Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 24)

08/02/2019

 

«La emoción más antigua y más intensa de la humanidad es el miedo. Y el más antiguo y más intenso de los miedos es el miedo a lo desconocido». H. P. Lovecraft

Este tipo de explicação das normas jurídicas poderia realizar-se mediante uma argumentação do tipo "sobrevivência do mais apto". Em épocas primitivas a sobrevivência, inclusive das sociedades, era algo precário. Para que uma sociedade ou tribo pudesse sobreviver era necessário que nela existisse certa estabilidade. A principal função das normas jurídicas é precisamente a de proporcionar esta estabilidade na forma de ordenar a convivência humana cada vez mais complexa.  Mas isto não nos explica, contudo, o aparecimento de tais normas. Como, a partir de uma dada sociedade, foi possível passar de mecanismos desenvolvidos pela evolução a um nível individual ou grupal para a elaboração de sistemas jurídicos largamente partilhados?

Para passar do nível individual ou grupal de comportamento para o nível social parece ser crucial entender a criação de regras de comportamento como o resultado de um processo horizontal de “transação” e “negociação” entre indivíduos. As relações sociais implicam negociações, exceto nos casos em que há um grande desequilíbrio de poderes. Nas origens dos sistemas normativos devem ter estado presentes, pelo menos em parte, negociações entre indivíduos inclinados a adotar, no seu próprio interesse, certas regras e disposições relativas ao comportamento social. Estas negociações devem ter sido influenciadas pelos tipos de vínculos sociais relacionais estabelecidos entre os participantes e, finalmente, terão conduzido a um compromisso a respeito de um determinado conjunto normativo cuja finalidade seria a de distribuir direitos e deveres reciprocamente outorgados.

Por certo que esta concepção relativa à criação das regras de conduta só é possível se tomamos como premissa uma concepção de direito fundamentada, entre outras coisas, em uma moral de respeito mútuo, ou seja, de que somos nós mesmos quem, ao conceber o direito como uma estratégia adaptativa e com a consciência de ninguém é completamente autônomo, outorgamos, por meio de normas compartidas, direitos e deveres a todo o homem, com vistas a viabilizar os quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais e, assim, a vida social mesma.

Com isto, o aparente mistério de que exista direitos e deveres que não foram outorgados se soluciona de uma maneira mais simples: todos os direitos e deveres, inclusive os denominados direitos humanos, têm de ser outorgados a seus portadores, só que já não são outorgados em função de premissas religiosas ou metafísicas, senão por nós mesmos ao conceber-nos baixo uma moral baseada na solidariedade mútua e seu significado social, gerada no seio de um microcosmo social (família, grupo, tribo), a partir do qual é generalizada e universalizada como crença culturalmente construída e transmitida (em uma espécie dotada da faculdade da linguagem e com forte sentimento de empatia). Não há, pois, direito ou dever que não seja outorgado para resolver os problemas recorrentes relacionados a como devemos conduzir-nos adequadamente na ecologia social existente [55].

Esta argumentação pode, também, ser completada por outra, já agora acudindo à psicologia humana, segundo a qual os indivíduos, diante da intrínseca necessidade de pertencer a um determinado grupo, tendem a abandonar as pautas de comportamento que são penalizadas e mantêm as pautas de conduta que são gratificantes. Desse modo, a possessão de normas jurídicas como uma pauta de conduta se segue da utilidade de possuir normas que tenderão a favorecer a cooperação e controlar a agressão no interior do grupo. Isto mostra como a criação de normas, o respeito às mesmas e a punição daqueles que infringem as regras da comunidade têm uma base natural e como a mente humana possui capacidades cognitivas especiais que lhe permitem distinguir entre colaboradores e trapaceiros. Mas, quais são os verdadeiros benefícios ou a real utilidade que servem para justificar a possessão de normas jurídicas?

Em primeiro lugar, possuir crenças éticas é possuir um sistema de consignas para a ação para analisar ações alternativas em termos de aspectos favoráveis ou desfavoráveis. Se não contássemos com crenças tais como “a justiça é boa”, ou "se deve dizer a verdade e cumprir as promessas, exceto...", como guias, já bem atuaríamos a cegas ou, do contrário, tenderíamos que dedicar muito tempo à reflexão em cada caso particular. Não possuir crenças éticas de nenhum tipo ou não contar com tendência a ser guiados por tais crenças, seria igual que não contar com crenças gerais em absoluto, ou não possuir nenhum padrão normativo de comportamento. O possuir algumas normas é, portanto, uma medida de economia essencial para o indivíduo, mesmo que estas nem sempre produzam soluções corretas em todas as circunstâncias.

Ademais, se a vida há de fazer-se tolerável, deve proporcionar algumas estratégias de segurança, estabilidade das relações sociais e proteção contra os ataques às condições fundamentais da existência individual. Deve existir previsibilidade e ordem dentro de um grupo social. Para proporcionar uma ordenada convivência humana devem existir regras revestidas de certa autoridade, sendo que estas regras são tanto mais eficazes quanto mais formal é o mecanismo de coação. Nesse sentido, as normas são úteis não somente como meio eficaz para tomada de decisões, senão também como um sistema eficiente de guias para a vida individual e cooperativa.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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