Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 4)

14/09/2018

“Mantener una opinión disidente, siendo parte de un grupo, es la cosa más difícil del mundo”. Doris Lessing

Direito e a «unidade do conhecimento» (II)

Por fortuna, alguns juristas começam a entender que lhes convêm interar-se do que oferecem os conhecimentos empíricos acerca da natureza humana. Passo a passo, a filosofia jurídica começa a indagar sobre o sentido, a validez e a função do direito desde uma perspectiva antropológica e naturalista em relação aos dados existenciais do ser do homem, como os problemas do livre-arbítrio, da racionalidade, da responsabilidade, do bem e do mal, da alteridade, da cooperação, do altruísmo, da igualdade ... E segue.

Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam da natureza e da conduta humana e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito e da justiça.[1]

Destaca-se cada vez mais a consciência de que, dado que o direito e a ética carecem das bases de conhecimento verificável acerca da condição humana (indispensável para obter predições de causa e efeito e juízos justos baseados nelas), é necessário, para compor o conteúdo e a função do direito e da justiça, tratar de descobrir como podemos fazê-lo a partir do estabelecimento de vínculos com a natureza humana que, de forma direta ou indireta, condiciona e limita nossa conduta, nossos juízos morais e os vínculos sociais relacionais que estabelecemos.

E ainda que não haja uma resposta simples à pergunta de se a moralidade, o direito e a justiça são um fenômeno cultural ou um fenômeno biológico, o certo é que a importância da mútua relação entre evolução biológica e a emergência de uma conduta moral e jurídica mais complexa, nos momentos em que a espécie humana estava desenvolvendo suas capacidades cognitivas e a linguagem articulada, parece estar fora de toda dúvida razoável. O processo evolutivo proporcionou ao ser humano a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade (que por sua vez deu origem a juridicidade), assim como um conjunto de necessidades, de emoções e de desejos básicos que, com o passo do tempo e graças a maleabilidade do cérebro humano, a epigenética e o papel regulador que jogam as experiências na conectividade sináptica, deram lugar a nossa atual e aparentemente mais ampla riqueza moral e jurídico-normativa.

Este é o ponto fundamental a partir do qual já não mais parece decente e razoável tentar dissimular e/ou negar a necessidade de se estabelecer um diálogo interdisciplinar que nos permita sair dos limites de nossas próprias disciplinas para aprender das ciências vizinhas, ainda que assumindo os riscos e as dificuldades teóricas e metodológicas de qualquer programa de investigação integrador.

De fato, hoje, mais que nunca, se impõe a convicção de que nenhuma filosofia ou teoria social normativa, por pouco séria que seja, pode permanecer distanciada ou isolada fingindo desconhecer os resultados dos descobrimentos procedentes dos novos campos de investigação científica que trabalham para estender uma ponte entre a natureza e a sociedade, a biologia e a cultura, em forma de uma explicação científica da mente, do cérebro e da conduta humana. Nenhum filósofo ou teórico do direito, consciente das consequências práticas que sua atividade provoca, deveria desconsiderar as sólidas evidências (i) de que existe uma natureza humana comum -cujo núcleo constitui o fundamento de toda a unidade social, ético e cultural - e (ii) de que é um imenso equívoco seguir pensando que tudo começou quando os sapiens apareceram, isto é, que somos a origem, o fim e a medida de todas as coisas.

Pois bem, como disse antes, o propósito desta resenha é o de indicar os principais traços de um programa naturalista acerca da naturalização do direito, perfeitamente compatível com a pretensão de estabelecer determinadas implicações jurídicas a partir de uma compreensão realista da natureza humana. Isto não significa, sobra dizer, nenhum intento de substituir a condição social humana por sua condição biológica. Nada obstante, parece essencial e de uma profunda humildade intelectual reconhecer que o direito ainda não teve sequer um êxito relativo como ciência e que segue à deriva do verdadeiro conhecimento científico, vagando «por uma selva escura» com sua enorme massa de observações e construções mal digeridas, com um espantosamente imponente corpo de parafernália filosófica barroca e com um superlativamente avultado número de teorias atravessadas de prejuízos, de ideologias, de mitos fabricados por comunidades acadêmicas de tipo tribal, de preocupações (sobre-) especializadas e de um acentuado desdém por todo tipo de experiência que não se destine a escravizar o pensamento jurídico em uma forma de conhecimento estéril.

Deixando de lado os aspectos lógico-formais da falácia naturalista (já devidamente resolvidos por Richard M. Hare [4]), o maior equívoco de uma concepção do fenômeno jurídico apartada de nossa condição biológica como espécie é o do uso de uma teoria dualista cartesiana de res cogitans frente a res extensa. Por razões que vou abordar de imediato, permitir que domine a narrativa de fundamentação jurídica (ou moral) em termos do “natural” frente ao “social”, do “biológico” frente ao “cultural” ou do “inato” frente ao “adquirido” é, no melhor dos casos, enganoso e, no pior, uma burda tergiversação: somos primatas que possuem ética, uma condição (ética) que forma parte de nossa natureza e, “por lo tanto, queda englobada en el conjunto de nuestras imperfecciones biológicas”. (Mary Midgley)

 

Notas e Referências

[1] Não me refiro, evidentemente, ao fato de que nos últimos anos alguns juristas passaram a experimentar uma explosão de interesse pela ciência com uma mescla de fascinação, oportunismo e insolvência que, paradoxalmente, se traduz em uma nova forma de distanciamento. Por uma parte, e para tentar construir um tipo de discurso “interdisciplinar”, alguns juristas (só alguns: não há que meter a todos no mesmo saco) se apropriam alegremente das novas investigações neurocientíficas para “atualizar” velhas posturas jurídicas; por outra parte, e na medida em que esta apropriação indevida e inconsistente não funciona ou somente funciona tergiversando os critérios usurpados, empenham-se em ignorar deliberadamente todos os esforços das demais ciências dedicadas ao estudo científico da natureza humana ou, o que é o mesmo, para compreender a condição humana com base em rigorosos estudos empíricos. E o que resulta ainda mais grave, não se resistem à tentação de prestigiar e desfrutar de outra das grandes «ciências vodus» de nosso tempo: a psicanálise e suas fabulações pseudocientíficas.

 

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