Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 3)

07/09/2018

 "Todo se ha dicho ya, pero como nadie escucha es preciso contarlo de nuevo". André Gide

Direito e a «unidade do conhecimento» (I)

Boa parte da filosofia moral e jurídica contemporânea, por muito venerada que seja no âmbito acadêmico, continua desinteressada em adquirir uma compreensão mais profunda do por que os seres humanos são seres sociais e morais e do que nos predispõe a estabelecer (e afrontar os problemas associados com) nossos vínculos relacionais, quer dizer, insiste em rejeitar qualquer aproximação científica com o naturalismo/darwinismo para entender a base da conduta (moral e social) humana [1]. A maioria dos filósofos permanece crítica e hostil em relação às evidências que procedem do estudo da natureza humana pese a que, de maneira óbvia, os resultados obtidos supõem uma nova fonte de conhecimento relacionada de uma forma muito direta com as questões que sempre interessaram ao mundo da filosofia desde Platão e Aristóteles a John Rawls e Noam Chomsky.

Nos últimos anos, contudo, a moralidade se transformou em uma zona de convergência para pesquisadores no âmbito das Ciências e Humanidades. A quantidade de investigação experimental destinada a entender o comportamento moral se incrementou rapidamente, ao igual que a diversidade de métodos empregados. Por primeira vez, os avanços dos estudos científicos sobre a origem e o valor das normas morais nas sociedades humanas oferecem propostas capazes de situar a reflexão humanística e científico-social sobre uma concepção da natureza humana como objeto de investigação empírico-científica e não mais fundada ou construída a partir da mera especulação metafísica.

Desde um ponto de vista científico, esse (ainda tímido) câmbio de perspectiva implica que para compreender os fundamentos da moralidade é necessário dilucidar em que consiste a natureza do ser humano: quem somos, o que nos motiva, por que nos comportamos da forma como o fazemos, por que desenvolvemos as estruturas e os vínculos sociais que construímos, o que significa para o animal humano “atuar como agente moral”, de onde vem nossa predisposição natural para produzir juízos morais e a forte inclinação para construir sistemas normativos sociais e legais.

Particularmente no que concerne ao direito, embora não exista a menor dúvida acerca do fato de que este pode ser apreciado de diferentes formas, é provável que no último degrau da aceitação dos estudos científicos da natureza humana se encontrem os juristas. Mas uma das vias possíveis para explorar o fenômeno jurídico consiste em analisar o objeto, a função e o propósito do direito moderno baixo uma perspectiva naturalista, convertendo em viável a proposta (e inclusive a exigência) de novos critérios para que os setores do conhecimento no direito sejam revisados à luz dos estudos e investigações procedentes da ciência cognitiva, da antropologia, da neurociência cognitiva, da genética do comportamento, da primatologia, da psicologia evolucionista, entre outras que buscam dar uma explicação mais empírica, diligente e robusta acerca da natureza humana. Por esta via, a pergunta sobre a origem, o sentido e a finalidade do direito e da justiça conduz inexoravelmente à busca dos fundamentos naturais da conduta moral humana.

E não são poucos os achados que modificam a visão da natureza e da cultura humana no contexto dos melhores fatos e teorias disponíveis na atualidade, os quais deveriam ilustrar o ponto de vista de mais que um clube seleto de acadêmicos. A consilience ou unidade do conhecimento vindicada por E. O. Wilson está mais ao alcance do que parece. Resultado: pouco a pouco o sujeito moral kantiano deixa seu lugar ao sapiens produto da evolução por seleção natural. Não somos seres exclusivamente morais ou portadores de uma racionalidade absoluta que se nos impõe e converte nossas vidas e agrupações em realização de um fim predeterminado. Somos uma espécie que descobriu que determinados comportamentos e vínculos sociais são necessários para resolver problemas adaptativos relativos à sobrevivência, ao êxito reprodutivo e à vida em comunidade, e aceitou a necessidade de assegurá-los e controlá-los mediante um conjunto de normas e regras de conduta.

É certo que grande parte dos juristas, com seus pontos de vista limitados e seus próprios interesses, ainda não conseguiu superar o grande problema da tradição jurídica filosófica e da ciência do direito: pensar como se os seres humanos somente tivessem cultura (uma variedade significativa), nenhuma história evolutiva e/ou nenhum cérebro. Ainda há uma forma dominante de pensar que produz resistência, inclusive fobia ou rechaço, ante ao fato de que o ser humano é uma espécie biológica, um animal evolucionado ao fim e ao cabo. E seguramente seja essa a razão do por que, no âmbito do jurídico, quase sempre se relega a um segundo plano – ou simplesmente se ignora - a devida atenção à natureza humana e, muito especialmente, ao fato de que para compreender o que somos e como atuamos, também devemos compreender o cérebro e seu funcionamento [2].

Mas não é isso tudo. Quando abordam o estudo do comportamento humano e do direito, os juristas têm o costume de sustentar a presença de diversos tipos de explicações (sociológicas, normativas, axiológicas...) limitadas e ajustadas às perspectivas de cada uma das respectivas disciplinas e áreas de conhecimento; quero dizer, sem sequer considerarem a possibilidade de que exista uma classe de explicação unitária para a compreensão do fenômeno jurídico e de sua projeção fenomenológica. O problema é que tal explicação unitária de base existe. Desde o ponto de vista teórico é possível imaginar uma explicação que integre os fatos aparentemente inconciliáveis do social e do natural, sempre e quando se parta de um cenário mais crível da emergência do direito e que esteja devidamente sustentado em um modelo darwiniano sensato sobre a natureza humana [3]. 

 

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