Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 23)

01/02/2019

“La moralidad es muchas otras cosas, pero en su base es control social”. Christopher Boehm

O desenvolvimento dos sistemas normativos implicou processos causais gerados pelas inevitáveis colisões de interesses próprios relativos à convivência social e em vista da necessidade de inferir os estados mentais, de controlar e de predizer o comportamento dos indivíduos, isto é, de antecipar as consequências do comportamento dos demais em empresas que requerem a competição ou a cooperação de vários indivíduos. Dito de outro modo, criamos um sistema complexo de justiça e de normas de conduta para canalizar nossa natural tendência à “agressão” decorrente da falta de reciprocidade e dos defeitos que emergem de nossas relações sociais. A própria ideia de justiça – no seu sentido apenas humano, e quaisquer que tenham sido os significados que haja recebido ao longo de nossa história cultural – sempre quis exprimir essa suprema axiologia da existência humana comunitária.

As normas jurídicas representam a perspectiva e os valores do grupo social como totalidade. As normas não são meras regulações que atuam como uma espécie de polícia de trânsito com respeito à interação social; mais bem, são regras constitutivas que expressam e/ou criam de fato modelos comportamentais e oferecem benefícios potenciais e eficientes àqueles que as seguem e castigos para os que as descumprem. Em palavras mais simples: a justiça, entanto um instinto individual e relacional, parte de nossos instintos morais, embora tenha uma codificação social em forma de leis; estas mudam mais rapidamente, mas sobre o substrato neurobiológico que estabelece o que é justo ou injusto.

Nesse sentido, uma explicação darwinista sobre a evolução do direito supõe que as normas de conduta (no caso, de natureza jurídica) representaram uma vantagem seletiva ou adaptativa para uma espécie essencialmente social como a nossa que, de outro modo, não haveria podido prosperar. Tais normas plasmaram a necessidade da possessão de um mecanismo operativo que permitisse habilitar publicamente nossa capacidade e necessidade de inferir os estados mentais e de predizer (e controlar) o comportamento social.

Mas com a correlação entre normas jurídicas e natureza humana aparece um novo problema. Agora o grande interrogante será o de por que o homem vive em sociedade e se submete a normas; sociedade e normas que supõem limitações a sua liberdade como indivíduo. Viver em sociedade é viver baixo normas e as normas se concebem, agora, como expressão ou prolongação da natureza humana - e não somente como sua limitação -, isto é, como uma manifestação cultural que expressa formas determinadas de condutas adaptativas, às quais aderimos ou rechaçamos de forma automática e emocional.

 Pois bem, há um consenso entre os estudiosos do direito no sentido de que os sistemas jurídicos regulam o uso da violência na sociedade, monopolizam o uso da força física e costumam ser (ou, segundo as versões otimistas sobre a natureza humana, sempre são) opressivos ao impor os valores dos grupos dominantes. As características humanas da cooperação, da vulnerabilidade recíproca, da igualdade aproximada e do altruísmo apontam diretamente à necessidade de que as sociedades se dotem de normas que restrinjam a liberdade de seus membros através de certas proibições. Ademais, tais proibições, para que sejam eficazes, devem ir acompanhadas de sanções que, no caso do direito, serão institucionalizadas.

Tudo isso é certo, mas parece ser unicamente uma parte da história, já que os sistemas jurídicos têm também o cometido de abordar problemas relacionados com os vínculos sociais relacionais e, neste contexto, resolver os problemas decorrentes de uma existência humana essencialmente comunitária. Estes problemas surgem, precisamente, devido às características que associamos aos seres humanos tais como são. Em efeito, quando afirmamos que um grupo possui normas (éticas e/ou jurídicas), ao menos parte do que significamos é que o promédio de seus membros possuem crenças acerca do que se elege ou prefere justificadamente, consideram algumas regras de conduta como revestidas de autoridade e justificadas, algumas vezes criticam às pessoas e suas condutas por incumprimento das regras postas  e se sentem motivadas, até certa medida, a escolher o preferível e a conformar-se com determinadas regras jurídicas, já por elas mesmas ou a causa do interesse na aprovação dos demais.

Qual é a razão das normas jurídicas? Qual é a explicação acerca de como é possível que tenhamos invariavelmente, enquanto espécie, regras respeitantes à maneira como devemos conduzir-nos?

A importância de tais regras para a vida social nos leva a conjeturar que as sociedades que sobrevivam contem com algum tipo de regras revestidas de consenso e/ou de autoridade e, portanto, com algum conceito tal como “é legalmente obrigatório que” ou, com relação a regras mais informais, “é moralmente obrigatório que”, ou ambas as coisas. Por outro lado, do fato de que tais normas de comportamento sigam mantendo-se hoje em dia, parece igualmente razoável pressupor que a utilidade dos sistemas éticos e jurídicos deve haver desempenhado alguma função adaptativa e de que existem certos tipos de mecanismos evolutivos subjacentes às nossas normas de conduta.

De fato, as regras morais e jurídicas não haveriam tido lugar em absoluto se nosso mundo houvesse sido semelhante a um paraíso celestial, já que neste mundo não haveria sido necessário realizar atos considerados como imorais ou ilícitos. Muitas regras jurídicas (e morais) proíbem a realização de algo que alguém muito bem poderia sentir-se tentado a fazer e que seria injurioso para outra pessoa, mas em uma paradisíaca “situação ideal” de convivência nunca se dariam estas condições e, em consequência, não existiriam normas de conduta (jurídicas ou morais). Tudo leva a crer que os sistemas normativos se criam com motivo da tensão surgida entre os interesses coletivos e individuais, sobretudo quando os interesses díspares tendem a macular a estabilidade dos vínculos sociais relacionais estabelecidos. Em outras palavras, um pré-requisito para o aparecimento de regras jurídicas é a existência de condições tais que as faça úteis, ainda que também é possível que algumas normas jurídicas se desenvolvam sem nenhuma função.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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