Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 5)

21/09/2018

“Después de Darwin ya no hay fundamento «ahí fuera» más allá de la naturaleza humana.” Michael Ruse

  1. Natureza humana

Como os demais antropóides africanos, ninguém ignora que a natureza do ser humano é essencialmente social: nossa condição é a de um primata que nasceu para viver em comunidade. A expressão latina unus homo, nullus homo expressa bem essa natureza que nos caracteriza como espécie social. A interpretação mais comum desse fato em termos de evolução por seleção natural é a de entender que, para nossos antepassados, representou uma vantagem adaptativa a constituição de uma vida socialmente organizada.

Estamos desenhados pela seleção natural para desenvolver-nos, aprender a viver e a prosperar em um entorno social, no marco das restrições de um mundo natural. A natureza do ser humano e, consequentemente, todas as nossas ações, sejam ou não conscientes, é o resultado combinado não somente de uma complexa mescla de genes, neurônios e de sinapses senão também de experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa vida social, que confluem para dar o resultado final de um indivíduo inseparável da sociedade.  

O fenômeno da competência liguística põe muito bem de manifesto essa integração de natureza e sociedade. No modelo apresentado por Noam Chomsky [5-6-7-8] a competência linguística é um traço inato que deve atualizar-se mediante a pertença a uma família, a uma tribo ou a uma sociedade. A capacidade humana para desenvolver uma linguagem não se consegue sem os sinais fonético-semânticos procedentes de um grupo social.

As consequências dessa soma de competência e atuação — ou, melhor dito, de sua integração complementária— são importantes para entender a necessidade de afastar ou recusar o dualismo. Por razões que têm que ver com a aparição, há aproximadamente 7 milhões de anos, do único traço derivado humano compartido por todo o conjunto dos hominídeos, a bipedia, as cadeiras dos membros de nossa linhagem se transformam. O incremento do volume cranial no gênero Homo que se produz a meio caminho na evolução da família dos hominídeos, a partir de 2,5 milhões de anos atrás, converte em um problema o nascimento de seres com cérebros cada vez maiores cujas mães têm um canal pélvico estreito.

A solução que a seleção natural impõe é a de nascer com o cérebro muito pouco desenvolvido. Desse modo, durante sua infância, cada novo ser humano aumenta e completa seu cérebro mediante um processo que necessita dos sinais procedentes do grupo para poder realizar-se. E não é somente a linguagem o que faltaria se uma criança crescesse afastada de qualquer grupo. É o próprio cérebro o que não poderia amadurecer. E o que dizer de outros elementos pertencentes a nossa constituição como indivíduos?

A hipótese mais razoável estabelece que a natureza humana e, consequentemente, o sentido do self, é em grande medida o resultado de uma mescla similar a do caso da linguagem: uma amálgama em que genes e neurônios por uma parte, e experiências, valores, aprendizagens e influências procedentes de nossa vida sociocultural, por outra, confluem para dar o resultado final de um indivíduo inseparável da sociedade. Quando se fala de natureza humana e de seus efeitos práticos, é, pois, viável – e inclusive exigível —  o desenho de novos critérios para que os setores do conhecimento próprios do Direito (e da Ética) sejam revisados à luz dos estudos provenientes das ciências que buscam entender em que consiste nossa natureza como espécie.

Esse conjunto de ciências “ponte”, baseadas todas elas na dupla perspectiva indivíduo-sociedade, nos ensina que o comportamento humano se origina a partir da intercessão de nosso sofisticado programa cognitivo de raiz filogenética com o entorno sociocultural em que transcorre nossa ontogênese. Também nos indica que as representações culturais devem ser vistas como algo que se sustenta em mecanismos próprios de nossa arquitetura cognitiva inata. A estrutura e o funcionamento desses mecanismos regulam de que modo as representações específicas se transmitem de um indivíduo a outro, distribuindo-se dentro da comunidade como resposta a condições sociais e ecológicas distintas. Em síntese, de que é a natureza humana a que impõe constrições cognitivas fortes para a percepção, armazenamento e transmissão discriminatória de representações culturais, limitando o rol das variações sociais, morais e jurídicas possíveis.

A um nível mais profundo, a existência desses mecanismos também implica que existe em nossa espécie uma considerável carga de conteúdo mental universal. Quer dizer, como sustentam as primeiras intuições de Charles Darwin [9] acerca da natureza humana, nascemos com determinados instintos morais, em um marco em que a educação intervém para graduar os parâmetros e guiar-nos até a aquisição de sistemas morais e jurídicos particulares; de que há algo no cérebro humano que nos permite adquirir um sistema de valores e princípios ético-jurídicos e que permite sustentar a existência de universais morais em um sentido forte do termo [10-11]. Para certas coisas, portanto, há uma só moral universal.

E não é isso tudo. Também haverá que aplicar ao caso dos valores humanos mais apreciados — justiça, liberdade, igualdade, autonomia, dignidade... — a ideia de que somente através do conhecimento da mente, do cérebro e da natureza humana, será possível contribuir de forma significativa à compreensão do ser humano, de sua conduta, seus juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelece [12]. Não é possível compreender o sentido profundo do Direito e da moral sem abordar antes a complexidade de nossa mente e do cérebro que os habilitam e que os sustenta, um conjunto que administra e gera o sentido da identidade, da personalidade, da percepção do outro e da intuição de nossa própria condição enquanto seres morais.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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