Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 22)

25/01/2019

 

“En ciencia no gana el que grita más alto sino el modelo que mejor se ajusta a la realidad y la batalla está decidida.” P. Malo

8 - O sentido do Direito e a razão das normas jurídicas

Assim que o problema do sentido e finalidade do direito conduz inevitavelmente à busca dos fundamentos antropológicos da natureza e da conduta humana. O direito e as normas jurídicas existem unicamente porque o homem, como o paradigma das espécies culturais, estabelece relações sociais. O ser humano como pressuposto, fundamento e sujeito de todo ordenamento jurídico, político e moral está orientado para a vida social: a presença, o reconhecimento e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno jurídico. Qualquer teoria, norma ou discurso que exclua, recuse ou elimine a participação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou restringe o fenômeno social como condição de nossa humanidade, porque aniquila o processo biológico que o gera [53].

Mas, para entender a condição humana – e o direito é parte dessa condição e a sua ideia (ideia de direito) é o resultado da ideia do homem – há que se compreender ao mesmo tempo a dinâmica, em conjunto, entre natureza humana e o mundo das representações culturais, superando a ideia de que o homem deve ser contemplado unicamente como um ser cultural sem instintos naturais (que condicionam seu comportamento) e sem nenhuma história evolutiva.

 Desse modo, uma vez admitido que os homens vivem e se desenvolvem em sociedade não porque são anjos ou criaturas dotadas de uma alma imortal, senão porque são animais sofisticados, resulta razoável inferir que a ideia do direito gerada a partir de uma moral de respeito mútuo emana da e está limitado pela natureza humana: de nossa faculdade para antecipar as consequências das ações, para fazer juízos imediatos sobre o que está moralmente bem ou mal e para eleger entre linhas de ação alternativas [54]. Nossas manifestações jurídicas não são coleções casuais de hábitos arbitrários. São expressões canalizadas de nossos instintos morais e sociais, ou seja, de uma série de predisposições genéticas para desenvolver-nos adequadamente em nosso entorno.

Dispomos de normas de conduta bem afinadas porque nos permitem maximizar nossa capacidade de predizer, controlar e modelar o comportamento social respeito à reação dos membros de uma determinada comunidade. O direito (e também a moral), mais que uma invenção recente, é parte da natureza humana e está evolutivamente enraizado na sociabilidade dos mamíferos, ainda que a tendência a medir cuidadosamente nossas ações frente ao que poderíamos ou deveríamos haver feito na “passarela intersubjetiva” de nossas vidas e nosso diálogo interior que eleva o comportamento moral a um nível de abstração e autorreflexão seja uma característica singularmente humana.

Embora o processo de seleção natural não tenha especificado nossas normas e valores morais, nos há dotado de uma estrutura neuronal psicológica com determinadas tendências e habilidades necessárias para desenvolver uma bússola interna que tenha em conta tanto nossos próprios interesses como as necessidades, desejos, emoções, intenções e crenças dos demais, para conceber o mundo desde a perspectiva de outra pessoa, para imaginar cenários futuros e fazer predições ótimas, para sentir compaixão pela dor e o sofrimentos dos demais, para categorizar a conduta humana (própria e alheia), objetos e indivíduos em termos de valor (de favorável ou desfavorável, de bom ou mal) e para aprender e transmitir, de forma acumulativa e renovada, esta categorização valorativa (a informação sobre o valor, positivo ou negativo, de condutas, objetos e indivíduos) através da aprovação ou rechaço social.

Aliás, esta capacidade para categorizar valorativamente a conduta própria e alheia e encerrar-se em um intercâmbio de juízos de aprovação e de reprovação até constituir uma nova fonte de emoções de prazer e desagrado (que sentimos ao colocar à prova uma conduta e as que sentimos ante a aceitação, o castigo ou o rechaço social da mesma) constitui um bom exemplo de como nossa constituição neurobiológica condiciona e restringe a criação, o desenvolvimento e a validez das normas de conduta, funcionando como condição de possibilidade da massiva produção normativa de nossa espécie, e, ao mesmo tempo, de sua (relativa) independência material e natureza preditiva no que às nossas crenças, desejos, preferências e ações se referem.

Daí que o direito não é um fim em si mesmo, senão um instrumento ou artefato cultural, uma invenção humana, que deveríamos procurar modelar e utilizar inteligentemente para alcançar propósitos ético-políticos que vão mais além do próprio direito: um grau tolerável de liberdade, igualdade e fraternidade, isto é, dessas três virtudes que compõem o núcleo duro, o conteúdo próprio da justiça e que, em seu conjunto, constituem diferentes aspectos da mesma atitude humanista fundamental destinada a garantir o respeito incondicional da dignidade humana. Com o direito promovemos em grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para instituir e decidir que ações estão proibidas, são lícitas ou obrigatórias, assim como para justificar e controlar os comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular, combinar, controlar e estabelecer limites aos vínculos sociais relacionais estabelecidos pelo ser humano.

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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