejos — e à visão do mundo de que dispõem — as crenças — para deduzir as ações que cabe prever que levarão a cabo. Como já mostrou Antoni Domènech [24], no sistema qualquer dos três componentes — desejos, crenças e ações — pode ser deduzido em função dos outros dois. Se conhecemos (ou intuímos) os desejos de alguém e suas crenças, estamos em condições de predizer sua conduta. Mas se contemplamos sua conduta, e sabemos suas crenças, deduziremos quais são seus objetivos; assim em todos os casos. É certo que para que a equação funcione é preciso dar por garantida uma condição especial da natureza humana: em que medida estamos dispostos a alcançar o que são nossos desejos. A ideia central da teoria darwiniana da seleção natural estabelece que cada organismo maximiza seus interesses próprios — identificados neste caso com a obtenção da progênie. Pois bem, o comportamento altruísta parece escapar a essa regra. Quem atua em beneficio de outro emprega seus recursos para favorecer a adaptação alheia, não a própria. Como foi possível fixar-se por seleção natural um comportamento assim?

Nem Darwin nem os neodarwinistas puderam explicá-lo. A sociobiologia logrou fazê-lo através de modelos como os da seleção de grupo [25] e de parentesco [26]. É duvidosa a aplicação destes modelos ao caso humano, mas ao que nos referíamos é a maneira particular de como os membros de nossa espécie satisfazem seus desejos [27]: não somente mediante uma maximização dos interesses pessoais.

É este o terreno em que aparece a conexão mais profunda entre natureza humana e comportamento moral, essa mesma que buscamos para oferecer uma fundamentação naturalista do direito. Por exemplo, se nos remontamos como fazíamos antes, à época grega, os humanos também se atribuíam a condição de seres racionais. Mas, somos realmente preferidores racionais dispostos a maximizar nossos interesses de acordo com nossas crenças?

A intuição acerca de nosso comportamento racional há fundamentado boa parte dos estudos tanto científicos como humanísticos acerca do ser humano, incluindo a maior parte da economia neoclássica. Contudo, fenômenos como o do castigo altruísta põe em duvida a premissa de nossa racionalidade perfeita. A teoria dos jogos já estudou a fundo os possíveis modelos de castigo altruísta [28] — mediante o jogo do ultimatum, por exemplo – e algumas investigações neurocientíficas já indicaram os processos cognitivos implicados e os possíveis circuitos neuronais que subjazem à capacidade de aprender normas, de segui-las e de tratar de impô-las mediante o castigo altruísta [29]. Também sabemos algo acerca da maneira como outros primatas se comportam neste domínio. Por exemplo, os monos capuchinos são, igual que os humanos, castigadores altruístas [30]. Os chimpanzés, não; se comportam como preferidores racionais - a maximização de seus interesses impede que aceitem esse tipo de perda [31].

O que significa ao menos três coisas: 1) que não sabemos qual pode ter sido o traço fixado antes: ou bem a linhagem comum a capuchinos + chimpanzés + humanos tem como traço primitivo o do castigo altruísta, com os chimpanzés desenvolvendo uma apomorfia de preferência racional, ou bem o traço primitivo é esta racionalidade firme, com o que os comportamentos de castigo altruísta de capuchinos e humanos são homoplasias, traços fixados de maneira independente; 2) que nosso grupo irmão, a linhagem animal mais próximo evolutivamente aos seres humanos, difere neste aspecto, quer dizer, a cooperação humana é espetacularmente diferente em comparação com a cooperação nas demais espécies porque os seres humanos exibem padrões únicos de altruísmo, tais como o castigo altruísta decorrente das violações das normas que ajudam a manter a cooperação em benefício das normas sociais; 3) a evidência experimental indica que a mera possibilidade de aplicar uma penalização é uma forma eficaz de incrementar a cooperação - esta prospera se o castigo altruísta é possível e deixa de funcionar se é eliminado.

Isto é importante porque, da mão do castigo altruísta - um dos elementos mais inquietantes de nossa forma de comportar-nos -, o que aparece em realidade é a evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a injustiça, quer dizer, de que a disposição das pessoas para castigar aos indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado pessoalmente, é tão inato que o exercitamos como parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser humano. Dito de outro modo, certas bases cerebrais nos fazem atuar de uma determinada forma não por causa de um (provável) livre-arbítrio ou por pura racionalidade, senão seguindo pautas que foram fixadas durante o processo de evolução de nossa espécie. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso implica que nossos instintos morais e sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem.

Este parece ser o sentido da justiça o que subjaz a ideia de John Rawls [32] acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal e não de interesses particulares as regras do jogo. É certo que a justiça é um desses valores ou conceitos abstratos que resultam mais difíceis de definir. Não há nada físico nem tangível ao que podemos chamar justiça. Forma parte do mundo das relações, não do mundo físico dos objetos. Mas, dado que nosso mundo, o humano, é um mundo de relações entre cérebros-mentes, ocupar-se de encontrar, em nossa natureza, a placa base, os fundamentos naturais e neurobiológicos dos valores humanos, não somente constitui um bom exemplo, ainda que parcial, das possibilidades que brinda a naturalização do direito e da justiça, senão que não é precisamente algo carente de significado e importância.

Resumindo, trata-se de uma ideia relativamente simples: não podemos seguir utilizando uma matéria prima que, ou não se compadece com a condição humana, ou se compadece apenas muito parcialmente com ela.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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