Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 28)

08/03/2019

 

“Seamos fieles a nuestros defectos”. M. M. Vriends

É necessário voltar a definir o que é o ser humano, de recuperar e redefinir em que consiste a natureza humana ou simplesmente de aceitar que o homem não pode ser contemplado somente como um ser cultural carente de instintos naturais, isto é, de situar ao homem em um contexto e uma perspectiva mais real e mais verdadeiramente humana, desmistificando e liberando-nos dos equívocos, crenças e falsas concepções acerca do direito. Ainda que muitas perguntas sigam sem resposta, estamos firmemente convencidos de que uma consideração adequada da natureza humana pode ajudar-nos a iluminar com novas interpretações os velhos problemas que até agora permanecem no limbo da filosofia e da ciência do direito.

Não devemos olvidar que o direito está entre os fenômenos culturais mais poderosos já criados pela humanidade e que precisamos entendê-lo melhor se quisermos tomar decisões políticas, jurídicas e éticas bem informadas e justas. Já não podemos manejar-nos na filosofia e na ciência do direito do século XXI baseados em uma psicologia humana impossível, com uma ideia de natureza humana procedente do século XVII e nem tão pouco trabalhar com os métodos do século XIX. Somos antes de tudo animais, e tudo o que seja fazer uma abstração da dimensão natural do ser humano, sua natureza biológica e sua origem evolutiva, é falso.

E não se trata, depois de tudo, de pretender impor grandes novidades. O que se intenta mediante uma perspectiva naturalista do fenômeno jurídico, das normas e dos valores morais humanos é vincular de forma prioritária a concepção da justiça com a natureza humana, devidamente fundada na herança e na cultura, isto é, de entendê-la e fazer dela o sentido mesmo de nossa existência como primatas peculiares. Tão pouco se trata de um problema de pouca importância ou de um mero exercício mental para os juristas e os filósofos acadêmicos. A eleição da forma de abordar o direito supõe uma diferença importante no modo como nos vemos a nós mesmos como espécie, condiciona as estratégias que adotamos para regular nossas instituições e práticas sociais e determina, em última instância, o repertório de ideias e teorias acerca do sentido e da finalidade do raciocínio prático ético-jurídico.

O modo como se cultivem determinados traços de nossa natureza e a forma como se ajustem à realidade configuram naturalmente o grande segredo do fenômeno jurídico, da justiça, do homem como causa, princípio e fim do direito e, consequentemente, para a dimensão essencialmente humana da tarefa de elaborar, interpretar, justificar e aplicar o direito. Enfim, de um direito e uma justiça que, partindo da aceitação lúcida e serena de nosso lugar no mundo como símios muito inteligentes e com consciência moral, devem servir à natureza humana e não ao contrário.

 

Notas e Referências

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