Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 7)

05/10/2018

3. O problema do determinismo

Para o problema que nos interessa aqui, a tarefa mais urgente e importante seria a de poder indicar que universais éticos confluem no direito a partir da seleção natural.

Convém, antes de adentrar-se por este caminho, entender de que estamos falando, pois se corre o perigo de confundir as propostas naturalistas. Algo assim sucedeu quando a sociobiologia, desenvolvida por Edward Wilson [14], propôs afastar a ética da mão dos filósofos e situá-la na dos biólogos. A obra posterior de Wilson está repleta de propostas filosóficas que se sustentam mal à luz dos conhecimentos científicos. Por exemplo, ao utilizar o comportamento altruísta dos insetos sociais como modelo para entender a moralidade humana, Wilson [15] cometeu o erro de confundir o que é provável que não seja senão uma homoplasia — um traço só em aparência similar, fixado por separado em duas linhagens distintas sem relação genética entre elas —, concebendo-a como uma plesiomorfia — um traço que se comparte porque o fixou um antepassado comum. Na medida em que o sistema altruísta de térmitas, formigas, vespas e abelhas está completamente determinado, cabe entender as barbaridades que se derivam de trasladar esse esquema à ética humana.

Qual é então, se há algum, o alcance da determinação genética que preside a moralidade humana?

A estas alturas é pertinente levar a cabo uma precisão na análise da conduta moral. A distinção entre motivo para atuar e critério aplicado a qualquer ação à hora de qualificá-la moralmente é muito comum na literatura especializada anglo-saxônica [16], mas é ignorada no âmbito filosófico-jurídico alheio a essa tradição. Cabe ignorá-la se qualquer âmago de fundamentação naturalista da moral se rechaça de antemão ao considerar-se determinista. Nada obstante, resulta tão necessário como óbvio indicar já que este suposto determinismo dista muito de ligar de maneira necessária a possessão de certas características próprias da espécie e toda conduta relacionada com o juízo moral. Nenhum sujeito tem por que ajustar-se, à hora de comportar-se, a suas crenças acerca do bem e do mal. É de todo possível crer, por exemplo, que um indivíduo está obrigado a prestar ajuda a uma pessoa assaltada por delinquentes e, por medo às consequências, abster-se de fazê-lo.

De não ser assim, de atuar sempre em consonância com nossos critérios éticos, não existiria o remorso. Pois bem, os universais que se podem deduzir da natureza humana se referem tanto às motivações como à estrutura do juízo moral, à maneira como se propõe o juízo ético, e não a seu conteúdo [17-18]. A condição de ser moral implica não em seguir certas regras, senão em utilizá-las como critério ou medida para julgar condutas. Charles Darwin [19] utilizou o conceito ilustrado de moral sense para descrever esse traço humano distintivo, e nos atribuiu em exclusiva. Se bem outros animais poderiam chegar, com a evolução de suas faculdades cognitivas, a alcançá-lo, nenhum dispõe dele. Somos sentimento moral por natureza e, graças a ele, valoramos, apreciamos e levamos a cabo condutas que correspondem à possessão de certos valores compartidos. Mas não o fazemos de maneira automática.

Até aqui, poucos filósofos e juristas dispostos a discutir os termos naturalistas poderiam encontrar algum argumento para descartar a teoria darwiniana, sobretudo no que se refere aos seguintes pontos:

a) a moralidade é um repertório evolutivo de mecanismos cognitivos e emocionais com distintos componentes biológicos, entanto são modificados pela experiência adquirida ao longo da vida humana;

b) a moralidade não é um domínio exclusivo do Homo sapiens - existem evidências significativas na literatura científica sobre diferentes espécies acerca de que os animais exibem comportamentos morais ou pré-morais básicos (padrões de conduta paralelos aos elementos centrais da conduta moral humana); e

c) a moralidade é um "universal humano" (existe em todas as culturas do mundo), uma parte da natureza humana adquirida durante a evolução;

d) as crianças pequenas e os bebês mostram alguns aspectos de conduta e cognição moral (que precedem às experiências específicas de aprendizagem e ao desenvolvimento de uma visão do mundo).

Assim que carece de risco, em termos de possível falácia, dizer que nossa natureza nos leva a julgar, mas não indica as pautas do juízo. Depois de tudo, que restaria à ética se não compartisse nossa espécie a tendência a julgar os comportamentos morais? Porém há mais. Cabe sustentar que o rastreio de universais éticos (e jurídicos) não termina em nossa natureza como agentes morais. De alguma maneira, existem também universais que se referem não às motivações nesta ocasião, senão aos critérios.

Ademais, o que os neurocientistas denominam de “plasticidade” – a habilidade para cambiar à luz da experiência – constitui a clave da natureza humana em todos os níveis, desde o cérebro e a mente até as sociedades e os valores morais. Desse modo, a grande vantagem evolutiva do ser humano radica no fato de que as limitações da evolução supõem uma fonte de instintos e predisposições que, de maneira direta ou indireta, condicionam e restringem nossas condutas, nossos valores, nossos juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos, mas não são determinantes. Somos o que somos e fazemos o que fazemos, nesse sentido, não apesar da natureza, mas graças a ela [20].

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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