Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 26)

22/02/2019

“Quien presume de predecir el futuro miente, aunque el azar pueda hacer realidad su predicción”. Provérbio Árabe

 

9. O que podemos esperar?

Situar o problema acerca do futuro do direito no nosso tempo implica adotar uma postura prospectiva, tendo como objetivo oferecer linhas de reflexões que convirjam num consenso possível. Não se trata de uma simples tarefa de descrever o que aí está – ou ainda está – senão do que está por vir, do que parece possível (e até mesmo necessário) vislumbrar esboçar-se no horizonte anunciador do futuro, e que nem por essa razão é menos do nosso tempo, pois se são as coordenadas de nossa vivência atual as condições de possibilidade do futuro, só a assumida intencionalidade antecipante dá sentido e direção ao nosso caminhar. (A. C. Neves)

Qual a relação dos avanços das ciências que se ocupam da natureza e da conduta humana com as propostas teóricas e metodológicas do direito? Em que medida um enfoque naturalista poderá vir a resgatar a filosofia e a ciência do direito do insolamento teórico, do hermetismo dogmático e/ou do anacronismo metodológico a que estas chegaram? Poderão os resultados das investigações científicas sobre a natureza humana provenientes de outros campos cientificamente relevantes virem a servir de fonte de informação para a filosofia e a ciência do direito, nomeadamente no que se refere à elaboração (ou reinvenção) de critérios ontológicos e metodológicos que se afastem das deficiências subjacentes às atuais concepções comuns da psicologia (e da racionalidade) humana? Duvido por duas razões muito simples. A primeira é que os juristas distam muito de estar preparados para que os dados científicos guiem suas teorias e práticas jurídicas. A segunda razão pela qual existe resistência à ideia de que uma perspectiva naturalista afete ao direito tem que ver com a ameaça percebida à nossa “imaculada” noção de cultura e racionalidade que sem dúvida estão estritamente vinculadas com o problema do direito e da interpretação jurídica.

Seja como for, não restam dúvidas que as consequencias dessas investigações científicas são importantes para a ciência jurídica. Trazem à baila, como dissemos antes, questões fundamentais acerca do fato de que a natureza humana não somente gera e delimita (não determina) as condições de possibilidade de nossas sociedades, das condutas ético-jurídicas e dos modelos socioculturais possíveis, senão que também, e muito particularmente, guia e põe limites ao conjunto institucional e normativo que regula as relações sociais.

A filosofia e a ciência do direito não podem oferecer uma explicação ou uma descrição do “direito real”, do fenômeno jurídico ou da racionalidade jurídica, nem menos esgotar-se nelas, porque sua perspectiva não é primordialmente explicativa nem descritiva, senão normativa. É de sobra conhecido que no curso da história e a despeito do progresso de nossos conhecimentos científicos não nos caracterizamos precisamente pela compreensão que temos de nossa própria natureza e de nossas identidades neuroculturais. Semelhante conhecimento, contudo, parece ser uma condição prévia para conhecer a maneira em que a natureza humana deve ser compreendida e integrada de modo construtivo a nossas sociedades e a nossas concepções do mundo.

Dito de outro modo, o direito adquirirá um grau maior de rigor enquanto se reconheçam e se explorem suas relações naturais com um panorama científico mais amplo (um novo panorama intelectual que antes parecia distante, estranho e pouco pertinente). A natureza humana é resultado de adaptações acidentais que se produziram ao longo da evolução através do funcionamento da seleção natural e que adquiriu formas particulares para solucionar problemas adaptativos de larga duração relacionados com a complexidade de uma existência, de uma vida, essencialmente social.

Conhecer-nos a nós mesmos é o maior logro de nossa espécie. E compreender-nos a nós mesmos – de que estamos feitos, que motivos nos impulsionam e com que objetivos – implica, em primeiro lugar, compreender nossa própria natureza. Somente a partir desta base poderemos criar e/ou realizar as eleições adequadas que conduzam a um direito justo, estável e com sentido; somente desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao jurista captar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural.

Já não mais parece lícito e razoável construir-se castelos normativos “no ar” acerca da boa ontologia, da boa metodologia, da boa sociedade ou do direito justo. Porque uma teoria jurídica (o mesmo que uma teoria normativa da sociedade justa, ou uma teoria normativa e metodológica da adequada realização do direito), para que suas propostas  programáticas e pragmáticas sejam reputadas  “aceitáveis”, têm antes que conseguir o  nihil  obstat, o certificado de legitimidade, das ciências mais sólidas dedicadas a aportar uma explicação científica da mente, do cérebro e da natureza humana que os mitos aos que estão chamadas (e destinadas) a substituir.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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