Esboço de um «modelo naturalista» para o Direito (Parte 21)

18/01/2019

La realidad tiene la mala costumbre de estropear las historias bonitas.” P. Malo  

Este peculiar modelo unificado das relações sociais, fundado na natureza humana, é central para a finalidade do direito porque permite a sua utilização e manipulação para enfrentar-se, de forma real e factível, às hipertrofias e  hipotrofias dos distintos (quatro) vínculos sociais relacionais; quer dizer, aos excessos e defeitos das relações de comunidade, de autoridade, de proporcionalidade e ainda dos mesmos vínculos sociais de igualdade nos que se inserta a  própria relação  de cidadania. Da mesma forma, e em igual medida, porque permite enfrentar-se também à “fagocitação” de um tipo de vínculo social por outros: as restrições antiacumulatórias e antirreacionárias ao uso do poder, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de autoridade (o poder político) socavem tanto as bases da igualdade e da vida social comunitária como a eficácia mesma da liberdade; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso da propriedade privada, por exemplo, tratam de evitar que os vínculos sociais de proporcionalidade (o mercado) socavem as bases da vida social comunitária; as restrições antialienatórias e antiacumulatórias ao uso do direito de sufrágio tratam de evitar a corrupção da relação de igualdade cidadã por contágio dos vínculos de proporcionalidade. E a “eterna vigilância cidadã” que trata de evitar que o abuso de autoridade por parte do Estado afete a qualquer dos quatro vínculos sociais relacionais e degrade a res publica a imperium.

Em definitivo,  uma vez já dado por assentado que toda a relação jurídica tem por base uma relação social – portanto, em um dos quatro modelos elementares de vínculos sociais relacionais estabelecidos pelo homem –, isto é, que as relações consideradas jurídicas são aquelas relações sociais dos indivíduos humanos sobre as quais incide uma norma jurídica atribuindo direitos e deveres recíprocos, o objeto e a função de todo direito só pode ser o homem, residindo sua funcionalidade na articulação combinada do conjunto dos vínculos sociais relacionais em que o indivíduo se situa e para os quais parece estar desenhado para estabelecer ao longo de sua existência.

Ademais, se a maior parte dos conflitos sociais estão motivados, são organizados e julgados por referência aos quatro modelos básicos, o que seja justo em uma relação concreta depende crucialmente de em que modelo relacional, ou combinação deles, se encontre modelada a relação no contexto social de referência. Cada um deles é usado como padrão para definir formas de coordenação entre as pessoas e de reconhecimento entre elas como sujeitos sociais e titulares de direitos e deveres válidos que surgem no marco do modelo elementar de que se trate. Cada modelo gera dentro de si e de sua dinâmica critérios específicos de justiça, que exigem ajustar o reconhecimento do que é devido aos agentes involucrados segundo a natureza da relação que estabelecem.

O que implica que os modelos elementares também resultam relevantes para o direito e o sentido da justiça concreta, na medida em que o conteúdo, a finalidade e a função destes residem precisamente na forma como se solucionam os conflitos parciais ou totais de interesses inerentes aos quatro tipos de vínculos sociais relacionais, cada qual dependente de um conjunto de potencialidades psicológicas exclusivas, evolucionadas e distintas segundo o padrão dos interesses convergentes e divergentes próprios de cada relação.

Isto tem uma consequência importante: na medida em que se admite que o direito tem um caráter relacional, o seu processo de realização, desde uma perspectiva instrumental, pragmática e dinâmica, passa a ser concebido como um intento, como uma técnica para a solução de determinados problemas práticos relativos à conduta humana em sua interferência intersubjetiva, no contexto dos vínculos sociais possíveis. Consequentemente, a melhor maneira de lograr que se plasmem as formas elementares de sociabilidade – comunidade, autoridade, proporcionalidade e igualdade – seria a de ir desenvolvendo instrumentos e discursos jurídicos adequados a sua justa e equilibrada articulação.

Trata-se, em síntese, de uma via que conduz a considerar o direito como práxis social e que pressupõe, utiliza e, em certo modo, dá sentido às demais perspectivas teóricas relacionadas com as dimensões estrutural, normativa, sociológica e axiológica do fenômeno jurídico. Dito de outro modo, qualquer proposta teórica ou metodológica acerca do direito deveria considerar a circunstância de que toda a vida jurídica é, em essência, uma argumentação sobre as diversas vias por meio das quais se articulam essas quatro formas de vida social arraigadas na complexa estrutura da mente humana e irredutíveis entre si.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: O Espelho // Foto de: Ana Patícia Almeida // Sem alterações

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